por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
Uma maneira direta de um filme me transformar em observador submisso com inclinação à admiração é ele estar relacionado à idéia da experiência cinematográfica através da sala de exibição como espaço humano. Não precisa citar casos clássicos, mas pelo menos dois deles - The Last Picture Show/A Última Sessão de Cinema, do Peter Bogdanovich, ou para ficar nesta década, Goodbye Dragon Inn, de Tsai Ming Liang -. Serbis, do filipino Brillante Mendoza, é um outro filme dessa pequena escola, e claramente o filme mais descabelado da competição em Cannes 2008.
Serbis se passa num cinema pavorosamente decadente chamado FAMILY, cada letra para ser lida na vertical, descendo pela fachada. Toda cidade grande já teve, ou tem, algum desses, o último verdadeiro ‘FAMILY’ do Recife foi possivelmente o Trianon, o irmão pecaminoso do mais bem comportado (pelo menos em programação) Art-Palácio, ambos fechados em 1992. Na época do fechamento, eu acompanhei os últimos meses dos dois, e só o processo de limpeza do Trianon todos os dias pela manhã era algo para ser visto, e não descrito.
Eu li críticas em Cannes sobre Mendoza usar esse cinema para comentar a sociedade filipina e coisas do tipo, não sei, não teria informação o suficiente para pesar isso. De qualquer forma, Serbis (“serviço?”, o que michês encostados na parede dizem para qualquer um que acaba de entrar na sala escura do FAMILY) revela-se uma linda crônica suja sobre a sala de cinema como ambiente social (sexual), como provedora de uma família tão decadente quanto o próprio lugar, e, nas entrelinhas, sobre a falência de grandes salas em todo o mundo via mudança de sistemas de exibição (multiplexes, etc.)
Pelo fato de Mendoza andar com sua câmera na mão por praticamente todos os centímetros possíveis desse cinema, subindo e descendo escadarias, por toda a sala de exibição, cabine de projeção, bilheteria, entrada e depósitos, o filme nos dá uma visão clara de uma arquitetura universal que definiu o cinema como suntuoso espaço público de interação. Não é difícil imaginar dias melhores do FAMILY nos anos 60 ou 70, com famílias inteiras lotando a sala para ver A Noviça Rebelde, ou Inferno na Torre e Ghostbusters, para ficar nos sucessos americanos planetários.
Em 2007, no entanto, o FAMILY exibe pornografia, e a pegação (sob signos católicos que marcam os espaços de administração, e isso soletra “família”) foi institucionalizada. Freqüentado por alguns poucos casais e batalhões de homossexuais masculinos que mantém michês e travestis trabalhando, a projeção 35mm parece tão precária quanto o estado geral das cadeiras (primeiras fileiras ausentes, assentis empilhados junto do palco).
Mendoza utiliza recursos interessantes (e muito radicais) que fazem de Serbis, o filme, uma representação perfeita do espaço que ele mesmo registra. Na seqüência de abertura. a câmera digital escaneia canalhamente o corpo nu de uma adolescente, a lente babando em cima da menina, olhar que mantém-se firme ao longo do filme como um todo, incluindo uma espremida de furúnculo captada em close.
O som, em especial, revela-se de um radicalismo inédito na sua concepção, nunca ouvi nada do tipo. Utilizando volumes estourados para os ruídos urbanos que vêm da rua (tráfego, especialmente) que estão sempre ameaçando afogar os diálogos, o design de som certifica-se que cada troca de cena virá acompanhada de um silêncio e do som chegando atrasado, numa espécie de radicalização terceiro mundo do que Rodriguez e Tarantino fizeram em Grindhouse.
De uma certa forma, Mendoza fez uma variação muito pessoal daquela idéia inicial do Grindhouse, com a diferença (e a sofisticação) de levar o conceito dois graus além. Além de capturar um certo estilo dos filmes exibidos no FAMILY (há sexo oral explícito de travesti no projecionista), ele interpretou também a própria experiência física de estar naquele tipo de cinema, o que nos leva a um interessante clichê de imagem na cena final que parece pertencer totalmente a esse filme, e a nenhum outro mais.
Alguns brasileiros comentaram que o filme lembra o trabalho de Cláudio Assis, talvez lembre de longe. A diferença é que a crueza deste não tem o polimento sofisticado da fotografia de Walter Carvalho, e os personagens têm uma verdade maior do que a que qualquer ator profissional competente é capaz de passar, mesmo auxiliado por figurinos adequados e direção de arte oniciente.
Em Serbis, eles parecem ter saído das paredes, e vez ou outra, pulado da rua para dentro daquele ex-palácio de imagens sujo de esperma e esgoto. É um horror show humano, e fica ainda a sensação de que há no filme um coração do bem que tudo observa com grande interesse pelo caos do cinema.
