Sunday, May 23, 2010

Losnitza


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Um encontro com alguns jornalistas num dos espaços fechados da praia, em Cannes, aconteceu quinta-feira com o realizador ucraniano Sergei Losnitza, diretor de My Joy (Schastye Moye, ou Minha Alegria). Losnitza é um desses diretores que tem enorme propriedade sobre o que está falando, sobre o filme que fez e alguns dos seus procedimentos, embora o filme em si permaneça uma grande nébula. Seu retrato impressionante enquanto cinema e visão humana e política da Rússia hoje ainda repercute.

Havia curiosidade sobre esse documentarista que estréia agora direto na competição de Cannes. “Documentário não é realidade”, diz Losnitza. “As sombras de uma árvore ou de um prédio na rua são as mesmas num filme de documentário, ou num filme de ficção. De qualquer forma, minha experiência no que se convenciona chamar de ‘documentário’ está no filme, mas isso me interessa apenas no sentido técnico, para responder a essa pergunta”.

Matemático de formação e tradutor de japonês, Losnitza mora hoje na Alemanha, “onde, se compararmos com a Rússia, há um abismo enorme em termos de uma sociedade que vê dignidade no cidadão. A Rússia está atrás”. Ele estudou em São Petersburgo, de onde saiu um outro grande filme dele, todo montado a partir de imagens de arquivo do serviço de propaganda soviético, guardado na cidade. O filme chama-se Blockade (2005).

Losnitza falou extensamente sobre a muito comentada estrutura do filme, vista como complexa. “De jeito nenhum, esse filme não poderia ser mais simples. Se você o fatiar e separar as histórias que eu conto, cada uma delas funcionaria perfeitamente no You Tube. Na verdade, como nas fábulas, há até avisos dados ao nosso personagem, instruções que ele ignora. É tudo muito simples”.

Ele contabilizou a importância de falar do passado no seu filme, com dois episódios que se passam no que os russos chamam de ‘A Grande Guerra Patriotica’, e que o mundo conhece como ‘2a. Guerra Mundial’. “Essas idas ao passado estabelecem o desejo de não sermos humilhados e a dificuldade de se aceitar um ponto de vista pessoal independente, e é claro que isso é um problema numa sociedade totalitária”.

Eu perguntei sobre uma sinfonia de rostos humanos que compõe um dos mais belos momentos do filme, e o diretor falou por 12 minutos sem pestanejar. Esse momento de bravura do filme destaca também a parceria de Losnitza com o fotografo moldavo Oleg Mutu, que Losniza convidou para filmar depois de ver seu trabalho nos filmes romenos A Morte do Senhor Lazarescu e 4 Meses 3 Semanas 2 Dias.

“Oleg é excelente, ele trabalhou com uma trepeça de 40 quilos que segurava a câmera, ao mesmo tempo em que a deixava ligeiramente instável, como alguém que tenta manter firme equilíbrio. Foi uma parceria feliz”.

Nessa sequência dos rostos, é a única instância onde a câmera abandona o filme e ganha vida própria, uma forma de constatar que não há saída, talvez uma confirmação de que os elementos do conto de fadas estão sendo colocados em ação”.

“Nós levamos três meses para achar aqueles rostos, que eu escolhi cuidadosamente para passar um sentimento muito forte de tempo perdido e nenhuma esperança, qualquer que ela seja. E, às vezes, acho que só mesmo no interior profundo da Mãe Rússia que esses rostos existem.”

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