Thursday, September 11, 2008
Fernando Meirelles: Entrevista
Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
Ensaio Sobre a Cegueira foi publicado em 1995. Três anos mais tarde, seu autor, o português José Saramago, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. 13 anos depois, o livro vira filme após uma divulgada relutância inicial do seu autor no sentido de liberá-lo para as imagens do cinema, e a adaptação chega pelo olhar do cineasta brasileiro Fernando Meirelles.
A carreira de Meirelles no cinema, depois de anos na TV e na publicidade, vem sendo pontuada por transformações enérgicas de livros em filmes. Reprocessou a narrativa multi-facetada de Paulo Lins sobre a comunidade carioca de Cidade de Deus na descarga de adrenalina hiperativa e ultra-violenta que é a sua versão filmada (2002), já um dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro e o principal diplomata desse cinema no exterior, nesta década.
Sua obra seguinte, O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, Inglaterra/EUA, 2005), fez Meirelles mergulhar no universo do thriller internacional com tintas conspiratórias, a partir do livro do britânico John Le Carré. O resultado foi um produto de mercado surpreendentemente humano sobre a espetacular divisão que existe entre o mundo rico e o mundo pobre.
Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, Brasil/Canadá/Japão, 2008), o filme, estréia esse mês no país depois de abrir o Festival de Cannes, em maio, com uma recepção que dividiu a crítica internacional. Foi em Cannes que eu conversei com Meirelles, dias depois da primeira projeção do filme. Aspecto curioso desse realizador é a sua transparência na conversa com jornalistas, e nessa entrevista ele admitiu uma certa decepção com as primeiras reações ao filme. Falou também sobre adaptar o livro e sobre o papel de São Paulo nas imagens apresentadas de uma história originalmente localizada em lugar nenhum.
Kleber Mendonça Filho - Adaptar uma obra literária sobre cegueira para a mídia cinema. O que lhe levou a crer que isso daria certo?
Fernando Meirelles – Eu não achei que daria certo, é verdade. Eu li o livro há dez ou 11 anos atrás, fiquei muito impressionado e imediatamente fui atrás dos direitos para adquirí-lo através da editora de Saramago no Brasil. Saramago, no entanto, não quis vender, ele me falou que "o cinema destrói a imaginação". Eu simplesmente encerrei o caso. Seis anos depois, Niv Fichman, o produtor, comprou os direitos e, de repente, o projeto voltou para mim. De quatro mil diretores no mundo hoje, porquê eu? Entrei no projeto e voltei aos aspectos que me atraíram ao livro. A fragilidade da civilização, que finge ser sólida e sofisticada, mas que, se algo dá errado, tudo entra em colapso. Basta ler os jornais hoje em dia e vemos que estamos indo nessa direção, o alerta contra Sars, o Tsunami na Ásia, o furacão Katrina, em Nova Orleans. Ao voltar para o livro, percebi no processo de adaptação as muitas camadas da história, que eu tentei explorar no filme.
KMF – Historicamente, produções internacionais como esta mostraram que representam a morte artística de um projeto. Como foi a combinação de tantas nacionalidades (brasileiros, japoneses, canadenses, americanos, mexicanos) para chegar a um consenso?
FM – Pura sorte de ter achado uma química. Não tivemos uma briga ou nenhum problema, foi tudo tão tranqüilo. É por isso que nos créditos de abertura, colocamos "esta é uma produção bem independente". Espero adotar esse modelo para sempre, daqui para frente.
KMF – Como observador do seu trabalho, percebe-se que você tem levado sua carreira cada vez mais longe do Brasil, O Jardineiro Fiel já apontou isso, Ensaio Sobre a Cegueira confirma esse lado. Nós podemos contar com o seu talento para narrar histórias brasileiras, feitas no Brasil?
FM – Esse filme foi filmado em São Paulo, com técnicos brasileiros: o fotografo, o montador, os técnicos de som, os efeitos especiais digitais... São todos brasileiros. Na verdade, eu acho o filme muito brasileiro. A história é universal, sem uma localização exata, mas trata-se de uma história sobre a humanidade, e o Brasil faz parte dela. O filme é falado em inglês pelo fato de eu ter sido convidado para fazer um filme falado em inglês. Há também o fator orçamento, Ensaio Sobre a Cegueira não poderia ter sido feito em português. Quando você faz um filme em português, ele não pode custar mais de quatro ou cinco milhões de dólares, caso contrário ele não irá se pagar. Pela estrutura do filme, ele é um projeto caro, e isso exige o inglês. De qualquer forma, eu estou trabalhando numa mini-série para a Globo que chama-se Som e Fúria, e estarei filmando até o mês de outubro, toda filmada no Brasil. Para falar a verdade, eu acho que para trabalhar em português, a melhor coisa atualmente é fazer televisão. Tanta gente vê, e no cinema, não tanto. Ainda por cima, é tão bom poder trabalhar com U$ 20 milhões, ao invés de ter que brigar com dois ou três milhões de dólares. Filmar no Brasil significa estar trancado nas limitações, é uma questão prática.
