Saturday, April 11, 2009

Gabriel Mascaro / "Um Lugar ao Sol"




"Acho que ainda convivemos com o eco de um Projeto de intelectuais que se imaginaram, por um momento, ter o poder e missão de ser o porta-voz das classes populares, como se os sujeitos marginalizados não pudessem engendrar sua própria idéia de representação social ou visibilidade."

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O mais novo longa metragem pernambucano teve estréia mundial no Buenos Aires Festival Internacional de Cine – Bafici, na Argentina. Um Lugar ao Sol, filme de Gabriel Mascaro, passa num dos festivais de perfil independente e autoral que mais ganham importância no circuito internacional. O documentário investiga enfoque inédito no Brasil, a parcela reduzida da sociedade que mora em coberturas, e segue, depois do Bafici, para um segundo compromisso em Nyon, na Suíça, no importante festival de documentários Visions du Réel. O filme foi um dos contemplados, mês passado, pelo Edital do Audiovisual do Governo de Pernambuco com uma verba importante para a sua difusão em festivais e salas de cinema.

Um Lugar ao Sol teve início como um projeto de curta metragem e logo ganhou corpo de longa metragem através de material registrado no Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Com imagens rodadas em 16mm e em digital pelo fotógrafo Pedro Sotero, Mascaro registrou entrevistas com oito moradores de coberturas, símbolo internacional de status social, personagens localizados pela produção a partir do que o realizador chama de “um curioso livro que mapeia a elite e pessoas influentes da sociedade brasileira”.

Para Mascaro, “o filme traz um debate sobre desejo, visibilidade, insegurança, status e poder”, através das paisagens. É um filme sobre isolamento social e visão de mundo que representa mais uma peça do cinema pernambucano que, mais do que nunca, abandona o ideal rural e folclórico tradicional do passado voltando-se para a vida na cidade.

Um Lugar ao Sol discute também o atual estado de abandono no qual encontram-se as silhuetas inchadas de cidade brasileiras grandes como Recife, tomadas por uma praga arquitetônica que vende a verticalização como um modelo a ser seguido.

O tema também está sendo abordado em dois outros filmes feitos no Recife, os curtas-metragens Menino Aranha, da jornalista Mariana Lacerda, e Eiffel, do crítico de cinema Luiz Joaquim. O primeiro é uma reflexão sobre a arquitetura do medo no Recife, e o segundo um comentário discretamente demolidor sobre as duas verrugas brancas de cimento e concreto construídas no Cais de Santa Rita, as torres da construtora Moura Dubeux. Menino Aranha e Eiffel serão exibidos no próximo Cine PE, neste mês de abril.

Nessa entrevista feita por email, de Buenos Aires, onde esteve para apresentar seu filme, Gabriel Mascaro reflete sobre a representação cinematográfica das classes altas no Brasil e sobre a própria altura como forma de proteção.

O conceito de observar classes localizadas "acima" na sociedade é uma idéia que não deveria soar ousada no cinema brasileiro, mas é. De onde surgiu e como você desenvolveu o conceito desse filme?

GM - Infelizmente o filme termina por ser uma idéia ousada. O ideal era que não fosse. Temos no Brasil algumas poucas referências de filmes nessa busca, como o ‘Opinião Publica’, do Arnaldo Jabor, o ‘Retrato de Classe’, dirigido por Gregório Bacic... Mas acho impressionante a quase ausência de documentários envolvendo grupos sociais de classe média alta e elite no Brasil. Acho que ainda convivemos com o eco de um Projeto de intelectuais que se imaginaram, por um momento, ter o poder e missão de ser o porta-voz das classes populares, como se os sujeitos marginalizados não pudessem engendrar sua própria idéia de representação social ou visibilidade. Toda uma lacuna e vácuo de produção de conteúdo sobre a classe média e elite no Brasil se cristalizou. Quando tive a idéia de fazer o filme Um Lugar ao Sol, queria poder acessar excertos do imaginário deste grupo social que pouco havia conhecido, por ter crescido numa família de classe media baixa e por pouco ter visto filmes sobre. Mas resolvi fechar este dispositivo elegendo potenciais personagens que morassem em valiosas coberturas de prédio. Um filtro natural que desdobraria ainda uma reflexão que transcenderia a idéia de grupo social (evitando o olhar sociologizante), e abriria a possibilidade no filme de pensar sobre o modelo de cidades verticais que estamos construindo. Todos os meus verbos estão no futuro do pretérito porque terminou que eu não consegui acessar com expressividade o grupo social preterido. Resultou que apenas 8 personagens me cederam entrevistas e o filme termina por evidenciar a minha própria inacessibilidade. Um Lugar ao Sol pode ser ousado, mas não é pretensioso. O filme não arquiteta uma representação classista e não se propõe a tratar os personagens como um bloco de cimento homogêneo. Mas sim sobre o tipo de sedimento ideológico que estamos construindo.

