Thursday, July 24, 2008
A Atriz e a Câmera
por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
O carioca Murilo Salles tem 58 anos, quase 40 de cinema. Sua obra é pontuada por projetos de excelente nível técnico como o thriller Faca de Dois Gumes (1988, adaptação de Fernando Sabino) e o documentário multi-ângulo sobre a Copa de 94, Todos os Corações do Mundo (1995). Na época da retomada da produção brasileira, experimentou com a tensão social em Como Nascem os Anjos (1996) e, em 2002, no seu filme talvez mais infeliz, Seja o Que Deus Quiser! Em Nome Próprio, parece se reinventar com a saúdavel curiosidade de um jovem pelas novas possibilidades do drama via cinema claramente experimental.
Nome Próprio, rodado com a Panasonic HVX200 e exibido apenas em digital, adapta um certo feeling do trabalho da escritora/blogueira Clarah Averbuck a partir de escritos seus - "Máquina de Pinball" e "Vida de Gato". Averbuck é do tipo que vomita sentimentos na internet em letras. Essa imagem talvez explique o cartaz do filme, que nos traz a personagem principal nua com a aparência de uma replicante das letras.
E Nome Próprio traz a exploração radical de uma personagem desagradável: o nome dela é Camila (Leandra Leal), à primeira vista uma garota irritante com ilusões de grandeza artística. Camila parece ter lido em algum manual que para ser uma verdadeira artista ela precisa fabricar todos os problemas que normalmente não teria. Uma vez criados, os problemas a maltratam, e disso, ela espera tirar experiência para escrever.
Isso inclui punir de maneira inclemente seu corpo com uma dieta de cerveja, cigarro e comprimidos estimulantes, e logo o espectador irá desconfiar horrorizado que veio passar duas horas na companhia de um poeta marginal.
Especialmente complicado no sentido de estarmos com Camila tão intensamente é a sua própria produção literária. Salles expõe as letras em interferências gráficas curiosas, habilmente sublinhadas por um campo sonoro expressivo. De qualquer forma, essas interferências apenas expõem o quão ruim é o seu texto (ou suas idéias), e se você não aprecia a esforçada sopa de letrinhas de Camila, uma leitura dos dramas internos dessa menina torna-se realmente melancólica, não muito distante daquela poesia ruim que o poeta marginal deixou na sua mesa de bar, com a promessa de que ele irá voltar.
Quando Salles passou pelo Recife para apresentar o filme, ele revelou que boa parte (ou tudo, não entendi) do que aparece no filme como escritos não foi, de fato, criado por Averbuck, mas por ele mesmo com coisas pinçadas de outras fontes. Achei estranho basear o filme na obra de Averbuck e, por fim, não usar o material dela.
De qualquer forma, a poesia (ao meu ver, ruim) de Camila no filme é apenas uma parte do seu drama pessoal, um pouco como a aridez do seu apartamento, mobiliado com uma CPU, um teclado e um monitor gordo de 15 polegadas.
Ela não apenas se alimenta mal, como também se afasta dos que gostam dela. Trai o namorado (excelente abertura!) e decepciona a melhor amiga com a mesma dose de féu, em seqüência tão emocionalmente absurda que beira um sonho erótico úmido.
Aos poucos, no entanto, a irritação vai se diluindo, talvez por dormência, talvez pelo valor do filme residir de forma bem humana num dos quesitos mais importantes da vida, na maneira que cada um tem para lidar com as pessoas ao nosso redor. Devemos julgar Camila e suas escolhas? Ou devemos apenas vê-la, observando seu modus operandi falho e algo de masoquista?
Um valor possível para Nome Próprio existe na sensação de que o que Camila/Leal quer mesmo é ter a câmera digital de Salles como parceira e amante. Quando esse tipo de sensação ocorre, desdobramentos na tela ganham interesse e vida, e a melhor coisa desse filme é que há alguns momentos realmente bons nesse sentido. É mais ou menos aí que o filme de Salles dialoga saudavelmente com Falsa Loura, de Carlos Reichenbach, outro retrato revelador de uma jovem fêmea pelo olhar de um outro realizador já maduro, e macho.
Uma diferença curiosa entre as levadas de Salles e Reichenbach, no entanto, é a idéia de "old fashioned" para Reichenbach (sem que isso julgue negativamente seu tom) e "inquieto" para Salles (sem que isso julgue positivamente o seu tom). Antes de Nome Próprio, Salles uniu-se a Lírio Ferreira para fotografar e produzir Árido Movie, uma brecha para entender os caminhos por ele procurados.
Meticulosamente enquadrado com registros (fotografia Fernanda Riscali, especial) de uma intimidade plenamente associável à realidade (ou à de pessoas que conhecemos), Salles me impressionou bastante com a imagem digital do filme.
No final das contas, talvez me agrade mais o projeto de cinema aqui apresentado, uma pequena semente observada já em Cão Sem Dono, de Beto Brant, de um cinema brasileiro pequeno que, curiosamente, ainda revela-se uma bizarrice na nossa filmografia. Acho inclusive que a experiência projetada na tela poderá estimular muita gente (jovens, especialmente) a investir num cinema viável tecnicamente e cujo eixo é o elemento humano, e não tanto questões sociais sedadas, ou essa mania irritante de filmar o que não se conhece.
Nesse sentido, Nome Próprio parece vencer pela mais pura energia que existe entre Salles, diretor, e Leal, a atriz, que atua aqui como se fosse seu último filme, o tipo de coisa que só a juventude permitiria, um pouco como as aventuras emotivas da própria Camila. E não seria estranho entender que foi essa juventude de Camila e de Leandra que instigou Murilo Salles a desvendar personagem tão viva.
Filme visto no Odeon, Festival do Rio (versão 130 mins), setembro 2007 & Cinema da Fundação, Recife, vs. 120 mins., Junho 2008
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