Thursday, September 25, 2008

Reflexos do Passado




Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Questão recorrente, e fonte de alguns prazeres para o espectador, é a união entre música pop e cinema. Muitos filmes usam canções como muletas para trazer sensações que o próprio filme não é capaz de transmitir em imagens, para não falar dos que só querem empurrar uma canção comercialmente, a música tão importante quanto o Mc-Lanche Feliz que vai na promoção do filme. Poucos, no entanto, transformam a música (ou uma canção) num personagem, talvez o aspecto mais interessante de Reflexos do Passado (Flashbacks of a Fool, Inglaterra, 2008), filme do novato Baillie Walsh.

Esse diretor de comerciais conseguiu filmar seu projeto pessoal pela participação do amigo, aqui produtor e ator Daniel Craig, o atual James Bond. O título original traduz como "Lembranças de um Bôbo", e Craig (muito bom) é o personagem titular, o astro hollywoodiano Joe Scott. A apresentação de Joe não é das melhores, numa cena de sexo obrigatoriamente escura e 'artisticamente' desfocada. Na cama com o que mais parecem duas modelos, cheirando cocaína e com performance abaixo do esperado, Braillie vai de mão pesada ao tentar gritar para o espectador o quão decadente seu personagem está.

A coisa piora com a entrada em cena da sua empregada, Ophelia (Eve), que reitera a decadência do patrão num curto discurso que combina com a decoração fria e espaçosa da casa californiana à beira mar. Na verdade, o que Ophelia diz é inferior à sua pessoa, e à sua presença refrescante, uma vez que as outras demonstrações de humanidade próximas a Joe são a sua fornecedora de drogas, seu empresário tubarão em Hollywood ("eles querem alguém mais jovem, Joe!") e um diretor de filmes de ação sem nada na cabeça. Uma vida vazia, pois.

Toca um telefonema da Inglaterra, que informa Joe sobre a morte de um amigo de infância, Boots. A notícia irá levá-lo a um redemoinho de questionamentos pessoais e a uma bruta saudade de um período essencial na sua vida, nos anos 70. Abre-se um longo flashback onde a Inglaterra das memórias é ensolarada e sensual (filmada na África do Sul...), e onde a música pop era bela.

O jovem Joe (Harry Eden), filho de uma casa feminina (mãe, tia, irmã), também à beira mar, e aos 16 anos, inicia-se sexualmente com uma mulher casada (Jodhi May) escrava de hormônios e que parece ter a palavra "CATÁSTROFE" estampada na testa, aviso que o inexperiente Joe não consegue ler. Predatória, negativa e carente, ela é uma personagem interessante, com certeza, e ainda mãe de uma garotinha. Vale ponderar que é difícil não associar o fim narrado desta personagem a uma lógica puritana de ação e castigo divino.

Joe também paquera uma garota de sua idade, Ruth (Felicity Jones), menina linda e gente boa, a relação de amizade e intimidade (sem sexo) entre eles é claramente a melhor coisa do filme. São não apenas belos exemplos de juventude ansiosa pela vida, mas também cercados por uma ambientação perfeita dos anos 70 via décor, roupas e admiração sem limites pela música de David Bowie e Roxy Music.

É aqui que o filme revela-se claramente apaixonado por uma música: If There is Something (1972), do Roxy Music, que marca um momento pequeno mas significativo de felicidade, e que passa a assombrar o filme inteiro e talvez o próprio espectador como uma Madeleine de Proust para Joe e do seu tempo perdido. Observa-se que Ruth e If There is Something são personagens fortes, já que Reflexos do Passado parece esquecer de desenvolver Boots, pivô de tudo, o amigo que morreu jovem, e que conhecemos apenas superficialmente.

Essa música em particular funciona, pura e simplesmente, pelo fato de o filme se preocupar em tocá-la para que possamos ouvi-la, um pouco como um amigo que quer mostrar uma faixa incrível que precisa ser descoberta com som alto e livre de interrupções. Esse tempo, coisa tão rara no cinema moderno apressado, é raro. A química entre os personagens ajuda bastante, com destaque para a ótima Jones.

Mesmo com desdobramentos trágicos que beiram uma terrível novela das oito, e que revelam ainda a cartilha de que "sucesso e dinheiro não trazem felicidade", o espectador poderá lembrar, finda a sessão, o quão íntimos os ingleses são da música pop, talvez por terem, eles mesmos, a melhor música pop do mundo. O conceito de existir uma trilha sonora para as nossas vidas é perfeitamente utilizada. Prova disso está não apenas numa sequência final eficaz emocionalmente, mas por nos levar a perceber que a nossa melhor lembrança do filme coincide com o momento mais feliz da vida do seu personagem principal. Isso é bonito.

2 comments:

Saulo Benigno said...

Vi este filme ontem, adorei, não esperava que fosse me marcar assim.

Mas, o nome do filme (em português) não seria 'Reflexos da Inocência' ?

CinemaScópio said...

eita. parece que é mesmo. Obrigado, esses títulos genéricos...