Saturday, June 14, 2008

A Outra



Kleber Mendonça filho

cinemascopio@gmail.com

Esse filme A Outra (The Other Boleyn Girl, EUA/Ing, 2008) passou na mostra competitiva de Berlim e deixou no ar um cheiro forte de naftalina. Pegaram a história de Henrique VIII e suas mulheres, repleta de possibilidades e conflitos (chifre, poder, sexo, sangue) e conseguiram fazer um filme todo empetecado e sem alma nenhuma. O elenco também impressiona pela falta de sintonia geral com esse "drama histórico" sem grandes convicções, uma pena, pois o sucesso do filme nas bilheterias virá, provavelmente, da presença de Scarlett Johannsson e Natalie Portman em lindos espartilhos. Interpretam, respectivamente, Maria e Ana Bolena, as duas irmãs que irão lutar pelas atenções do rei Henrique VIII, aqui interpretado por Eric Bana (Munique).

Henrique VIII (Bana) tem problemas com a rainha Catarina de Aragão por ela não conseguir lhe dar um herdeiro. O conde Bolena, pai de duas (aqui, espetaculares) irmãs, Ana (Portman) e Maria (Johansson), de olho no poder e nas possibilidades de fortuna, empurra politicamente Ana, ainda solteira, em direção ao rei, que poderá adotá-la como cortesã oficial. Isso gera o compreensível desgosto da rainha espanhola, já mais velha, uma mulher de grande orgulho.

Henrique, no entanto, interessa-se "pela outra menina Bolena", Maria, já casada com um marido que não parece se importar em ser o corno real, uma vez que toda a família terá muito a lucrar com o arranjo sexual. Pode ainda render um herdeiro para a coroa. As coisas não tomam rumos previsíveis, uma vez que o rei descobre a mulher tempestuosa que existe em Ana, sua paixão capaz de fazer Henrique mudar totalmente as regras políticas e religiosas.

O filme do estreante inglês Justin Chadwick nos apresenta o curioso sistema político baseado nos desejos da carne que gerou choro, ranger de dentes e algumas cabeças cortadas na já citada corte, provocando ainda o rompimento com a Igreja Católica e a criação da Igreja Anglicana. A história foi abordada anteriormente, com destaque para Ana dos Mil Dias (Anne of a thousand days, 1969), com Richard Burton, e também lembrada no recente Elizabeth - a Era de Ouro, sobre a filha de Maria. Dificilmente essa nova versão deixará marcas.

De qualquer forma, tudo transcorre em cenários aparentemente autênticos pertencentes à herança histórica da Grã-Bretanha, e a fotografia digital que parece mesmo filme mantém tudo minimamente elegante. A Outra, na verdade, mesmo não tendo um coração batendo no lado esquerdo do peito, pode, de qualquer forma, passar como um divertimento ligeiro e esquecível, deixando mais uma vez a sensação de vermos uma novela das seis bem produzida.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, fevereiro 2008

A Culpa é de Fidel!

O Discreto Charme da Burguesinha


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Com muita coisa que lembra a pequena e incendiária Mafalda, das tirinhas argentinas criadas por Quino, e transitando pelo mesmo corredor temático de filmes recentes como Persépolis e O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, A Culpa é do Fidel ! (La Faute à Fidel!, França, 2007) nos apresenta um foco afiado sobre um momento especial da história (a fronteira entre os anos 60 e 70), tendo como ponto de vista uma astuta garota francesa de nove anos de idade. Um pouco como a diretora desse filme, Julie Gavras (filha de Costa Gavras, no seu primeiro longa de ficção), ela tudo observa com muita atenção. O filme é uma sessão deliciosa política e humanamente.

O ponto de partida de A Culpa é do Fidel! (uma adaptação de um livro italiano, com personagem italiana) é o efeito que o estado de coisas exerce sobre uma família essencialmente burguesa, na França de 1970. A menina Anna (Nina Kervel, muito boa), de nove anos de idade, é uma antena sensível para todo e qualquer fragmento de informação, mesmo que dados importantes faltem para que ela os entenda. Isso geralmente resulta em interpretações engraçadas que só a mente infantil é capaz de gerar.

