Saturday, August 30, 2008

Encarnação do Demônio


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Como Walter Lima Jr., com Os Desafinados, José Mojica Marins surgiu nos anos 60 e também circula esse mês com um filme novo que marca trajetória de quase 50 anos. Diferente do seu contemporâneo carioca, esse autor paulista percorreu o caminho da marginalidade artística com algo que só pode ser considerada uma anomalia no Brasil: o gênero fantástico, o terror. Um problema num cinema nacional que, dada a inexistência desse tipo de filme na sua produção, simplesmente não sabe o que fazer quando vê um na sua frente. A questão persiste com Encarnação do Demônio (2008), não só uma anomalia de gênero, mas também autoral no nosso cenário. O filme passa esta semana em sessão à meia-noite no Festival de Veneza.

Há duas semanas, Encarnação do Demônio teve lançamento desastroso em 37 salas do país, atraindo cinco mil espectadores. Mojica, nos anos 60, chegou a ter mais de um milhão de pessoas para cada um dos seus filmes, estabelecendo comunicação com o popular e o desdém de uma crítica (em grande parte) pronta para dispensar a estranheza do seu cinema.

Gostos são discutíveis, pois é difícil, e sendo bem objetivo, encontrar na filmografia brasileira herança (disponível em ótimos DVDs) de imagens e sons tão rica quanto a de Mojica, não só um pioneiro do gênero no país mas, passados 40 anos, e isso é impressionante, seu único defensor. Num Brasil tão cruel, violento e desigual, perversão maior deveria ser o cinema de burgueses sobre a pobreza digna do sertão, ou a alegria brutal de viver em favelas.

Filmes seus como À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) foram realizados com mínimos recursos e expressividade máxima, misturando a cultura e realidades do país com o cinema de gênero. Revendo esses dois filmes, as partes 1 e 2 da trilogia que agora se encerra com Encarnação do Demônio, entendemos que o tempo foi muito bom para os mesmos, agregando valores estéticos, temáticos e históricos. Oferecem ainda excelente contra peso para a versão oficial do cinema brasileiro na época, o Cinema Novo, e sugerem sintonia com cineastas como o americano Herschell Gordon Lewis ou o chileno Alejandro Jodorowsky.

Sobre o filme novo, Mojica passou os últimos 40 anos filmando terror e sexo nos anos 70 e 80, e, nos 90, longe do cinema, vivendo de performances na televisão e em festas de Halloween. Seu personagem Zé do Caixão tornou-se cada vez mais sua persona comercial, lenda urbana viva que veste-se de preto, usa anéis grandes e unhas impossivelmente longas. Essa persona parece tão longe (e também tão perto) do Zé do Caixão que admira o espírito das crianças, e despreza o mundo dos homens.

Seu novo filme me parece bem mais fruto da sua persona borrada por um número grande demais de festas de halloween, infelizmente. O filme representa não só sua resistência ("são 40 anos de resistência!!", grita ele com braços erguidos e aos sete ventos na abertura), como também a admiração de dois jovens fãs incondicionais, Paulo Sacramento (produtor) e Dennison Ramalho (co-roteirista e assistente de direção) que o ajudaram a viabilizar o projeto.

O empenho dos dois constitui uma segunda iniciativa inspirada por algo que só pode ser descrita como amor para com o cinema e a pessoa de Mojica, a primeira também na forma de uma dupla, André Barcinski e Ivan Finotti. Juntos, publicaram em 1998 o livro até agora definitivo sobre Mojica e sua trajetória fascinante, Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, uma reconstrução apaixonada (e, por tabela, revoltante) de como certos talentos são tolhidos pelo cinema, seja ele brasileiro ou não. Barcinski e Finotti ainda fizeram um documentário, tristemente pouco visto, Maldito, que permaneceu no formato vídeo, sem a nobreza de circulação do 35mm. Barcinski, Finotti, Sacramento e Ramalho têm, portanto, participações essenciais no resgate de Mojica para o presente e futuro.

