Friday, February 13, 2009
Garapa (Panorama)
José Padilha, após a sessão de Garapa, no Cine Star 7, em Potsdamer Platz, Berlim.
por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
A principal participação brasileira no Festival de Berlim 2009 é o documentário Garapa, de José Padilha, exibido na mostra paralela Panorama Dokumente. Padilha, claro, volta ao festival que, ano passado, concedeu o Urso de Ouro ao horroroso Tropa de Elite, seu filme anterior, e sua primeira incursão na ficção. De volta ao relato documental (surgiu em 2002 com o riquíssimo Ônibus 174), Padilha provavelmente irá provocar debates outra vez no Brasil junto à crítica com seu filme novo, que usa o cinema para apresentar um retrato literal, letra por letra, da fome, utilizando como personagens registrados três famílias cearenses do interior, vivendo em condições sub-humanas que a câmera intimista mostra em detalhe e em preto e branco.
O filme abre com uma citação a Josué de Castro, que reflete sobre a existência de duas fomes: a ausência de comida que leva o organismo a definhar, e a fome constante composta pela má alimentação que levará, de outra forma, ao colapso do organismo a longo prazo.
Curiosamente, o tema “fome” foi abordado brilhantemente na atual safra de cinema internacional pelo cineasta inglês Steve McQueen, a partir de um cenário sensorial, humano e político no seu Hunger (fome), sobre os protestos na Irlanda do Norte em 1981 que levaram o membro do exército republicano irlandês Bobby Sands a definhar via greve de fome. McQueen transcende em muito o seu tema através do próprio cinema, no caso dele interessadíssimo pelo elemento humano, interesse que vai do corpo à alma.
Garapa, claro, é um filme diferente, e um doc, que aborda um cenário brasileiro social crua e diretamente. Como uma espécie de cronista nacional de “grandes temas” sociais (a violência em Ônibus 174 e Tropa de Elite), Padilha se debruça sobre a fome de maneira literal. Vale destacar que, se em Ônibus 174 tínhamos um panorama social e humano bem equilibrado, provável reflexo dos múltiplos ângulos que seu material de arquivo foi capaz de fornecer, sem falar na competência de realização e carpintaria de Padilha, é fácil identificar em Garapa o realizador de Tropa de Elite, particularmente na super-simplificação de uma questão complexa.
Não parece existir aqui um conceito que transfome em cinema a sua tese-filme. O que temos é uma câmera abelhuda que se mistura ao cotidiano interno das três famílias, onde acompanhamos crises conjugais, acusações de traição, abandono e, especialmente, a alarmante não-dieta dos personagens.
Em close-ups de microscópio, vemos as perebas nos rostos e torsos de crianças e adultos, disputadas por moscas que, em algumas imagens, podem ser a própria câmera. Uma colher de açúcar servida a um garoto pequeno pela sua mãe arranca um quieto "urghh" da platéia, a mesma mãe que nos informa que o feijão é tão ruim que não seria má idéia carregá-lo numa espingarda, como bala.
Acompanhamos a longa caminhada de duas mães que voltam para casa sem leite, pois o estoque havia acabado na venda. Dois cortes, em especial, me chamaram a atenção num documentário sobre miséria, e esses dois cortes vêm no preciso momento que personagens cospem no chão.
Cria-se, portanto, uma narrativa minimamente dramática da escola corte seco e cresce no espectador o desconforto não tanto pela dureza do tema, mas pela sensação de a linguagem proposta que ganha contornos de um reality show do inferno. Nesse sentido, o filme é limitado, um cinema pobre, e que isso não seja confundido com a condição social dos personagens.
Em momento algum Garapa nos lembra que as mazelas de uma sociedade podem, talvez, estar ligadas à total falta de educação, falta esta que leva à falta de cidadania. É a fome e a miserabilidade por elas mesmas, e só, algo que do ponto de vista da informação não acrescenta zero a nada para o espectador consciente de que o mundo é um lugar onde o ser humano ainda passa fome.
Um pai de família, por exemplo, é alcoólatra e capaz de vender as portas e janelas da casa, chamando a mulher de ‘puta’. Ele talvez tenha sífilis, assunto discutido longamente durante uma visita da sua esposa (com três filhas pequenas) a uma assistente social. O papel do governo (Lula), cuja logomarca abre o filme (“Governo Federal – Um Brasil de Todos”) ganha destaque com pelo menos um depoimento onde fica claro que o Fome Zero é o único auxílio que tantas famílias têm na sua sub-existência, e que estariam muito pior sem o projeto.
Ainda mais problemático o filme torna-se quando essas tragédias de vidas privadas e destituídas de cidadania são interrompidas pela voz de Padilha (na locação, atrás da câmera) fazendo uma pergunta ao seu personagem do tipo “o senhor quer ter mais um filho?”. Acreditamos que o cinema é bem mais livre e rico de possibilidades do que Garapa poderá levar alguns espectadores a crer que ele é, um cinema que usa as amplas aberturas do meio para falar sobre a condição humana sem necessariamente usar a imagem chapada pelo que ela é, e nada mais além disso.
Sobre cinema, e vendo as imagens em preto e branco ultra-granulado (clichê pós-moderno da realidade dura, preset de software de edição de uma imagem ‘crua’ numa época da cine-tecnologia que permite a um adolescente filmar em alta definição colorida), temos os sons efetivamente ‘mono’ do filme (algo destacado por Padilha na sua apresentação do filme no Cine Star 7, em Potsdamer Platz, onde o filme passou ontem à tarde), e ainda um letreiro final mudo que impõe silêncio sepulcral auto-solene na sala.
Juntando tudo isso, é impossível não resgatar um pouco da história do próprio cinema brasileiro através do manifesto de Glauber Rocha, “A Estética da Fome”. Naquele manifesto, a idéia de fome não existe apenas na falta de comida, mas na pobreza como um todo, e seguia para refletir como retratar essa pobreza em imagens de um cinema possível para com o tema, para a natureza humana, para a nossa idéia política.
Eu perguntei a Padilha ao final da sessão sobre como ele teria chegado àquele conceito de crueza usado em Garapa, e se ele pensou na reflexão de Rocha sobre um cinema cuja imagem estaria à altura da identidade cultural de um terceiro mundo que precisa ser retratado por nós mesmos.
Ele respondeu: “Eu nunca li o manifesto de Glauber. Eu não me interesso por manifestos, não acho que faz parte do meu trabalho dizer a outros colegas cineastas como se deve filmar, estabelecer regras, não obstante o fato de eu respeitar muito Glauber. O conceito desse filme foi faze-lo da maneira mais simples possível, subtraindo tudo o que não é essencial ao processo, como cor, um som cru que sai apenas da tela, nenhum efeito digital. Tudo isso reflete a ausência de tudo que aflige essas pessoas, o que explica o conceito por trás desse filme.”
Fime visto no Cine Star 7, Berlim, Fevereiro 2009
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1 comment:
Boa análise. Final Forte.
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