Sunday, February 1, 2009

Changelling



Lábios procuram o filho perdido no passado.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Há um mês, registramos os 100 anos de Manoel de Oliveira, que trabalha no seu mais novo filme, Singularidades de uma Rapariga Loura, com provável estréia no próximo Festival de Berlim. A Troca (Changelling, EUA, 2008), que estreou no último Cannes, é a mais nova peça na obra de Clint Eastwood, que aos 78 anos nos dá dois filmes feitos e lançados em 2008. Esse é o primeiro que chega ao Brasil, o segundo, em cartaz nos EUA, chama-se Gran Torino (lançamento no Brasil em março). Não deixa de ser um privilégio ter um Eastwood apresentando suas narrações tão distintas da norma atual.

Por ser prolífico e pontual, já escrevemos sobre Eastwood e seu cinema ao longo dos últimos anos sempre com esse misto de respeito e admiração, talvez uma postura conservadora de reverência a um tipo de escrita que vem carregada de tempo, e é possível que haja algo de bom nisso. O segredo aqui é entender onde fica a real admiração pelo cinema e a condescendência com o autor que pode, de fato, vir a fazer um filme não muito bom.

Tem sido uma leva consistente de dramas americanos essa de Eastwood, e que parecem funcionar com público e crítica. Têm surgido como candidatos constantes às honrarias da chamada "temporada de prêmios" de Hollywood, e a atual temporada começa neste domingo com O Globo de Ouro.

Destaca-se nessa obra o trabalho de alguém que parece emular nos seus filmes novos o estilo do cinema clássico americano do passado. Menina de Ouro (Oscar de Atriz, para Hilary Swank, e Direção para Eastwood) sugeria ter como raiz os dramas realistas de boxe da Warner nos anos 30, A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima (lançados com intervalo de apenas dois meses) pareciam releituras de filmes de guerra dos anos 40. Já A Troca passa como um melodrama dos anos 30, o tipo de coisa que uma Claudette Colbert estrelaria na época.

Essa busca por um cinema do passado ganha clara sugestão já nos primeiros segundos de projeção de A Troca com a utilização da vinheta original dos anos 30 da Universal, no lugar da moderna animação digital colorida que vemos normalmente. O que segue é a proposta de sermos transportados para a Los Angeles de 1928, num trabalho de reconstituição visual repleto de pequenos e grandes detalhes, o maior prazer deste filme. Planos gerais de ruas e da cidade do passado não são poupados.

Christine (Angelina Jolie, lábios e lágrimas em personagem de papelão) é a mãe solteira de Walter (Gattlin Griffith). Funcionária da empresa telefônica (lindo cenário), ela divide as obrigações profissionais com as maternas numa época em que as mulheres ainda lutavam por espaços de chefia. Chegando em casa um dia, Walter sumiu, o que estabelece a base desta história real.

Lembranças de Los Angeles – Cidade Proibida (L.A Confidential) surgem no sentido de os dois filmes terem como forças narrativas a corrupção, incompetência e pura malvadeza histriônica da polícia da cidade na época. Christine é transformada em objeto de marketing ao virar peça chave de um plano absurdo de tons surrealistas dignos de um pesadelo, uma vez que as autoridades entregam a Christine (com presença da imprensa) um garoto que não é o seu filho. Por mais que ela explique que aquele garoto estranho não é dela, termina levando-o para casa.

O tom novelesco do filme (porém filmado como grande cinema de tela larga) encontra tradução na presença de John Malkovich, como um pastor radialista que denuncia os podres da polícia, aliado poderoso de Christine. Malkovich marreta sua interpretação quase tanto quanto a enfermeira loira do sanatório que recebe a pobre mãe injustiçada, e essa enfermeira parece estar sob empréstimo de Olga, de Jayme Monjardim.

Entre o fascínio de um filme antigo e a sua própria obesidade, o espectador poderá ver-se constantemente interessado e frequentemente confuso. Com 140 minutos não muito fluentes, A Troca passa de mãe coragem - "eu quero meu filho!" – a filme de serial killer com gradual investigação, terminando com drama de tribunal, cenário muito freqüentado pelo cinema americano, onde verdades vêm à tona e a moral da lei é conquistada e restituída aos bons de espírito.

Curiosamente, a moral é de fato devolvida, mas Eastwood fica devendo à sua personagem parte importante da sua própria alma, sob o peso do mistério e do horror de ter um filho que sumiu.

Impossível não ignorar o sentido legalista de Eastwood, seu horror ao abuso de crianças (Sobre Meninos e Lobos ecoa nesse novo filme) e o fim que criminosos do tipo merecem por crimes hediondos: a pena de morte, uma outra instituição americana. O filme cresce, no entanto, ao (ironicamente) alongar-se ainda mais na sua duração desengonçada para nos mostrar que não é fácil encontrar paz mesmo vendo seu algoz sendo executado na sua frente, ou mesmo sendo uma cinéfila constante apaixonada por Clark Gable e Claudette Colbert.

Na sua estréia em Cannes, A Troca parecia uma obra inacabada. Se o tom melodramático folhetinesco (gente boa contra gente ruim) era aquele mesmo, seu aspecto inchado e à procura de polimento sugeria um filme que poderia ser melhorado. Revendo-o essa semana no Recife, A Troca é o mesmo filme. Esperemos Gran Torino.

Filme revisto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009.
Visto originalmente em Cannes, sala Lumiere, maio 2008.

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