Thursday, September 4, 2008

'Linha de Passe' e os Meninos do Brasil


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Com Linha de Passe (Brasil, 2008), o cinema de Walter Salles fica claramente dividido em dois: o dos filmes que ele dirigiu sozinho, e os que fez em afetuosa parceria com Daniela Thomas. Todo filmado em locações numa São Paulo cidade-monstro, essa crônica sobre uma mãe e seus quatro filhos estreou no último Festival de Cannes, de onde saiu com a Palma de Melhor Atriz para Sandra Corveloni. Linha de Passe, cinema de interesses humanos e sociais, mostra respeito por um grupo de pessoas que, findo o filme, soam tristemente inviabilizadas pela corrida da vida na grande banda pobre da América Latina.

Sobre essa divisão no cinema de Salles, ao lado de Thomas os enfoques sugerem personagens do hoje, da classe média e da classe pobre, imprensados por acontecimentos maiores. A falta de perspectivas da era Collor e a busca pelo externo em Terra Estrangeira (1995), a instabilidade emocional na virada do milênio em Copacabana, de O Primeiro Dia (1999), ser imigrante e pobre num país rico no belo curta Loin du 16ème, de Paris, Eu Te Amo (2005). De alguma forma, tudo soa muito palpável e imediato.

Sozinho, Salles revela-se um explorador de formatos e temáticas, e seus filmes soam mais distantes de nós, de certa forma. Do thriller de corte americano do seu primeiro A Grande Arte (1991) ao moderno melodrama latino de Central do Brasil, ele usou dinheiro estrangeiro em projetos distintos como a investigação de um personagem e de seu continente, filme de prestígio 'world cinema' que é Diários de Motocicleta (2005), e ainda arriscou-se corajosamente num produto hollywoodiano no suspense Água Negra (Dark Water, 2005), não muito bem sucedido. Abril Despedaçado (2002) talvez traduza o tipo de impasse que surge quando se espera muito de um cineasta, artística e contratualmente.

Em Linha de Passe, há uma sensação de alívio pela visão de mundo transmitida, e o nível do filme é alto, especialmente se visto dentro da produção brasileira. Nesse âmbito atual, a visão de mundo tem como norma o fascínio que não sai de moda de os ricos filmarem os muito pobres, perversão capaz de gerar coisas abomináveis como Tropa de Elite ou Estômago. Há pouco mais de um mês, Era Uma Vez (que continua bem nos cinemas, com interesse renovado a cada semana), filme de Breno Silveira, uma obra digna, mostra que a idéia básica de tensão social nos nossos filmes é um moreno da favela apaixonar-se por uma loirinha (da beira-mar) de Ipanema.

Bem mais sóbrio e ciente, Linha de Passe nos dá cinco personagens num tom de investigação auxiliada por um certo pesar. Há um tom talvez claro de que Salles e Thomas querem cuidar dessas pessoas, uma compaixão que ameaça enfraquecer o filme, mas eles bem sabem que mostrá-los contra o ambiente paulistano já seria respeitoso e grande o suficiente.

Será que essa compaixão manifesta-se em momentos como a festa onde Dario (Vinicius de Oliveira, dez anos depois de Central do Brasil) parece estar sendo corrompido com drogas por novas amizades da classe média? Ou pela sensação de teleguia que marca o envolvimento de um dos irmãos com o crime? São aproximações breves e preocupantes de um filme normalmente tão natural, mas que ameaça resvalar para o clichê social.

Em grande parte, no entanto, Salles e Thomas conseguem manter o nível alto. A câmera fluente (Mauro Pinheiro Jr.) traduz a agressividade de São Paulo como pouca coisa vista, especialmente no trânsito e no caos arquitetônico. É muito interessante para o espectador ver a cidade tão realista uma semana antes da estréia de Ensaio Sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles, que dá a São Paulo uma leitura próxima do cinema fantástico.

A figura materna forte (Corveloni), presente com freqüência na filmografia de Walter, tenta administrar seus pintinhos, cada um deles (bela idéia do roteiro de Bráulio Mantovani, Daniela Thomas e George Moura) com pais, biotipos e mesmo cores diferentes, são os meninos-Brasil, a imagem deles é cheia de naturalidade.