Há no Brasil a idéia de altura como mecanismo de proteção? Em que níveis isso opera?

GM - É surpreendente perceber quantas variáveis influenciam na escolha desse modelo arquitetônico vertical de um segmento da classe média/alta e elite brasileira em viver em elevados prédios. Mas o que mais me interessa nessa questão é indagar sobre o momento que essa busca deixa de ser uma opção social protecionista e passa a ser o sonho, o desejo real e irrefutável, tendo a ‘ cobertura’ como utopia e plenitude. As crianças nascem imbuídas do sonho do apartamento próprio, com grande vista para o entorno, tendo todas as opções de lazer dentro do condomínio e toda experiência comunitária dentro dos muros do prédio. E esse sonho é vendido diariamente pelas construtoras e pouco paramos para pensar sobre a cidade que queremos viver.

O que se passa com a paisagem do Recife, atualmente?

G - No Recife existe um desconfortável clima de triunfo deste projeto de paradigma arquitetônico de verticalização, logo, deste paradigma de sociedade. É perturbador. Uma construtora pernambucana vende seu projeto imobiliário como contemporâneo, evoluído, que utiliza o slogam: ‘se a vida é feita de escolhas,aqui você vai poder ser o que quiser’. Um lugar ao Sol se propõe a trafegar pelo imaginário social do desejo. O que me motiva como realizador é poder entender o desejo das pessoas e saber o que elas gostariam de ser, e não que elas são.

O filme surgiu como um curta-metragem. Foi natural a passagem para o longa?

G - O projeto foi contemplado como um filme de curta-metragem para ser finalizado em 35mm num edital de pernambucano. O projeto se mostrou tão complexo para mim que terminou rendendo um longa-metragem naturalmente. Encontrei reais possibilidades de distribuir o filme em projeções digitais e isso terminou que deu uma nova vida ao filme, onde me sinto mais contemplado conceitualmente. Depois de mais de 6 anos de gestação, o filme inaugura sua trajetória no BAFICI e logo em seguida tem a premiere européia no Festival Visions Du Reel, na Suíça, um importante festival europeu englobando a cultura do documentário.

Os Delírios de Consumo de Becky Bloom



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Os Delírios de Consumo de Becky Bloom (Confessions of a Shopaholic, EUA, 2009) não é a porcaria que seu material de divulgação me levou a crer que seria. O trailer sugere uma imitação sem vergonha de O Diabo Veste Prada com uma certa sensibilidade Sex and the City. A embalagem de ‘filme de mulherzinha’ é entregue pela direção de arte que carrega no rosa choque para ajudar a definir a personagem principal, uma garota capaz de partir para unhadas e puxões de cabelo com uma outra colega de luta caso queiram o mesmo acessório em concorrida remarcação. Essa asneira colorida diverte minimamente e, longe de ser apenas uma imitação com ilusão de qualidade, o filme é honestamente fajuto nas suas intenções.

A heroína da peça é uma patricinha de QI especialmente pequeno, Rebecca Bloom (a australiana Isla Ficher), uma jornalista. Presa num estado terminal de consumismo, essa jovem da classe média trabalhadora gasta 16 mil dólares em penduricalhos comprados compulsivamente em lojas onde vitrines ganham vida com a magia de manequins que filosofam sussurrando sobre a importância de comprar algo.

