Thursday, September 11, 2008
O Mistério do Samba
Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
Lançado há duas semanas no Rio de Janeiro e em outras capitais, alguns críticos afirmaram que O Mistério do Samba seria a resposta brasileira a Buena Vista Social Club (1999), o filme do alemão Wim Wenders que explorou factual e comercialmente o tesouro musical de uma certa geração de artistas cubanos. Curioso que, de fato, há semelhanças. O documentário de Carol Jabor e Lula Buarque de Holanda também nos dá um guia na pessoa da estrela brasileira da MPB Marisa Monte, que, como o músico americano Ry Cooder no filme de Wenders, nos apresenta nomes importantes da chamada Velha Guarda da Portela. O resultado é agradável, e o som do filme excelente.
O Mistério do Samba, composto por imagens cristalinas em película e também material mais cru em vídeo e de arquivo, é claramente o fruto de anos de trabalho. A relação de Monte com o material funde-se com o seu próprio esforço de pesquisa, utilizado ao longo da sua trajetória e, em especial, no seu álbum de 1998, Tudo Azul. Ver Monte abrindo uma fita cassette cheia de papéizinhos que sugerem segredos da MPB ainda desconhecidos revela o tipo de riqueza de artistas - em grande parte, negros - que compuseram músicas que o filme celebra, e que já fazem parte da trajetória desta cantora branca, popular e brasileira.
A presença de Monte, aliás, aparenta certo desconforto inicialmente. De óculos escuros e um tanto ciente demais da presença da câmera, misto incerto de entrevistadora, apresentadora e/ou admiradora, ela ameaça transformar-se no elefante na sala de estar do filme. Essa sensação diminui frequentemente, mas pode ser exemplificada numa sequência talvez questionável rumo ao final, onde ela não apenas junta-se a toda a velha guarda, mas parece ficar com o melhor e mais potente microfone, sua voz soberana sobre a de todas as outras estrelas. Se por um lado, é selada a união do clássico com o moderno, por outro nossa guia vira rainha nu lugar já repleto de realeza.
O filme cresce quando são os personagens descobertos que ganham voz, seja falada ou, especialmente, cantada. Zeca Pagodinho e Paulinho da Viola falam, esse último responsável pelo LP de 1970 Portela Passado de Glória; mas são os compositores desconhecidos, já idosos, homens e mulheres, que viveram suas vidas como artistas iluminados na Portela, mas que na rotina diária ganharam a vida como pintores, operários da construção civil e especialistas em refrigeração.
O filme alinha-se com pelo menos três outros, todos 'samba movies' cariocas, frutos de cineastas jovens, realizados ao longo dos últimos dez anos: os curtas Nelson Sargento (1998), de Estevão Ciavatta, Coruja (2001), de Márcia Derraik e Simplício Neto, sobre os colaboradores de Bezerra da Silva, e o longa Cartola (2007), dos pernambucanos Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Outros dois curtas vêm à mente: Meu Cumpade Zé Ketty, de Nelson Pereira dos Santos, e Batuque da Cozinha, de Ana Azevedo.
A percepção de que boa parte desses artistas teve vida operária, distante dos royalties e do luxos das gravadoras, parece unir esses filmes, em especial os colaboradores de Bezerra da Silva que Coruja revelou com enorme carinho. Em O Mistério do Samba, um sentido bonito de passado domina o filme, pois todos lembram e lembram, aspecto de um documentário que, de certa forma, é também sobre ser velho e viver com as glórias do passado. O papel das mulheres (tias Doca, Surica e Eunice) ganha interessante observação, numa época em que elas tinham a permissão de, basicamente, cozinhar e serem musas.
Bom falar um pouco sobre som. Nessa era do 'som digital' vendido como acessório de ostentação do cinema, ouvir filmes raramente resulta em prazer, ou cafuné para a cabeça e as orelhas. Com a tecnologia e o já conhecido som de seis canais (o já famoso 5.1), os filmes muitas vezes soam como demonstrações de resistência para tímpanos e alto falantes. No entanto, é bom poder ouvir um filme brasileiro pequeno como esse onde a incrível qualidade de gravação e mixagem sonora não está a serviço de explosões, mas de uma música que faz a sala vibrar com a força concreta do surdo, e que vozes, cuícas e cavaquinhos lhe cercam de todos os lados numa sinfonia brasileira. E, como o filme em si, tudo flui de maneira tranquila, prosaica.
Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, Setembro 2008
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