Todos procuram se dar bem no susto, seja trabalhando como motoboy, sonhando com o difícil sucesso no futebol, agarrando-se desesperadamente ao modelo nacional de protestantismo ou, no caso do menino-Brasil por excelência, o único negro da casa, querendo saber quem ele é. No processo, desenvolve fascínio por ônibus urbanos. Curioso que dos cinco, três unem-se a elementos que se movimentam constantemente (motos, bolas, ônibus), ficando a mãe atônita e o filho crente os dois praticantes da constância (nunca, aliás, plenamente conquistada).

Acompanhar cada um deles, em núcleos, resulta numa experiência ora instigante, ora problemática. São precisas as observações do filme para com a forma bem brasileira (freyreana, porquê não?) de um racismo 'carinhoso' entre os da mesma família, por exemplo. Essas brincadeiras entre or irmãos, e onde o caçula é a maior vítima, nos dizem algumas verdades sobre a cultura brasileira, e são ricas.

Por outro lado, a proposta estabelece um corta-corta entre cada núcleo, algo estabelecido já na abertura de ritmos urbanos e futebolísticos que Linha de Passe segue à risca como projeto arquitetônico durante toda a projeção. Isso torna-se previsível e mesmo manipulador, como se alguém estivesse a mudar de canal sempre. Cinema é manipulação, mas apenas algumas soam mais livres do que outras.

A conclusão, em especial, sugere um virtuosismo de montagem que, se olharmos com atenção, não parece casar com o que de fato se passa na tela, uma vez que desdobramentos de cada personagem resultam sóbrios e até mesmo discretamente pessimistas. A sensação de organização milimétrica de destinos fotogênicos (o chute que irá decidir toda uma vida, um feito e tanto nas ruas, uma imagem místico-religiosa de purificação, a redenção do arrependimento...) trai um filme que enfoca vidas que, como tantas, entre ricos e pobres, encontram-se em constante desordem. Além de Corveloni, os meninos João Baldasserini, Vinícius, José Geraldo Rodrigues e Kaique Jesus Santos (o caçula Reginaldo) são incentivados pela escola Fátima Toledo com resultados excelentes.

Filme visto no Lumiere, Cannes, Maio 2008

3 comments:

Anonymous said...

Muito bom o post, Kleber! Só não entendi essa parte do Abril despedaçado traduzindo o impasse entre o lado artistico e o contratual de Salles.. A realização do filme passou por algum dilema nesse sentido?

[]s

CinemaScópio said...

Como observador, creio que o Abril é produto de um realizador experimentando um tipo de cinema "mundial", meio "lugar nenhum" que, pelo menos para mim, parece ter ficado no meio do caminho. Sei tb que é um filme de parceria com o produtor do Central, Arthur Cohn, profissional experiente e poderoso. Algo ali não parece ter fluído bem, e isso vejo na tela. Acho que Walter tem tido a coragem de testar, e tvz esteja chegando a uma fórmula boa para ele, o que não é fácil com a quantidade de ofertas que deve receber.

Anonymous said...

Hmm, acho que entendi o que você falou. Eu também senti uma coisa no meio do caminho, na verdade algo perto do fim do filme que me deixou me sentindo no meio do caminho em relação a história. Precisamente, o pós-morte de Pacu, aquela cena da reação do desespero dos pais, e depois a cena do mar, que fecha o filme, não sei se isso também contribuiu com essa sua sensação. Só que depois eu passei a enxergar esse final não como uma descontinuidade por fragilidade do filme, mas como um caminho que fazia sentido para a descontinuidade daquele código de honra, daquele espaço, do fluxo da história mesmo. Eu pelo menos fiquei satisfeito com o filme :P

Só encontrar a Bolandeira ali, já me saltou muito significativo, gostei demais. Aliás, essas referências a outros filmes brasileiros seria alguma marca de Walter nos filmes dele? Não venho colecionando essas coisas não, mas acabei reparando num certo momento "A opinião pública" em Linha de passe, quando o pastor ordenava a cadeirante a levantar-se e andar, e ela caía. Só preferia que o filho da Cleuza não tivesse se voltado contra Deus diretamente, e sim contra a sujeira do método do seu pastor.

[]s