Thursday, June 5, 2008

O Banheiro do Papa

Kleber Mendonça Filho
O Banheiro do Papa (El Baño del Papa, Uruguai/Brasil, 2007), filme de César Charlone e Enrique Fernandez, passou no Festival de Cannes 2007, conquistando o olhar europeu com seu cinema latino com algo de exportação. A história de pequena escala mostra um pai de família uruguaio que investe na construção de uma latrina para tentar lucrar com a visita de João Paulo II à sua cidadezinha, em 1988. Passa como uma parábola irônica sobre as relações comerciais e culturais entre países irmãos na América Latina. Deixa também curiosa sensação de nos dar um comentário político sobre um tipo específico de terceiro mundo com cheiro de alegoria sobre o Mercosul, embrionário nos anos 80 e estabelecido em 1991.

Não é muito difícil pensar no ideal de um mercado comum, aqui bagunçado pelas necessidades da pobreza, ao vermos Beto (César Troncoso), a imagem clássica da formiga operária, usando sua bicicleta velha para carregar pequenos contrabandos (que não fazem mal a ninguém) entre a fronteira brasileira e a uruguaia. Ele tem mulher e filha.

Acompanhado de colegas muambeiros que também pedalam longas distâncias, Beto é ainda explorado pelo poder personificado num policial corrupto com trejeitos de vilão. Esses muambeiros do bem tentam praticar o mini capitalismo, que consiste de comprar barato e revender mercadorias só um pouco menos baratas. E é a visita papal, com direito a papa móvel e missa em descampado, que será uma promessa de alguma prosperidade (fugaz), em especial por uma esperada presença maciça de fiéis brasileiros...

Curiosamente, essa presença ausente do grande Brasil, motor econômico da região e dos personagens, tem o mesmo efeito irônico das promessas não cumpridas via Igreja Católica, que o filme claramente critica não apenas em imagem, mas também em texto. Com conflitos humanos que lembram algo do neo-realismo italiano, adaptados para uma realidade latina, O Banheiro do Papa gera uma empatia interessante, muito embora a sua linguagem marcada por maneirismos e um olhar que me pareceu de fora para dentro termine deixando um sabor estranho na boca.

Charlone, hábil fotógrafo uruguaio, é parceiro de Fernando Meirelles em Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Já filmou o suficiente para que sua marca pessoal seja identificada. Suas imagens são cheias de energia, permitindo uma naturalidade dos atores que não parece encontrar reflexo no tratamento do todo. Suas cores são dessaturadas, talvez para expressar o cinza dos personagens e da pequena localidade pobre e sem saída.

É emblemático, por exemplo, que o filme nos leve a uma montagem final de trabalhadores com expressões cansadas, em poses fotogênicos estáticos que aparecem com freqüência marcante em cine-crônicas sociais latinas (de Amarelo Manga a Diários de Motocicleta). Já um clichê, estabelece um tipo estranho de compaixão calculada, talvez a definição para o filme no seu todo.

Filme visto no UCI Tacaruna, Junho 2008, Recife

Sunday, June 1, 2008

'Backdraft' na Universal




Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Eu tinha 11 anos, chegou a notícia de que a TV Tupi canal 6 estava pegando fogo, na Avenida Cruz Cabugá, Recife (creio que onde hoje fica a redação do Diario de Pernambuco). Minha preocupação era perder no fogo Batman, ChiPs, Emergência e outros programas que eu assistia no canal. De fato, o canal 6 nunca mais voltou (e as séries só reapareceram mais de década depois já na TV a cabo). E hoje há a notícia de que a Universal sofreu um incêndio, achei que merecia destacar por alguns motivos.

Mais uma vez há essa preocupação que mistura realidade e cinema de saber o que foi perdido, sem falar na maneira interessante como a realidade de um incêndio invade um mundo de fantasia. Sobre possíveis perdas, será que os negativos de A Marca da Maldade (Touch of Evil), Tubarão (Jaws) e O Estranho Que Nós Amamos (The Beguiled) estão seguros?

Essa semana, li sobre o relançamento de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, com a informação de que os negativos foram perdidos num incêndio no laboratório parisiense que os estocava, no começo dos anos 70.

Pelo que tem saído nas agências internacionais sobre o incidente de hoje na Universal, foi afetado um arquivo de 40 000 fitas de vídeo, imagino que O Homem de Seis Milhões de Dólares, A Mulher Biônica, Esquadrão Classe A devam ter queimado, sem saber ainda se eram matrizes!? Longe de ser uma grande perda para a humanidade, mas...

Mas o que me chamou a atenção mesmo foram as fotos da Universal e seu incêndio. A primeira aqui postada (a de cima) é a mais interessante. Olhem de perto, vemos um mundo de ficção filmada sofrendo a intervenção de um desastre real, e a imagem jornalística é bem pragmática.

Do lado direito, canto inferior, dá pra ver a ponta da casa de Norman Bates, de Psicose. Esse telão azulado no lado esquerdo é um fundo infinito usado para filmar cenas de mar em estúdio, com um tanque enorme na frente (usado em The Truman Show, Tubarão, Godzilla, achei a foto 3 num dia normal no estúdio).

Tem mais, e essa é a parte mais interessante da foto, o que não deixa de lembrar todo o espanto em torno do 11 de setembro numa sociedade tão competente em criar catástrofes artificiais. Dá para ver o set de Guerra dos Mundos (War of the Worlds) com o avião que caiu numa vizinhança de classe média (asa, fuselagem e casas destroçadas), cenário catastrófico que fotografa bem até mesmo nessa foto tirada de longe e sem frescuras. Atrás, longe, o incêndio, verdadeiro.

Isso tudo me lembra uma história intrigante, que revela o caráter muito americano de fabricar realidades. Nos anos 60, numa praia da Califórnia, escavações encontraram acidentalmente um sítio arqueológico revelador. Artefatos egípcios! Era nada mais nada menos do que props deixados na areia da versão de 1928 de Cleopatra. É Hollywood.