Tuesday, February 3, 2009

Revolutionary Road


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Os envolvidos com Foi Tudo um Sonho (Revolutionary Road, EUA/Inglaterra, 2008), sobre o naufrágio de um casamento, mostram-se muito bem casados, de certa forma, extra-filme. Leonardo di Caprio e Kate Winslet estiveram juntos há 12 anos em Titanic, sobre o afundamento literal de um navio. Winslet, que atuou num filme não muito diferente, Pecados Íntimos (Little Children), é casada com o diretor deste filme novo, Sam Mendes, que também freqüentou esse tipo de mal estar no seu super estimado Beleza Americana (1999). Foi Tudo um Sonho, que estréia hoje, tem três indicações ao Oscar, Figurino, Direção de Arte e Ator Coadjuvante para Michael Shannon.

Mendes (é inglês) vem do teatro, o que talvez explique sua queda pelo frufru em cena. Seu Beleza Americana ganhou cinco Oscars tratando seus personagens desesperados como bonecos de vudu, tudo muito cínico e afetado, com ornamentos de rosas vermelhas aqui e ali. Para quem queria mais afetação ainda, seu filme seguinte foi um banquete, Estrada Para Perdição (2002), adaptação de uma história em quadrinhos sobre um matador. Seu terceiro filme, Jarhead (2006), uma coleção de clichês superficiais sobre a guerra (no caso, do Kwait) que não ia, nem vinha.

Isso talvez faça de Foi Tudo um Sonho o seu melhor filme, até agora, o que talvez não diga muito sobre o filme, ou sobre o toque Mendes. De qualquer forma, ele parece melhorar o olhar sobre as pessoas no mesmo tipo de ambiente suburbano filmado em Beleza Americana. Há uma diferença, no entanto, um outro tempo. Será que Hollywood se solta mais ao distanciar-se da realidade e do tempo imediatos?

Estamos nos anos 50, década marcada pela idéia projetada de felicidade nos subúrbios americanos do pós-guerra, as chamadas "famílias nucleares" eletrodomésticas, limpeza total e um ar de felicidade de comercial de detergente. E todos fumam como se não houvesse amanhã.

Pela primeira vez, as atenções redobradas de Mendes para a decoração encontram eco nos conflitos humanos. April e Frank Wheeler (Winslet e DiCaprio) se conhecem numa festa novaiorquina, e ambos se descobrem como pessoas especiais. Os planos futuros de ela tentar uma carreira de atriz são imediatamente destruídos na cena seguinte, com o fracasso de uma peça de grupo amador de teatro onde ela tinha o papel principal. Esse fracasso é significativo, negando todas as possibilidades do sonho americano, seja em relação à celebridade, do bem sucedido, o constrangimento se ser uma perdedora.

Enquanto April preenche desconfortavelmente suas funções de mulher do lar, mãe de dois filhos (que o filme esquece totalmente de desenvolver, as crianças são nulidades presentes), Frank vê-se seguindo os passos do pai, um zangão anônimo que trabalhou numa grande empresa de equipamentos de escritório, em Manhattan. Ele detesta o mesmo trabalho e, talvez como forma de melhorar o ânimo de suas atividades no trabalho, passa a flertar fisicamente com uma das secretárias (Zoe Kazan, neta do cineasta Elia Kazan).

Proprietários de uma casinha branca na Rua Revolutionary, os dois são vistos com admiração/inveja no convívio social, embora saibam intimamente que talvez sejam "o melhor dos iguais". Desesperada por uma saída rumo à felicidade, April inventa um plano mirabolante de fuga que os levará a morar em Paris, onde Frank terá todo o tempo do mundo "para se achar", enquanto ela passará a ser a provedora.

Talvez seja o segmento mais discretamente triste do filme, quando o casal liga os motores para a fuga, com Paris em mente, verdadeiro ato de revolução pessoal que irá causar enorme desconforto nos amigos mais próximos. Tal ato é exatamente o que muitos gostariam de fazer, e não farão nunca, e essa psicologia do casal amigo é muito típica nas relações humanas, o distúrbio via reflexo de você mesmo.

Em meio a desdobramentos que cheiram realistas para com a vida prática versus vida sonhada, surge o personagem de um louco (Shannon, tão bom em Bug, e que Hollywood decidiu que sempre interpretará malucos), o filho problemático da corretora imobiliária dos Wheeler (Kathy Bates, perfeitamente matrona), sobrevivente de 37 sessões de eletrochoque. Problemático, aliás, é pouco, o caba é uma lapa de doido que só existe em filmes como esse, o doido 24 horas para o roteiro, grilo falante da moral sugerida, e que Shannon parece resignado em fazer, quem viu Bug sabe que ele faz bem (sua participação em World Trade Center deprimente, de outra forma).

Esse personagem, John, na verdade, parece incorporar repentinamente o roteirista, explicando tudo o que nós já estávamos entendendo sobre o casal em crise. É dele a frase mais impactante do filme, "muita gente vê o vazio, mas é preciso coragem para ver a total falta de esperança", perfeita para citar em textos como esse.

Não é exatamente um filme alegre, e não poderia ser. Mendes orquestra sua inhaca humana que sustenta-se bem na capacidade de vermos April e Frank como gente, e os dois atores parecem totalmente sincronizados nesse sentido. Se Winslet acrescenta peso só de estar respirando em cena, DiCaprio parece existir em três frentes distintas: macho de corte antigo na empresa, pai de família apaixonado e salva vidas frustrado do próprio casamento, sem sair-se bem em nenhuma das frentes.

Curiosamente, o segmento final soa desnecessário, acrescenta peso ao que já estava se equilibrando fragilmente, adquirindo o tom insuspeito até então de um novelão, piorado por uma cena final que Mendes parece ter resgatado dos arquivos de Beleza Americana. V

A imagem assinatura deste filme, no entanto, acontece bem antes, e poderá ilustrar a reação de casais casados, andando calados num longo corredor (de shopping), em direção ao carro novo da família.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009

1 comment:

João Solimeo said...

Bom ver blog de volta, Kléber. Concordo com você sobre a cena do corredor. Creio que ela funcione exatamente pelo fato de ser uma das poucas em que haja silêncio entre os dois. Achei o filme muito "falado", muito teatral. Casais em crise brigam, sim, mas creio que são os silêncios constrangedores os momentos mais tristes de um casamento falido.

Quanto a Beleza Americana, de um tempo pra cá me parece que virou "moda" falar mal do filme. Tá, talvez não fosse mesmo a oitava maravilha do mundo, mas era um filme acima da média, em minha opinião. E tinha toques de humor que fazem muita falta a este "Foi apenas um sonho" (título brasileiro deprimente, não?)
Abs.