Filme visto na Sala Bazin, Maio 2008, Cannes
Serbis se passa num cinema pavorosamente decadente chamado FAMILY, cada letra para ser lida na vertical, descendo pela fachada. Toda cidade grande já teve, ou tem, algum desses, o último verdadeiro ‘FAMILY’ do Recife foi possivelmente o Trianon, o irmão pecaminoso do mais bem comportado (pelo menos em programação) Art-Palácio, ambos fechados em 1992. Na época do fechamento, eu acompanhei os últimos meses dos dois, e só o processo de limpeza do Trianon todos os dias pela manhã era algo para ser visto, e não descrito.
Eu li críticas em Cannes sobre Mendoza usar esse cinema para comentar a sociedade filipina e coisas do tipo, não sei, não teria informação o suficiente para pesar isso. De qualquer forma, Serbis (“serviço?”, o que michês encostados na parede dizem para qualquer um que acaba de entrar na sala escura do FAMILY) revela-se uma linda crônica suja sobre a sala de cinema como ambiente social (sexual), como provedora de uma família tão decadente quanto o próprio lugar, e, nas entrelinhas, sobre a falência de grandes salas em todo o mundo via mudança de sistemas de exibição (multiplexes, etc.)
Pelo fato de Mendoza andar com sua câmera na mão por praticamente todos os centímetros possíveis desse cinema, subindo e descendo escadarias, por toda a sala de exibição, cabine de projeção, bilheteria, entrada e depósitos, o filme nos dá uma visão clara de uma arquitetura universal que definiu o cinema como suntuoso espaço público de interação. Não é difícil imaginar dias melhores do FAMILY nos anos 60 ou 70, com famílias inteiras lotando a sala para ver A Noviça Rebelde, ou Inferno na Torre e Ghostbusters, para ficar nos sucessos americanos planetários.
Em 2007, no entanto, o FAMILY exibe pornografia, e a pegação (sob signos católicos que marcam os espaços de administração, e isso soletra “família”) foi institucionalizada. Freqüentado por alguns poucos casais e batalhões de homossexuais masculinos que mantém michês e travestis trabalhando, a projeção 35mm parece tão precária quanto o estado geral das cadeiras (primeiras fileiras ausentes, assentis empilhados junto do palco).
Mendoza utiliza recursos interessantes (e muito radicais) que fazem de Serbis, o filme, uma representação perfeita do espaço que ele mesmo registra. Na seqüência de abertura. a câmera digital escaneia canalhamente o corpo nu de uma adolescente, a lente babando em cima da menina, olhar que mantém-se firme ao longo do filme como um todo, incluindo uma espremida de furúnculo captada em close.
O som, em especial, revela-se de um radicalismo inédito na sua concepção, nunca ouvi nada do tipo. Utilizando volumes estourados para os ruídos urbanos que vêm da rua (tráfego, especialmente) que estão sempre ameaçando afogar os diálogos, o design de som certifica-se que cada troca de cena virá acompanhada de um silêncio e do som chegando atrasado, numa espécie de radicalização terceiro mundo do que Rodriguez e Tarantino fizeram em Grindhouse.
De uma certa forma, Mendoza fez uma variação muito pessoal daquela idéia inicial do Grindhouse, com a diferença (e a sofisticação) de levar o conceito dois graus além. Além de capturar um certo estilo dos filmes exibidos no FAMILY (há sexo oral explícito de travesti no projecionista), ele interpretou também a própria experiência física de estar naquele tipo de cinema, o que nos leva a um interessante clichê de imagem na cena final que parece pertencer totalmente a esse filme, e a nenhum outro mais.
Alguns brasileiros comentaram que o filme lembra o trabalho de Cláudio Assis, talvez lembre de longe. A diferença é que a crueza deste não tem o polimento sofisticado da fotografia de Walter Carvalho, e os personagens têm uma verdade maior do que a que qualquer ator profissional competente é capaz de passar, mesmo auxiliado por figurinos adequados e direção de arte oniciente.
Em Serbis, eles parecem ter saído das paredes, e vez ou outra, pulado da rua para dentro daquele ex-palácio de imagens sujo de esperma e esgoto. É um horror show humano, e fica ainda a sensação de que há no filme um coração do bem que tudo observa com grande interesse pelo caos do cinema.
Filme visto na Sala Bazin, Maio 2008, Cannes
1 comment:
muito interesse Kleber, quero muito ver esse filme, pena que, pelo mercado limitado brasileiro, a única a alternativa vai ser baixar pela Net
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