KMF – Seu inglês é muito bom, mas você teve reservas sobre trabalhar o texto em inglês? É diferente o tom?
FM – É claro que eu prefiro o português. Eu falo inglês e conheço o significado das palavras, mas para cada palavra há um significado obscuro ali por trás que eu conheço muito bem na minha língua mãe, mas não no inglês. Se eu falo "mangueira" em português que, em inglês, traduz-se como 'mango tree', para o estrangeiro é apenas a imagem fria de um tipo específico de árvore. Para mim, lembro do meu avô, do sabor, do aroma, vai além da palavra. Quando filmo em português, troco o uso das palavras o tempo todo, enquanto no inglês, me falta a poesia da língua, algo que lamento muito não ter.
KMF – Você falou sobre o colapso da civilização. Algum conflito interno lhe levou a enxergar Ensaio Sobre a Cegueira como um projeto pessoal?
FM – (pensativo) Talvez não deveria compartilhar isso aqui, mas a verdade é que em 2005, por algum motivo inexplicável, eu me vi em depressão. Vale saber que aquele havia sido um excelente ano, minha família é sólida, saudável, sou casado há 22 anos e bem, eu estava divulgando O Jardineiro Fiel, tudo ia bem, indicações ao Oscar, etc. Mesmo assim, chegou o final do ano e me vi devastado e pensei em nunca mais fazer cinema, me vi de cara para a parede. Decidi parar durante 2006, olhar para dentro de mim mesmo e achar o problema. Não vou dizer o que achei, claro, mas voltei, fiz esse filme e percebi que ele é um pouco isso. Ensaio Sobre a Cegueira faz a indagação, "quanto teremos que sofrer para poder enxergar?". Esse processo pessoal me pareceu semelhante ao processo da zona de quarentena, porque depois dali as pessoas são capazes de reconstruir.
KMF – Essa zona de quarentena não deixa de lembrar um pouco o próprio Festival de Cannes, que lhe convidou para assumir um das posições mais radicais de auto-exposição do mundo do cinema, que é abrir o festival com um filme. Como lida com tanta exposição?
FM – A exposição, ou a quantidade de exposição faz parte do trabalho, e acho que parte desses meus problemas que relatei aqui vieram exatamente dessa questão, "a exposição", algo que, obviamente, eu não aprecio. Por outro lado, por fazer o tipo de cinema autoral que faço, faz parte acompanhar os filmes, para o bem e para o mal. Aqui em Cannes, por exemplo, eu tenho tido que lidar com as piores criticas que já tive na minha carreira. Não é uma experiência agradável, mas, mesmo assim, estou confiante de que o filme terá o seu público. Para levantar meu astral, os produtores me enviaram críticas do The Guardian, Corriere della Sera, Daily Telegraph, Los Angeles Times, um clipping de críticas positivas de jornais diários que é o que o grande público lê, diferente das publicações voltadas para a indústria, que foram negativas. Acho que esse filme precisa de um certo tempo para decantar, você assiste, talvez não gosta muito, mas depois ele volta à sua cabeça e você passa a enxergá-lo de maneira diferente. Sinto isso um pouco com os filmes de Wong Kar Wai, que inicialmente me aborrecem um pouco. Depois, eles ficam na minha cabeça e não vão embora.
KMF – Você aprendeu alguma coisa com essas criticas?
FM – Eu não as li, apenas fui informado. Ler críticas tira o meu foco. Eu já li criticas, e o que ocorre é que durante dois dias você fica respondendo, ponto por ponto, dentro da sua cabeça. É destrutivo.
KMF – Você disse certa vez que tinha medo de fazer um filme de 'zumbi', e o filme, de fato, tem uma estrutura semelhante.
FM – Eu não gosto desse gênero e meu medo vinha do fato de a primeira imagem ser a de um grupo de pessoas andando por ruas desertas. Creio que o filme não vai nessa direção.
KMF – Isso não deveria ser visto como algo negativo, há grandes 'filmes de zumbi', como os de George Romero. Há uma cena no supermercado que lembra muito Dawn of the Dead.
