Thursday, August 21, 2008

Corpo


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


À primeira vista, Corpo (Brasil, 2007), filme dos paulistas Rossana Foglia e Rubens Rewald, passa como uma oportunidade perdida, e em alguns pontos, talvez seja. De qualquer forma, a idéia do filme, algumas das suas imagens e seu tom geral tendem a ficar com o espectador. Pode ser pelo fato de revelar-se uma anomalia na produção brasileira atual, um filme de gênero (policial? Suspense? Noir?) que, se não chega a cruzar esses terrenos com convicção e desprendimento, pelo menos mostra sinais de vitalidade, uma ironia num filme fascinado pela matéria morta.

O fascínio vem, em grande parte, do personagem principal (Leonardo Medeiros), médico legista do Instituto Médico Legal, ele mesmo pintado como uma variação do morto-vivo. Não se sabe ao certo se esse personagem foi assim composto, ou se o mérito é de Medeiros, ator que parece trabalhar com a apatia sedada em todos os seus personagens. Seu Artur sugere trabalhar de noite no necrotério em Corpo e de dia no sistema de controle de tráfego do seu outro personagem em Não Por Acaso, de Philipe Barcinsky, ou ainda como o professor universitário brasiliense de Simples Mortais, de Mauro Giuntini.

De qualquer forma, é Artur o nosso condutor pela morbidez desse filme, traduzida em imagens cruas e precisamente desagradáveis o trabalho interno no IML, com o que me pareceu excelente trabalho de maquiagem. Essa morbidez nunca se transforma em artefato gratuito, pois Artur realmente mostra-se laconicamente tocado pela história dos mortos, deitados ali na sala. Aspectos relacionados à idéia de necrofilia não devem ser descartados.

Essa sensação cresce com o surgimento do corpo de uma bela mulher, trazido para o IML como parte de uma descoberta que irá mexer com os arquivos da ditadura. A questão é que as ossadas descobertas aparentam ter os 30 anos que as separam do presente, mas o corpo, também desenterrado no mesmo local, encontra-se em perfeito estado de conservação.

A chefe pragmática de Artur, Dra. Lara (Chris Couto, atuação tensa), decreta que o corpo é recente e que será enterrado como indigente, caso ninguém o procure. Pressionado, ele parte para pesquisar o passado nos arquivos do DOPs, e encontra a história de uma atriz e militante política que desapareceu nos anos 70.

O fascínio de Artur pelos registros, e seu desejo de que esses registros casem com a realidade física guardada no IML sugerem um misterioso toque de loucura que respinga também no espectador.Chegamos, então, à filha da mulher, a jovem Fernanda (Rejane Arruda), bela, viva e idêntica ao corpo no IML.

Me chama a atenção como o filme sai-se bem do seu ponto de partida e atinge o núcelo dessa história ainda desenvolvendo-se bem o suficiente para nos levar a desdobramentos finais que, infelizmente, não me satisfizeram. A provável loucura romântica de Artur seria o ouro narrativo dessa história de duplos com algo de assustador, e com um tom tão sóbrio quanto mórbido.

São elementos curiosos que o filme investiga sem um senso maior de organização, o que poderá passar para alguns a já citada sensação de oportunidade perdida. É o tipo de filme onde o espectador espera que tudo enlouqueça mais, se descabele mais, uma vez que o terreno para isso foi construído. Ao final, temos um curioso exercício de baixo impacto sobre morbidez, vida e morte onde a história recente do Brasil, via ditadura, ganha releitura original, mas com resultado, eu suspeito, dramaticamente subdesenvolvido.

Filme visto no Palácio 1, Festival do Rio, Setembro 2007.

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