Sunday, February 1, 2009
Perambulando pela memória dos Outros
Em Paris, em janeiro, as exposições de/para Dennis Hopper e Serge Gainsborug, e o novo filme de Agnés Varda.
por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
PARIS - Memória e filmes caminham juntos, o cinema não existe sem os arquivos mantidos, as imagens guardadas e os relatos pessoais sobre o tempo. O tema essencial aparece atualmente com destaque na França através de duas exposições e um filme novo, todos compostos de fragmentos do passado, em imagens e sons. Sem fazerem parte de um projeto único e coordenado, a existência dos três num mesmo momento em Paris mostra o tipo de sintonia que há entre artistas. São eles o ator, diretor e artista plástico americano Dennis Hopper, o também multi-artista francês Serge Gainsbourg e a cineasta francesa Agnès Varda.
Na verdade, me parece que as personas artísticas de Hopper e Gainsbourg ganham validação moderna cada vez mais forte no nosso hoje dentro de uma visão "multi", tão aplicada nas multidisciplinas contemporãneas. Os dois são temas de exposições construídas a partir de arquivos pessoais, os deles. São dois multi-artistas cujas carreiras no cinema e na música (respectivamente) de certa forma eclipsaram suas conquistas em outras áreas. Agora, suas importâncias ganham esse alcance que nos leva a enfoques variados.
A Cinemateca Francesa mostra-se generosa no resgate de Hopper fotógrafo e artista plástico ao lado do ator e cineasta de Easy Rider (1969), da mesma forma que a Cité de la Musique revela o Gainsbourg não apenas compositor, mas também "o homem renascentista das expressões artísticas", inclusive do cinema.
É significativo que a exposição Dennis Hopper & Le Nouvel Hollywood (até 19 de janeiro na Cinemateca Francesa, Paris) comece com uma projeção do homem num monólogo ricamente ilustrado e marcado pela frase "eu me lembro...", uma série de reminiscências que cobrem, em dez minutos, os últimos 50 anos de visões pessoais e históricas na voz e no rosto de Hopper. "Eu me lembro do rosto de James Dean..." é a primeira, "...Eu me lembro de Barack Obama fazendo campanha para a presidência dos EUA..." a última.
Boa parte das lembranças oferecem um retrato pessoal dos EUA, sendo ele um protagonista de peso na cultura, ao mesmo tempo em que atuou como um retratista desse tempo. O subtítulo da expo nos lembra que Easy Rider, que Hopper dirigiu e atuou em 1969, redefiniu os caminhos de um novo cinema americano, livre e autoral, a partir dali, resultando numa leva sensacional de filmes na primeira metade dos anos 70.
Essas lembranças de Hopper também existem impressas em papel, pois ele fotografou tudo e todos desde o início dos anos 60 (amigos o chamavam de "turista", com câmera sempre presente), e essas fotos oferecem olhar intimista de gente como Paul Newman, Andy Warhol e Jane Fonda.
Mais curiosos ainda são as reinterpretações do homem Hopper via obras de Julian Schnabel (também cineasta) e Warhol, integrando a expo, ou a maneira como Hopper se mostrou ao longo da sua carreira em filmes tão variados como Juventude Transviada, Apocalypse Now e Veludo Azul, ou publicidades de carro onde cita ele mesmo e seu Easy Rider.
A sensação de passar duas horas dentro de um grande armazém de objetos e idéias pessoais também existe em Gainsbourg 2008 (até 1o de março na Cité de la Musique, Paris), uma outra carga de imagens e sons sobre o artista que faleceu em 1991. O eixo da exposição é associar livre e fielmente as múltiplas influências de Gainsbourg como criador (especialmente a música, as letras e as imagens) numa época em que a sua obra torna-se cada vez mais conhecida longe da França, onde, de certa forma, manteve-se restrita ao longo da sua carreira.
Melodista agraciado e letrista iluminado com radar afiado para o mundo, a política e as mulheres (suas musas Brigitte Bardot e Jane Birkin), a exposição oferece o arquivo (música, filmes, acervos digitais manipuláveis pelo visitante) como forma de entender um criador do passado cuja obra continua totalmente relevante no presente.
E Agnès Varda é a terceira parte desse passeio não planejado em janeiro de 2009 pelas memórias guardadas em arquivos áudiovisuais. Seu filme novo, em cartaz na França, chama-se Les Plages d'Agnés (As Praias de Agnes), um diário de vida que pode ser visto como um documentário narcisista, mas que não merece realmente o comentário nesse tom negativo. Há um claro desejo da sua autora no sentido de compartilhar (mais uma vez) seu rico arquivo pessoal, do topo dos seus 80 anos de idade, deixar claro que viveu a vida e que foi importante.
Recentemente, Ernesto Barros programou no Apolo (Recife) uma temporada de filmes de Jacques Demy, o companheiro de Varda (falecido em 1990), e com quem colaborou no cinema e na vida. A presença de Demy em As Praias de Agnès soa como a leitura de velhas cartas pessoais, e persiste no filme a sensação de uma artista que precisa compartilhar com o mundo um pouco da sua vida, balanço arquivado de imagens e sensações que ela filma em esquetes documentais, e outras figurativas de tom sentimental.
É um filminho tocante, de alguém que quer deixar imagens e sons como herança. Isso nunca é ruim.
Num determinado momento, ela nos mostra Serge Gainsbourg no estúdio, ou um Harrison Ford lembrando com sarcasmo que o estúdio o rejeitou para papel principal de um projeto de Demy em Hollywood, logo após o sucesso de seus filmes nos anos 60 (Os Guarda-Chuvas do Amor, Palma de Ouro em Cannes 1963).
À certa altura, Varda mostra a Palma conquistada pelo marido e o seu próprio Leão de Ouro em Veneza 1985 (por Sem Teto Nem Lei-Vagabond), ameaça de auto-parabenização, pensa o espectador, mas usa os troféus para mostrá-los sumindo no tempo.
É um filme pessoal, home movie lançado nas salas, e que sugere registrar os amigos e os fatos não tanto na forma que eles realmente existiram e ocorreram, mas da maneira que a portadora das imagens e das memórias quer que sejam lembrados.
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