Friday, February 6, 2009

Ricky


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O realizador francês François Ozon está com um filme na competição do Festival de Berlim, chama-se Ricky, e é sobre um bebê. É provável que o leitor venha a descobrir o grande segredo do filme bem antes de Ricky chegar ao Brasil, mas não será por aqui. Acreditamos que certas descobertas (apelidados de "spoilers" no jargão da internet) devem ser feitas na sala de cinema, e não na imprensa. Segredos como esse em Ricky são raros, e fazem parte da própria construção do filme, feito por um realizador que parece ter o prazer de testar novos caminhos ao longo da sua carreira.

Ricky é o décimo longa metragem desse realizador de 41 anos. Cada filme de François Ozon divide bastante crítica e público, e o conjunto da obra revela-se uma virtual pesquisa de tons, estilos e atmosferas. Suspeitamos que esse talvez revele-se seu filme mais bem sucedido junto ao público.

Ricky deixou a imprensa por vezes incrédula no que estava vendo, e finalmente encantada com esse filme pequeno que começa como um drama realista ambientado num subúrbio parisiense (apartamento pequeno de classe média baixa). A mãe (Alexandra Lamy) é solteira e operária, a filha de sete anos Lisa (Mélusine Mayance, provavelmente a personagem mais discretamente forte do filme) é solitária, e vê com dissabor a chegada de um namorado da sua mãe, o espanhol Paco (Sergi Lopez).

A união gera uma gravidez, e logo Lisa terá companhia na forma de um bebê, Ricky, criatura que Ozon filma com a honestidade que bebês merecem, sem precisar carregar no quesito fofura que eles inevitavelmente têm. Também não poupa os detalhes mais sujos que essas coisinhas inevitavelmente produzem, e logo o espectador está totalmente envolvido, especialmente via olhar cético da irmã. Natural e progressivamente, Lisa perde o espaço para o recém chegado Ricky.

Aos poucos, no entanto, Ricky revela-se uma criança especialíssima, e o filme, crônica socialmente realista típica do cinema francês, toma rumos inesperados que ora lembram David Cronenberg, ora Walt Disney, com pitadas de uma fábula de Hans Christian Andersen.

Reações dos pais, de Lisa e, finalmente, da sociedade como um todo, permanecem totalmente criveis, e Ricky termina passando como o relato verdadeiro e bem narrado de uma história fantástica publicada num jornal sensacionalista, ou seja, algo realmente inusitado.

O filme é tão equilibrado na sua união de cinemas diferentes que o espectador tem a clara sensação de que uma certa idéia de Hollywood (o cinema fantástico, os efeitos especiais digitais) foi morar num apartamento cinzento de um subúrbio trabalhador francês.

Há algo de muito forte nessa mistura, pois Ozon lida aqui com a questão da identidade cultural de todo um cinema. O mercado nos ensinou a ver (e a esperar) que certas coisas simplesmente acontecem num determinado tipo de filme, mas que nunca ocorrem em outros tipos de cinema. Por mais que E.T. e Poltergeist, ambos da fábrica Spielberg, tenham nas suas bases um certo realismo, suburbano seus desdobramentos fazem parte de uma cultura de cinema (a americana) onde o fantástico já é esperado. Na verdade, é praticamente a norma.

Ozon quebra isso lindamente com o seu Ricky de dentro de uma idéia de estabelecida cinema francês. Sobra ainda um final inspirado que poderá nos levar em direção a um diretor que é capaz de deixar abertas portas para a visão emotiva de mundo apenas possível dentro do olhar de uma criança. Super bom.

Ontem, Ozon recebeu a reportagem do JC para uma entrevista no hotel Marriott, em Potsdamer Platz, onde nos falou sobre seu interesse em investigar diferentes gêneros. "Eu não escolho filmes tão diferentes entre si de maneira consciente, mas talvez escolha detalhes desses filmes seguindo instintos meus. E acho que alguns desses instintos são ligeiramente perversos, não tenho nenhum problema em afirmar isso!"

Filme visto em Berlim, fevereiro 2009

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