Anna começa como uma burguesinha, espelhando seus pais (mãe jornalista de revista feminina – burguesa – o pai um advogado de origem espanhola, e burguesa). O filme tem a capacidade de prender fiel e apaixonadamente a narrativa ao ponto de vista de Anna, e isso vai não apenas na sua capacidade fragmentada de entender o que se passa, com a cumplicidade da visão informada do espectador, mas também na forma de filmar. Vejam, por exemplo, a seqüência da passeata que acaba em confusão e gás lacrimogêneo. A câmera permanece na altura dessa criança de nove anos, e a sensação de um mundo maior, que ela ainda não consegue compreender, é muito bem transmitida.

Ao prender-se a Anna, o filme revela-se fonte estável de momentos jocosos não só com o olhar infantil, mas também com o mundo maluco que ela enxerga. Os pais de Anna, por exemplo, passam por transformação política, especialmente depois de uma viagem à América Latina, e contraem uma bem intencionada culpa social por ocuparem casa tão grande. Mudam-se para espaço apertado, contribuindo assim para um mundo melhor.

São informações que colhemos aos poucos, e é depois dessa viagem à América Latina que a casa de Anna começa a se encher de barbudos que fumam muito e que falam de guerrilha, Maoismo e luta de classes.

Parentes espanhóis que fogem do regime de Franco também chegam à casa, e isso inclui a empregada cubana, revoltada com a revolução na sua Ilha natal, externando a sua raiva pessoal e política ao falar o título do filme. Aos poucos, Gavras nos oferece um painel inteligente do mundo, deixando fatos históricos se infiltrar delicadamente (a morte de Charles de Gaulle, por exemplo, a luta pelo aborto na França, auge do movimento feminista).

Para quem está na faixa dos 40, pode talvez ter conhecido algumas Annas na escola ou na rua, filha de pais comunistas, ou mesmo ter sido uma criança como ela, na peculiar atmosfera política dos anos 60/70. Não seria distante afirmar que essas crianças dos anos 60 são filhos da revolução, produtos de um sonho que foi dissipado com o desmonte das lutas políticas. Esse olhar para trás proporcionado pelo filme é positivo e humano.

A Culpa é do Fidel! tem curiosa sintonia com Persepolis, o relato pessoal da artista gráfica e cineasta iraniana Marjane Satrapi sobre seu amadurecimento no turbilhão político do Irã, e também seu exílio. O fato de serem meninas as personagens torna tudo ainda mais interessante, essas mini-feministas, mafalditas revolucionárias! Não deixei de lembrar que as semelhanças com o ilme de Cao Hamburger são apenas temáticas, pois o menino brasileiro permanece despolitizado durante todo o filme. Seja o que for, a melhor coisa dessas crianças é que elas não querem exatamente mudar o mundo, mas apenas sobrevivê-lo.

Filme visto no Cinema da Fundação, novembro 2007

KUBRICK MONTAGE



Stanley Kubrick, guarde esse nome. (Obrigado a "Zé" da comunidade do CinemaScópio no Orkut por postar o link.).

Sex and the City - O Filme


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Na noite de quarta, véspera da cabine de imprensa da versão para cine de Sex and the City, passou na TV paga um episódio antigo da série de TV onde a personagem principal, Carrie Bradshaw (Sarah Kessica Parker), pondera "será que eu deveria me sentir mal por ter sapatos e não filhos?", desencadeando reflexões sobre nunca ter casado. Símbolo da mulher independente e cosmopolita (nova-iorquina), Carrie, jornalista que escreve sobre relações amorosas dentro da bolha da modernidade, ponderou sobre muito mais nos seis anos da série (1998-2004), e agora chega a versão para o cinema, Sex and the City – o Filme (EUA, 2008), uma sessão bem longa medida e pesada para ser consumida por um certo olhar médio feminino.

