Saturday, March 21, 2009

Glauber 70

publicado no Jornal do Commercio sábado, 14 de Março 2009

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


70 anos Glauber Rocha faria hoje, e é sempre difícil traduzir uma fração crível da sua importância como lenda real da expressão artística brasileira, em grande parte através do cinema. Se a noção de filme brasileiro tivesse uma constituição oficialmente outorgada, ela teria sido escrita por Rocha via seu texto histórico A Estética da Fome. Se o cinema nacional e latino americano tivesse um guru, ele provavelmente seria Glauber Rocha, um deus iconoclasta crente de que a bateria na música seria o que a montagem é para o cinema.

Glauber é hoje uma história real e uma lenda, ambas ricas em medidas iguais, e abertas para a desconstrução, a dilapidação e a desmitificação. Como Reiner Werner Fassbinder (falecido em 1983), Glauber morreu jovem aos 40 e poucos anos (42), virando um mito amparado por sua obra e os desdobramentos que surgiram a partir dela.

Artista claro e evidente com um discurso eletrizante quando falava ou escrevia sobre o cinema e as sociedades, o fato de ele não ser exatamente adotado como esse deus, ou reconhecido oficialmente como redator da nossa constituição fílmica, apenas reflete as saudáveis discordâncias que existem entre os que separam fato de lenda, dos que têm fé religiosa e os que se vêem ateus. Mais ainda, sua rejeição por alguns faz sentido pelo simples fato de a arte ser uma entidade livre de regras e autoridades impostas.

No último Festival de Berlim, por exemplo, o cineasta José Padilha, diretor de Tropa de Elite, mostrou pela primeira vez o seu documentário Garapa, sobre a fome no Brasil e no mundo. Filmado cruamente em preto e branco, Padilha respondeu a uma indagação glauberiana colocada por mim mesmo sobre o conceito de filmar a fome, e se, por um acaso, ele teve em mente as idéias de Glauber sobre a representação da pobreza, tão discutidas no cinema brasileiro.

“Eu nunca li o manifesto de Glauber. Eu não me interesso por manifestos, não acho que faz parte do meu trabalho dizer a outros colegas cineastas como se deve filmar, estabelecer regras, não obstante o fato de eu respeitar muito Glauber”, respondeu Padilha, com base no seu próprio trabalho.

A resposta nos lembra o debate histórico sobre Cidade de Deus, em setembro de 2002, em São Paulo, onde ficou tanto claro que as idéias de Glauber ainda podem fazer muito sentido para cineastas e críticos, como causar rejeição numa outra plataforma dos que fazem o cinema.

O debate também ilustrou indiretamente o tema controvertido da já citada fé religiosa numa virtual santidade de Glauber, uma vez que reações típicas da religião eram sentidas toda vez que alguém admitia corajosa e constrangedoramente “não gostar de Glauber nem do seu cinema”.

Ainda hoje, a frase é recebida com o mesmo tipo de choque que fiéis numa igreja ou templo teriam ao ouvir de alguém que “Deus não existe”, e o tom de sacrilégio foi repetido ano passado quando o humorista Marcelo Madureira foi ouvido gritando no Cine Odeon, durante sessão da dureza inconteste que é A Idade da Terra, a frase “Glauber é Uma Merda!”. O incidente gerou discussão em jornais e internet, inclusive discussões semânticas sobre a frase em si, uma vez que “Glauber é Um Merda” seria mais grave do que “Glauber é Uma Merda”.

É muito fácil admirar a trajetória de Glauber e seu legado, assim como diminuir o seu impacto, especialmente quando ele é utilizado como o metro com o qual procedimentos são medidos num cinema brasileiro como o feito atualmente no ano 2000, onde uma comédia de papelão como Se Eu Fosse Você 2 conquista quase seis milhões de espectadores. Tudo depende do quão benéfica a influência de Glauber pode ser no campo das imagens e das idéias pela manhã, ou o quão equivocada ela pode ser interpretada à tarde.

A longevidade das suas idéias sobreviveram fortes ao quase sumiço de circulação dos seus filmes ao longo dos últimos 15 anos, que viram raras cópias velhas em 35mm exibidas de maneira bissexta em salas isoladas do Brasil, e fitas VHS em péssimo estado sumirem naturalmente de locadoras do país.

Só nesta década que um trabalho de restauração e reapresentação dos seus filmes ofereceu a oportunidade de a mais nova geração de cinéfilos ter acesso decente aos filmes. Esse projeto chamado Coleção Glauber Rocha está sendo bancado pela Petrobras, Cinemateca Brasileira e Estúdios Mega, e dirigido por Paloma Rocha, sua filha, e Joel Pizzini, realizador e pesquisador do legado de Glauber. Da filmografia, já foram restaurados e lançados em 35mm e DVD (de excelente qualidade) Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967), O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969) e A Idade da Terra (1980), seu último filme.

Curiosamente, o trabalho de manutenção e expansão da memória de Glauber não existe apenas na recuperação dos filmes. Rocha e Pizzini, que são casados, têm realizado filmes que abordam de forma acurada o universo do artista, como o sólido relato factual Anabasys.

Paula Gaitan, por outro lado, viúva de Glauber, fez, há dois anos, um dos mais belos retratos impressionistas sobre a mística em torno de Glauber Rocha na profunda reflexão em imagens e sons que é Diário de Cintra, que aborda exatamente a fase final da sua vida. É um filme tão pessoal que chega a doer.

Dono de um estilo único de filmar, e impossível de citar ou imitar sob o risco de vermos um pastiche grotesco (há inúmeros, especialmente em escolas de cinema), o cinema de Glauber Rocha traz uma carga impressionante de sincretismo num Brasil colado pelas culturas européia, negra e indígena.

A riqueza dessas imagens, aliás, não funciona apenas dentro de uma compreensão distanciada e intelectualizada, mas também numa explosão de montagem e câmera que gera uma certa tristeza ao sabermos que, mesmo deflagrando um sem número de debates e conquistando admiradores naturais no país e no exterior, seu cinema nunca realmente encontrou eco no grande público. Na verdade, poucas vezes no cinema o fosso entre arte e popular foi tão grande, ainda mais num cinema repleto de signos de um Brasil popular e populista.

Um caso em questão, e que ilustra algo dessa incompreensão: a simples menção à morte de Glauber Rocha em 22 de agosto de 1981, aos 42 anos, nos lembra um dos seus mais belos e grandes filmes, um curta-metragem, Di. Aqui, ele filmou uma celebração à alegria de viver em toda a sua energia no enterro do seu amigo, o artista plástico Di Cavalcanti, cujo velório aconteceu no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

"Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de sua Última Quimera, Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável", fala Glauber ao abrir seu filme que muito incomodou a família Cavalcanti, decretando-o banido de exibições públicas. Eles não entenderam que Glauber e sua câmera indiscreta, filmando detalhes do caixão e do falecido em closes fúnebres era, na verdade, uma atitude artística de respeito para com o amigo morto e de uma crueza agressiva para com as formalidades da morte.

O filme está disponível no You Tube, e ver Di hoje, dia em que Glauber faria 70 anos, seria uma lembrança viva da sua energia única.


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