Sobre o novo filme, mais uma espetacular sensação de anomalia é sentida. Um olhar pragmático deverá gerar recusa instantânea, um outro olhar marcado pela anarquia, auxiliada pela admiração de toda uma trajetória, poderá fazer do filme uma sessão interessantíssima. Eu ainda me pergunto se gostei do filme, uma primeira reação me informou que não, mas entram questões que, temo, sejam extra-filme. O universo está todo lá, mas não funciona necessariamente para mim, exceto como a pura paixão de ele existir em ambiente tão árido.

Sacramento conseguiu atrair os dois produtores mais arrojados do Brasil hoje, Fabiano e Caio Gullane, que trouxeram a 20th Century Fox, cuja famosa fanfarra abre esse filme, e vê-la no início nos diz algumas coisas sobre a maneira como o cinema tenta embalar a arte para o mercado, mesmo que ela não seja necessariamente embalável. Feito a cores e em Dolby Digital, Encarnação do Demônio tem efeitos especiais que não destoam do padrão comercial, inclusive com uma moderna viagem pelas entranhas da sua obra logo na abertura.

Agregam também, numa clara leitura de resgate do passado e auto-afirmação da obra, imagens do seu catálogo que entram no filme como espectros digitais monocromáticos invadindo a nitidez moderna das sombras de Mojica.

Curiosamente, há a qualidade dúbia de ser, essencialmente, o mesmo cinema que Mojica fez nos anos 60. Por um lado, isso é bom, já que seu fascínio pela carne, a dor e a morte continuam intactos, ficando ainda clara a sensação de imposição do macho rei como centro de prazer e dor de todas as mulheres. Posso estar errado, mas Mojica mais velho me pareceu mais tímido ao assumir esse papel, que o filme claramente parace exigir desconfortavelmente.

Por outro lado, a estranheza das suas visões no contexto dos anos 60 perdem-se num filme moderno que surge na saturação de um mercado onde o horror filmado virou coisa de menino de 12 anos de idade, e onde a tortura explícita já é um clichê cansado. Arrancar um escalpo transforma-se numa cena evento vazia, assim como o destaque dado às estrelas do submundo do body piercing, na terra ou no inferno. Engraçado ver que nas dimensões paralelas, o body piercing é feito sob rígidas medidas de higiene e luvas de borracha.

Boa parte do que Mojica nos mostra como imagem de identidade "terror" me parece terrivelmente datada no contexto atual, nos passando a sensação deprimente de estarmos numa das salas rôxas de uma festa de Halloween de boate. Essa sensação de inadequação certamente casa com o universo recente de Mojica, e casa com Zé do Caixão voltando às ruas de São Paulo depois de 40 anos na prisão e sentindo-se um peixe fora d'água, resvalando para o filme em si mostrando-se sensacionalmente fora do seu tempo.

Zé do Caixão continua querendo gerar seu filho perfeito, odisséia que não parece guiada exatamente por uma narrativa, mas por cenas desconexas de forte elemento caricatural, e Milem Cortaz, com roupa e capuz marrom de monge, é o rosto demo de tudo isso. Um momento de fato espetacular (a união de um corpo com um porco) apenas sugere a estranheza do Mojica clássico tão pouco vista nesse novo trabalho. Vale observar a farta presença de lindas mulheres nuas banhadas em espesso sangue, aspecto que definitivamente separa o filme do horror anglo-saxão defendido por Hollywood.

Encarnação do Demônio é claramente uma obra de autoralidade excêntrica embalada como produto de mercado que ele termina não sendo, o que resulta numa curiosidade da produção brasileira como nenhuma outra. Entre o riso triste e o estarrecimento por WO, Mojica terminou por gerar o seu filho na forma de um filme, aos 72 anos de idade.

Eu adoraria ver um próximo filme seu feito em digital, em condições de produção dignas, mas saudavelmente restritivas, onde a sensação de gerar o filho perfeito não fosse exatamente uma obrigação para com o inferno, mas apenas um desejo mórbido de expressão.

Filme visto no Espaço Unibanco 5, São Paulo, Agosto 2008

No comments: