Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmailcom
O carinhoso e preciso termo "Ego-Lombra", acredito, surgiu na ceninha cultural pernambucana (me corrijam se estiver errado), usado corriqueiramente para obras das artes plásticas, vídeo arte, cinema ou mesmo música. Denota algum ato artístico-masturbatório de amor à sua própria arte (amor a si próprio) em seja lá que estética, e é percebida quando o bom senso do observador começa a questionar o porquê de o autor insistir num determinado tique depois que o mesmo tique extrapolou a capacidade de o mesmo observador ter boa vontade do olhar para com a obra em questão. Esse parágrafo não veio da Wikipedia, mas acabo de escrever tendo em mente os últimos dois filmes argentinos que vi por aqui, ontem e hoje.
Ontem, fui ver o novo filme do Lisandro Alonso na Quinzaine, Liverpool, e achei muito ruim, com a sensação de que todo o mimo autoral que a crítica vem jogando em cima dele (e do cinema argentino em geral) pode ter subido à cabeça como vinho ruim.
Para completar, saí agora de La Mujer Sin Cabeza, o novo de Lucrecia Martel (competição), e fiquei com sensação parecida. Efetivamente, são duas decepções de um cinema argentino que vem me impressionando de maneira consistente (ver vídeo do Walter Salles aqui no blog). Resta saber se a ego-lombra será fator marcante na nova safra, algo, aliás, que não observei em Leonera, de Pablo Trapero (também na competição).
O que me chama a atenção nos filmes é exatamente o fator ego-lombrático, que praticamente os aniquila como narrativas, mas, de toda forma, garante ainda um orgulhoso selo 9001 de cinema autoral. A "desdramatização" que Walter menciona no vídeo no cinema de Alonso parece atingir congelamento absoluto na história de um marinheiro que arranja um tempo para visitar a pequena localidade onde nasceu. É o cinema dos longos planos, mas, de fato me pareceram estéreis e de uma monotonia realmente atordoante, enlouquecedora.
Já o filme de Martel é menos grave, mas finalmente frustrante. O ponto de partida é interessante, e nos primeiros cinco minutos, achei que veria um filme excelente. Uma mulher, dirigindo numa estrada, bate em alguma coisa, plano fixo com câmera instalada dentro do carro. Um detalhe delicadamente mórbido está à vista para quem conseguir ver, no vidro da janela do motorista. Ela leva um tempo para se recompor e não consegue buscar coragem para olhar pelo retrovisor e entender o que ela atropelou. Um animal? Uma pessoa?
Essa mulher (madura, bonita) é casada, e passará todo o filme atordoada e confusa, o que resulta numa experiência apenas parcialmente interessante, pois a recusa de Martel de nos dar situações de interesse além do fato em si sofre pelo efeito acumulativo. Diferente de O Pântano ou Menina Santa, onde vinhetas ganhavam união dentro de acontecimentos maiores num todo coeso, em La Mujer Sin Cabeza somos obrigados a ver pedaços da vida cotidiana soltos, para os quais nossa personagem reage muito pouco.
E não chegamos ainda ao referido fator ego-lombrático: a imagem do filme. Martel usa pela primeira vez o formato largo scope, e acho que essa é a primeira vez que alguém usa scope para mostrar menos... O filme é todo composto por planos não apenas fechados em termos de quadro, mas também de distancias focais mínimas, ou seja, está tudo, em grande parte, fora de foco, com algum elemento (um retrovisor, um rosto no canto da tela, o vidro de uma janela) em foco.
As idéias relacionadas ao estado de espírito da personagem (algo na pia da cozinha, elementos pretos na parte final, a ponte) ameaçam trazer inteligência, mas são tão apavoradas com a possibilidade de serem de fácil acesso para qualquer espectador comum, que terminam registrando como tentativas e não realizações bem sucedidas. Ao final, fica um triste "só isso?", em scope. Pena.
Filmes vistos no Noga Hilton (Liverpool) e Debussy (Mujer), Cannes, 2008
Ontem, fui ver o novo filme do Lisandro Alonso na Quinzaine, Liverpool, e achei muito ruim, com a sensação de que todo o mimo autoral que a crítica vem jogando em cima dele (e do cinema argentino em geral) pode ter subido à cabeça como vinho ruim.
Para completar, saí agora de La Mujer Sin Cabeza, o novo de Lucrecia Martel (competição), e fiquei com sensação parecida. Efetivamente, são duas decepções de um cinema argentino que vem me impressionando de maneira consistente (ver vídeo do Walter Salles aqui no blog). Resta saber se a ego-lombra será fator marcante na nova safra, algo, aliás, que não observei em Leonera, de Pablo Trapero (também na competição).
O que me chama a atenção nos filmes é exatamente o fator ego-lombrático, que praticamente os aniquila como narrativas, mas, de toda forma, garante ainda um orgulhoso selo 9001 de cinema autoral. A "desdramatização" que Walter menciona no vídeo no cinema de Alonso parece atingir congelamento absoluto na história de um marinheiro que arranja um tempo para visitar a pequena localidade onde nasceu. É o cinema dos longos planos, mas, de fato me pareceram estéreis e de uma monotonia realmente atordoante, enlouquecedora.
Já o filme de Martel é menos grave, mas finalmente frustrante. O ponto de partida é interessante, e nos primeiros cinco minutos, achei que veria um filme excelente. Uma mulher, dirigindo numa estrada, bate em alguma coisa, plano fixo com câmera instalada dentro do carro. Um detalhe delicadamente mórbido está à vista para quem conseguir ver, no vidro da janela do motorista. Ela leva um tempo para se recompor e não consegue buscar coragem para olhar pelo retrovisor e entender o que ela atropelou. Um animal? Uma pessoa?
Essa mulher (madura, bonita) é casada, e passará todo o filme atordoada e confusa, o que resulta numa experiência apenas parcialmente interessante, pois a recusa de Martel de nos dar situações de interesse além do fato em si sofre pelo efeito acumulativo. Diferente de O Pântano ou Menina Santa, onde vinhetas ganhavam união dentro de acontecimentos maiores num todo coeso, em La Mujer Sin Cabeza somos obrigados a ver pedaços da vida cotidiana soltos, para os quais nossa personagem reage muito pouco.
E não chegamos ainda ao referido fator ego-lombrático: a imagem do filme. Martel usa pela primeira vez o formato largo scope, e acho que essa é a primeira vez que alguém usa scope para mostrar menos... O filme é todo composto por planos não apenas fechados em termos de quadro, mas também de distancias focais mínimas, ou seja, está tudo, em grande parte, fora de foco, com algum elemento (um retrovisor, um rosto no canto da tela, o vidro de uma janela) em foco.
As idéias relacionadas ao estado de espírito da personagem (algo na pia da cozinha, elementos pretos na parte final, a ponte) ameaçam trazer inteligência, mas são tão apavoradas com a possibilidade de serem de fácil acesso para qualquer espectador comum, que terminam registrando como tentativas e não realizações bem sucedidas. Ao final, fica um triste "só isso?", em scope. Pena.
Filmes vistos no Noga Hilton (Liverpool) e Debussy (Mujer), Cannes, 2008
7 comments:
puxa, Kleber, quero acreditar que você simplesmente não estava no seu melhor dia para avaliar o novo filme da Lucrecia. não consigo crer que a maior cineasta da atualidade se prestou a "só isso". mesmo assim, obrigada pelas impressões. vou esperar o lançamento de La mujer sin cabeza por aqui ou, se não aguentar, terei que ir pessoalmente até a FLIP e tirar isso a limpo com a diretora salteña :D
Me desanimou um pouco essa impressão negativa em relação ao filme da Martel, cineasta que tive felicidade de descobrir recentemente. O Pântano é uma coisa absurda, me deixou chapado. La Mujer Sin Cabeza era uma das grandes expectativas para esse festival. Agora, é esperar pra ver.