Os responsáveis pela marca parecem ter feito uma cine-adaptação matreira para o produto. Dão o braço a torcer, mas da maneira deles. Admite-se que muito do que se produz para a TV americana tem tratamentos superiores ao que vemos no cinemão americano, tão guiado pelo marketing, sensibilidades adolescentes e um puritanismo-família marcante. Isso seria um perigo comercial para uma série que firmou-se com uma certa franqueza sexual e comportamentos pouco conservadores das quatro heroínas, Carrie e suas três amigas, Samantha (Kim Cattrall), Charlotte (Kristin Davis) e Miranda (Cynthia Nixon).

Eis que no filme Carrie, experiente parceira de muitos e eterna companheira numa relação instável de um sujeito afetuosamente apelidado de Big (Chris Noth), vê-se casando-se com ele, uma surpresa não tão absurda assim. Num cinema comercial onde tudo parece sempre levar ao casamento e à família (até o último Indiana Jones termina em casamento), o desvio de rota para Carrie aqui proposto soa, de qualquer forma, como uma artimanha comercial, e é mesmo.

Durante os primeiros 40 minutos, portanto, Sex and the City – o Filme torna-se um enjoado festival de patricinhas, espécie de versão radical de O Diabo Veste Prada onde cada cena nova-iorquina parece ter sido patrocinada por alguma griffe importante. Em termos gerais, o público feminino (e também parte da platéia gay) poderá salivar com a incrível quantidade de sacolas caras ocupando o quadro.

Aos poucos, no entanto, o filme revela-se uma negação da idéia muito defendida pela tradição e, de fato, por esse mesmo cinema, a do casamento como espetáculo de ostentação social, e isso parece mostrar respeito pelos personagens originais da série, em especial Big e, finalmente, a própria Carrie.

Essa negação leva a uma decepção amorosa surpreendentemente bem resolvida, e que fortalece o fator amizade entre essas quatro, e a partir daí as coisas melhoram substancialmente, ficando as sacolas e as poses fora do filme, afinal. Curiosamente, esse produto com "P" maiúsculo não perde de vista o seu objetivo, um filme que tem no elemento mulher um dos seus trunfos comerciais (estréia americana semana marcada por quantidade avassaladora de mulheres nas sessões). Depois de animá-las com poder de compra, passa a abordar questões emotivas relacionadas à insegurança, à solidão e ao poder de meninas que se adoram como amigas.

A moral da história me surpreendeu num mundo tão supostamente fútil ao lembrar que a união entre duas pessoas é muito mais importante pela sua intimidade do que pela aprovação social projetada. Samantha é outra que decide fazer o que quer da vida longe de uma relação fixa, e, também para a minha surpresa, ela não morre assassinada com um furador de gelo. De fato, ela ganha a liberdade que deseja para viver uma vida de sexualidade constante.

As outras duas talvez representem a parte do roteiro que visa buscar identificação com a parcela mais conservadora do público, e tentam como podem viver suas vidas normais (maridos, filhos). Como favor político para o todo, observem que a secretária de Carrie (Jennifer Hudson), jovem e romântica ("eu vim para NY encontrar o amor"), ganha o destino de um casório encomendado pelo roteiro com direito a véu e grinalda.

Essa veia feminista do filme me parece saudável num mundo de imagens machistas onde predomina o look (TV, filmes, internet) "Molhadinhas da Payboy". Um vizinho de Samantha, espécime da raça modelo Calvin Klein (e o modelo francês Gilles Marini foi mesmo, aliás, modelo CV) ganha o tratamento "Molhadinho da Playgirl", numa cena perfeitamente cafajeste onde ele se ensaboa nu com direito a nudez lateral milimetricamente editada para máximo efeito de sugestão vista, sob os olhares não apenas de Samantha, mas do público alvo.

Não há exatamente ambições de bom cinema no filme (enquadramentos e tempo de TV predominam), e o espectador deve preparar-se para relacionar-se bem com a poltrona na sensação de que estamos vendo 25 capítulos condensados de uma vez só. Estranho que achei o filme muito longo, mas nunca chato, tipo de sensação comum numa boa novela. Essa aqui é sobre amigas, sacolas e relacionamentos.

Filme visto no UCI Recife, Junho 2008

Cassandra's Dream - Mais Um, Portanto.