Perseguida por um cobrador espetacularmente chato (perfeito casting do ator Robert Stanton, que rosto, que óculos, que cabelo...) e freqüentando o ‘consumistas anônimos’, Rebecca arranja emprego numa revista de economia cujo editor será seu príncipe encantado (Hugh Dancy). Usando como base para o novo emprego seus surtos consumistas, torna-se uma bem sucedida colunista ao assinar como “a menina da echarpe verde” textos que parecem traduzir tendências financeiras da economia para o patricês que outras da sua fauna e flora consigam entender.

O diretor australiano PJ Hogan é um gente fina, vide seus O Casamento de Muriel e O Casamento do Meu Melhor Amigo, embora demonstre ter sido aniquilado de certa forma pela estrutura. De qualquer forma, traz seu olhar claramente gay e algo de divertido para o todo, e esse seu toque ajuda muito o filme no sentido de torná-lo uma experiência levemente indolor.

Dado o atual clima de crise financeira internacional, Os Delírios de Consumo de Becky Bloom parece casar bem com os tempos através da moral fajuta da sua história. Vale saber que o filme é produzido por Jerry Bruckheimer, responsável por coisas caras como Armagedom, Piratas do Caribe e Bad Boys, filmes que, juntos, custaram quase um bilhão de dólares.

A informação é engraçada, uma vez que a moral da história é a de que supérfluo é ruim, e que aprofundar-se em algo é bom (a echarpe verde parece ilustrar isso). Essa filosofia, num mundo correto, não deveria ajudar o filme em nada, dadas as suas não-credenciais. No entanto, no nosso mundo de shopping centers, vitrines e das marcas que aparecem em todo o filme, deverá ser um sucesso.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, abril 2009

Dois em Um



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Ver filme comercial ruim de uma outra nacionalidade que não a hollywoodiana tem algo de positivo. Por ser francês, Dois em Um (La Personne aux Deux Personnes, França, 2008) indica que o mercado de lá é potente o suficiente para arremessar sub-produtos a outras terras, fazendo pequena frente aos americanos. Oferece visão variada da sua produção européia que não restringe-se ao cinema de autor que chega a lugares como o Brasil com respeito garantido. Só ano passado, o maior recordista de público da história da França, a comédia Bienvenue Chez Les Ch’Tis (inédita no Brasil), foi visto por 20 milhões de franceses, fortalecendo a auto-estima do cinema de lá e a luta contra a presença de Hollywood. O lado melancólico é que por causa dos mesmos filmes hollywoodianos e seu poderio, um produto francês como esse termina chegando ao Brasil via circuito “de arte”, gerando curiosa disfunção estética.

Dois em Um pertence ao revolucionário conceito humorístico onde um espírito troca de corpo com outro, idéia que vem e volta no cinema como gripe pós-carnaval. Já tivemos mãe que troca com filha, homem que troca com cachorro e marido com mulher no inacreditável sucesso brasileiro Se Eu Fosse Você, cujo segundo filme aproxima-se dos seis milhões de espectadores no país. Gripe forte essa.

Desta vez, temos um contador bem comportado (Daniel Auteuil) que, ao ser atropelado por um ex-roqueiro dos anos 80 (Alain Chabat), vê seu corpo invadido pela alma do motorista, que bateu com a cabeça. E lá estamos no terreno de Um Espírito Baixou em Mim (1984) e Viagem Insólita (1987) onde alguém ouve vozes dentro da sua cabeça, e ninguém mais ouve. O espectador terá que sofrer pelas mesmas piadas de sempre, incluindo a primeira ida ao banheiro depois da troca.

O filme é algo de formidável na forma como bóia desengonçado sem qualquer vestígio de graça. É fascinante tentar entender o que teria levado Auteuil a não apenas querer fazer o filme, mas a desejar ver-se numa tela grande andando de cueca semi-nu pra lá e pra cá. O ator como gênero animal é mesmo um bicho muito estranho.

Não seria estranho descobrir na internet que os diretores, que assinam apenas Nicolas e Bruno, vieram da publicidade. A atenção deles à arquitetura deslumbrada da moderna área parisiense de La Defense e ao apartamento estilo anos 70 do personagem de Auteuil parecem ganhar mais atenção do que o roteiro, que dá ao espectador a sensação de estarmos diante de material bruto que aguarda edição.

Filme visto no Cine Rosa e Silva 1, Recife, Abril 2009