alou kleber!
li numa sentada todos os textos e gostei bastante da cobertura. me chama a atenção a forma como escreves, sem afetações pseudo-intelectuais, o que faz com que a gente se sinta próximo do teu texto e ao mesmo tempo seguros de estarmos lendo algo com qualidade e conteúdo.
pra não ficar só na puxação de saco, achei o texto sobre ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA um tanto quanto desprovido de opinião. enquanto texto é muito bom, mas enquanto crítica, eu esperava que te posicionasses mais, nem que seja com o divertido EGO-LOMBRA ou o simplesm ACHEI RUIM.
parabéns aí, abraços, gus spolidoro
vi los muertos do alonso na mostra de 2004 e quase morri de inveja.
hoje não sei se o impacto seria o mesmo. esse lance aí de monotonia, de qquer forma, era o mesmo, mas ainda assim emocionava, porque ele sabia exatamente onde tava o espírito do tempo, da imagem, etc. não parecia lombra.
tenho adorado a cobertura, tá ótima, se eu fosse você ficava aqui, publicando em blog, pra sempre. coloque mais bastidores, sempre que você dá espaço a eles me divirto.
visite aqui quando puder: http://www.tanque.mypodcast.com
abração
Nenhum dos comentários foram direcionados ao Alonso. Diretor de extremo talento. E é ao escolher os excluídos para sua narrativa, que o Lisandro Alonso universaliza o seu cinema.
Ao ler esse texto, me passou pela cabeça que, por já acompanhar a sua cobertura e suas críticas há alguns anos, já ter concordado e discordado várias vezes nesse meio tempo, acho possível que eu goste do filme da Lucrecia. Fiquei ainda mais curioso a partir de algumas considerações, ao invés de cair no pessimismo. Essa é uma ótima sensação, porque os seus textos não me soam impositivos, Kleber, pelo contrário, se mostram altamente abertos ao diálogo e a possível contra-argumentação. O que, por ora, infelizmente se mostra impossível, afinal não há como debater sem ter tido a experiência estética em si.
E esse ano, mais que nos outros, decidi dar voltas na internet e acompanhar Cannes por vários sites, mas terminei voltando pra sua cobertura mesmo e ficando só nela, com rápidos vislumbres de sites estrangeiros e sempre olhando o que o Eduardo Valente anda escrevendo. Primeiro porque esse espaço é sem dúvida o mais completo, com a atualização mais freqüente e rápida (e com o uso das imagens, vídeos, ficou mais interessante - essa idéia do blog foi ótima), mas sem dúvida, terminei voltando principalmente por essa vasta leitura anterior de seus textos. Não partimos do zero, digamos, de modo que não fico desanimado, nem acho que você estava num dia ruim com essa crítica, só que discordâncias estéticas podem acontecer (tanto quanto as concordâncias).
Por exemplo, quando você contrapõe um 'todo coeso' dos filmes anteriores da Martel, com "os pedaços da vida cotidiana soltos" deste, fico morto de curiosidade de como se dá esses pedaços e isso só o filme pode me oferecer. Assim como os planos "não apenas fechados em termos de quadro, mas também de distancias focais mínimas" causam a mesma sensação. Fiquei pensando que ambos os elementos que você usa pra tecer críticas, podem me despertar boas impressões. Enfim... veremos. Tudo ainda está no campo das possibilidades, mas a leitura de seus textos em cobertura, independente do gosto ou do de desgosto com os filmes, sempre me causa a sensação dupla de adiantar e saciar uma forte expectativa por um lado, ao mesmo tempo em que torna a vontade de ver maior ainda.
abraço e parabéns pela cobertura mais uma vez.
obrigado! Tenho tido muito esse tipo de retorno, energiza bastante. Agora, as condições nas quais o referido texto (e boa parte dos outros) foi escrito beira o inacreditável. Nem sempre vc acerta, mas na melhor das hipóeteses, a média, espero, é boa. Valeu mesmo.
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