FM – Eu não conheço esse filme.
KMF – Qual a maior dificuldade na adaptação?
FM – Estabelecer a história. Apresentamos os personagens como no livro, a partir do momento em que eles já estão ficando cegos. Se fosse um filme hollywoodiano, tenho certeza que seriam criados mecanismos para aliviar isso, talvez dois dos personagens teria um passado, nós nos envolveríamos com eles e aí sim, eles ficariam cegos. É claro que cogitamos criar um primeiro ato só para apresentar os personagens, mas fugiríamos da história. No livro, eles não têm nomes ou passado, e isso terminou sendo uma decisão arriscada. Outro aspecto que vai contra a cartilha é não termos personagens agradáveis, os principais não despertam muita simpatia. Temos uma prostituta, um ladrão, o médico que é arrogante, a esposa boba.
KMF – Você fala da "esposa boba", mas no livro, ela não é uma "esposa boba".
FM – Talvez ela não seja, quero dizer, no livro ela é um tanto constante, creio que no filme tentamos construir um arco maior para ela no sentido do que ela era e no que ela se transformou.
KMF – Qual foi a participação de Saramago no filme?
FM – Inicialmente, achei que ele não estava muito interessado no projeto. Depois começamos a trocar inúmeros emails e senti que ele estava dentro, mostrando ter expectativas enormes em relação ao filme. Chegou até a dizer que a única peça que estava faltando numa grande exposição dedicada a Saramago em Lisboa era o filme, "com o filme, minha vida estará completa", o que, claro, me fez entrar em desespero.
KMF – Na coletiva de imprensa logo após a primeira exibição de Ensaio Sobre a Cegueira, você mencionou a existência de dois filmes, um no sentido da imagem, outro no sentido do som.
FM – Usamos artifícios para trazer a noção de cegueira para a platéia, como as imagens saturadas de branco, imagens multiplicadas para passar desorientação de espaço nos personagens. Em relação ao som, há uma construção no sentido de diálogos cobrirem imagens não relacionadas. Tenta passar a idéia de desconectar o som da imagem, reforçando a ilusão de cegueira.
KMF – Há um bom momento onde o garoto esbarra numa mesa, mas a mesa só se materializa no quadro com o esbarrão. Que tipo de pesquisa vocês fizeram no sentido de expressar em imagens a cegueira?
FM – Criamos uma oficina para atores e figurantes, composta por três sessões de quatro horas cada, todos vendados. Grupos de até 25 pessoas saíam com o responsável pela oficina, Chris de Voort, pelas ruas, treinando os sentidos, muitas vezes seguindo sons. Tínhamos jogos como, por exemplo, achar comida através do olfato, às vezes lutar pela comida como na própria obra. Eu aprendi muito com essas oficinas. Às vezes, depois de duas horas com os olhos vendados, alguns começavam a ficar tristes, deprimidos, paravam e começavam a chorar como criança. Outros ficavam agressivos. Nas cenas mais fortes, emotivas, alguns atores pediram para usar lentes de contato especiais que bloqueiam a visão, pois era demais pedir para atuar e ainda processar a atuação especial de estar, ou agir, cego.
KMF – Sua parceria com César Charlone na fotografia é duradoura, como é dirigi-lo?
FM – Não se dirige César, você compartilha com ele, ou você mesmo é dirigido. O eixo do trabalho foi desconstruir imagens, muita coisa no processo de pós-produção. Sobre a imagem do filme, eu estou muito orgulhoso do trabalho de efeitos especiais realizado na O2, no Brasil, efeitos 3D, 300 ao todo, nunca antes feitos, mas agora sabemos como fazer.
KMF – Sobre essa questão, seu filme traz para o espectador brasileiro um sentido de imagem incomum dentro de uma idéia de cinema nacional, uma vez que vemos São Paulo, cidade tão fotografada dentro do próprio Brasil, travestida com tintas de um cinema fantástico. Algo comum para os americanos, mas não para o brasileiro.
FM – É verdade.
KMF – De qualquer forma, para um livro que se passa em "qualquer lugar", São Paulo mostra-se muito claramente reconhecível como São Paulo, com imagens do Minhocão, particularmente, bem presentes.
FM – Eu tentei resistir, filmamos bem mais do que está no filme. Pensei que para os brasileiros, paulistanos particularmente, seria um clichê bem grande. Por outro lado, pensei que, por ser uma produção internacional que será vista em todo o mundo, o clichê vale para apenas 5% desse público, o brasileiro.
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