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Um pouco como um professor que chega para dar aula num dia não muito inspirado, ou um ator que sobe no palco desconcentrado, Woody Allen parece ter se colocado na obrigação de fazer um filme por ano. E como geralmente acontece com os que têm o dever do ofício – sejam professores ou atores, ou críticos de cinema... - alguns percebem a falta de inspiração naquele dia específico, enquanto boa parte da turma (ou da platéia, ou leitores...) segue tranqüila achando bom. Isso lembra algumas das reações aos últimos filmes de Allen, ora vistos como consistentes e interessantes, ora tidos como cansados, obras de "um ex-cineasta ainda ativo". O Sonho de Cassandra (Cassandra's Dream, 2007), sobre dois irmãos que querem subir na vida através de um crime, é o filme número 38 do diretor.

Por um lado, e sempre há essa sensação, não deixa de ser um privilégio ter um autor como Allen, aos 72 anos, filmando anualmente. Por outro, é possível indagar, vez ou outra, pra quê? A resposta mais humana e racional (pessoal) é a de que Allen faz cinema para viver, e ele não precisa acertar sempre. Quem precisa? Faz os filmes que quer, uns bons, outros não tão bons, seu 39o – Vicky Cristina Barcelona - acaba de ter estréia mundial em Cannes, e eu o achei um dos seus mais agradáveis em muito tempo.

Comparando-o com O Sonho de Cassandra, ele reforça as curiosas mudanças de marcha que vem fazendo, não apenas alternando drama e comédia, mas também sistemas de produção que o levaram à Europa em busca de mais autonomia. Se Vicky Cristina Barcelona é ensolarado e filmado na Espanha, O Sonho de Cassandra é sombrio e filmado em Londres, o terceiro filme da que deverá ficar conhecida como sua trilogia inglesa formada pelo duro Match Point (2005) e pelo lelé Scoop (2006).

Ian (Ewan McGregor) e Terry (Colin Farrel) são irmãos da classe trabalhadora tipicamente inglesa. Ian ajuda no restaurante da família, Terry é viciado em jogo. Ganham pequena fortuna nas corridas, dinheiro logo perdido no jogo. Com os planos de Ian investir no setor hoteleiro californiano e as dívidas de Terry ameaçando seu bem estar físico, partem para pedir ajuda ao tio Howard (Tom Wilkinson, no tipo de personagem passivo-agressivo que Allen constrói bem, geralmente para mulheres), aquele tio rico que deu certo, sem que ninguém realmente queira saber como, ou em que termos. E eis que Tio Howard pode mesmo ajudar os sobrinhos, mas eles terão que "dar um jeito" num sócio que ameaça revelar segredos sujos numa investigação.

McGregor e Farrel, sempre fumando muito, falam rapidinho e gesticulam genericamente, tique que aflige boa parte dos atores que trabalham com Allen, claros sinais de respeito e afetuosa intimidação artística.

Allen monta, portanto, sua terceira tragédia, revisitando Crimes e Pecados (1988), onde um médico livrava-se da amante, e Match Point, onde um professor de tênis matava a namorada americana para subir no curioso sistema de classes inglês. O Sonho de Cassandra lembra mais Match Point, tanto pelo cenário inglês, como pelo desespero por uma mobilidade social rápida, sem necessariamente avançar em nada de especial no que já fora abordado. Também não ajuda muito o filme ter semelhanças com o último filme de Sidney Lumet, uma marretada que, antes de qualquer coisa, é mesmo uma martetada, e que chama-se Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto (Before the Devil Knows You Are Dead). A comparação tem surgido com freqüência entre os dois filmes que tem circulado simultaneamente, inclusive aqui no Brasil.

Quando o filme traz claros sinais de preguiça por parte de Allen como diretor, pensamos se há sentido em continuar batendo ponto anualmente com obras que talvez não honrem o esforço. Espanto especial vai para a fotografia de Vilmos Szigmond, um dos grandes nomes da câmera no cinema (Contatos Imediatos, O Franco Atirador), aqui num trabalho relapso, ou relapso por esperar eu algo de mais de Szigmond.

Finda a sessão, no entanto, fica a sensação respeitável de que é mais uma peça válida na obra do autor, mais um tijolo. E, porquê não?