Saturday, June 14, 2008

A Culpa é de Fidel!

O Discreto Charme da Burguesinha


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Com muita coisa que lembra a pequena e incendiária Mafalda, das tirinhas argentinas criadas por Quino, e transitando pelo mesmo corredor temático de filmes recentes como Persépolis e O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, A Culpa é do Fidel ! (La Faute à Fidel!, França, 2007) nos apresenta um foco afiado sobre um momento especial da história (a fronteira entre os anos 60 e 70), tendo como ponto de vista uma astuta garota francesa de nove anos de idade. Um pouco como a diretora desse filme, Julie Gavras (filha de Costa Gavras, no seu primeiro longa de ficção), ela tudo observa com muita atenção. O filme é uma sessão deliciosa política e humanamente.

O ponto de partida de A Culpa é do Fidel! (uma adaptação de um livro italiano, com personagem italiana) é o efeito que o estado de coisas exerce sobre uma família essencialmente burguesa, na França de 1970. A menina Anna (Nina Kervel, muito boa), de nove anos de idade, é uma antena sensível para todo e qualquer fragmento de informação, mesmo que dados importantes faltem para que ela os entenda. Isso geralmente resulta em interpretações engraçadas que só a mente infantil é capaz de gerar.

Anna começa como uma burguesinha, espelhando seus pais (mãe jornalista de revista feminina – burguesa – o pai um advogado de origem espanhola, e burguesa). O filme tem a capacidade de prender fiel e apaixonadamente a narrativa ao ponto de vista de Anna, e isso vai não apenas na sua capacidade fragmentada de entender o que se passa, com a cumplicidade da visão informada do espectador, mas também na forma de filmar. Vejam, por exemplo, a seqüência da passeata que acaba em confusão e gás lacrimogêneo. A câmera permanece na altura dessa criança de nove anos, e a sensação de um mundo maior, que ela ainda não consegue compreender, é muito bem transmitida.

Ao prender-se a Anna, o filme revela-se fonte estável de momentos jocosos não só com o olhar infantil, mas também com o mundo maluco que ela enxerga. Os pais de Anna, por exemplo, passam por transformação política, especialmente depois de uma viagem à América Latina, e contraem uma bem intencionada culpa social por ocuparem casa tão grande. Mudam-se para espaço apertado, contribuindo assim para um mundo melhor.

São informações que colhemos aos poucos, e é depois dessa viagem à América Latina que a casa de Anna começa a se encher de barbudos que fumam muito e que falam de guerrilha, Maoismo e luta de classes.

Parentes espanhóis que fogem do regime de Franco também chegam à casa, e isso inclui a empregada cubana, revoltada com a revolução na sua Ilha natal, externando a sua raiva pessoal e política ao falar o título do filme. Aos poucos, Gavras nos oferece um painel inteligente do mundo, deixando fatos históricos se infiltrar delicadamente (a morte de Charles de Gaulle, por exemplo, a luta pelo aborto na França, auge do movimento feminista).

Para quem está na faixa dos 40, pode talvez ter conhecido algumas Annas na escola ou na rua, filha de pais comunistas, ou mesmo ter sido uma criança como ela, na peculiar atmosfera política dos anos 60/70. Não seria distante afirmar que essas crianças dos anos 60 são filhos da revolução, produtos de um sonho que foi dissipado com o desmonte das lutas políticas. Esse olhar para trás proporcionado pelo filme é positivo e humano.

A Culpa é do Fidel! tem curiosa sintonia com Persepolis, o relato pessoal da artista gráfica e cineasta iraniana Marjane Satrapi sobre seu amadurecimento no turbilhão político do Irã, e também seu exílio. O fato de serem meninas as personagens torna tudo ainda mais interessante, essas mini-feministas, mafalditas revolucionárias! Não deixei de lembrar que as semelhanças com o ilme de Cao Hamburger são apenas temáticas, pois o menino brasileiro permanece despolitizado durante todo o filme. Seja o que for, a melhor coisa dessas crianças é que elas não querem exatamente mudar o mundo, mas apenas sobrevivê-lo.

Filme visto no Cinema da Fundação, novembro 2007

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