Saturday, February 21, 2009

Saíram os Razzies


(Brosnan)"I don't know how to fucking sing and I look stupid"



Todo ano é essa lezêra bacana, checar o que os razzies escolheram para detonar. Em geral, se atém religiosamente ao que acreditam ser a escória artística de Hollywood, e isso significa muitas vezes espancar cachorro morto.

Mas vez por outra, acertam em cheio, e os resultados são sóbrios, com um fator "zero bulshit" marcante. Esse ano, dois prêmios me interessaram, e batem com aquele frio na espinha que você sentiu na poltrona do cinema num determinado momento de um filme, meses antes:

Pierce Brosnam em Mamma Mia, nossa senhora.

Indiana Jones e o Reino do... n lembro o nome. Talvez existam, cientificamente falando, coisas piores na categoria, mas a provocação cai bem em Spielberg e Lucas, que nos deram essa coisa pré-moldada brilhantemente ilustrada por eles mesmos na primeira cena, onde a (antigamente) majestosa montanha da Paramount vira um montinho de areia. K.M.F

PS: alguém viu LOVE GURU? Eu não.

http://www.razzies.com/

Pior Filme

The Love Guru

(A Paramount Release)

Pior Ator

Mike Myers

The Love Guru

Pior Atriz

Paris Hilton

THE HOTTIE AND THE NOTTIE

Pior Atriz Coadjuvante

Paris Hilton

REPO: THE GENETIC OPERA

Pior Ator Coadjuvante

Pierce Brosnan

MAMMA MIA!

Pior Casal

Paris Hilton

e também

Christine Lakin

ou

Joel David Moore

THE HOTTIE AND THE NOTTIE

Pior Prequel,Remake, Franquia ou Sequel

Indiana Jones and The Kingdom of The Crystal Skull

Pior Diretor

Uwe Boll

1968: Tunnel Rats,
In The Name of The King: A Dungeon Siege Tale,
e Postal

Pior Roteiro

The Love Guru

por Mike Myers & Graham Gordy

Pior Avanço de Carreira

Uwe Boll

(a resposta alemã a Ed Wood)

Oscar: Slumdogs e Chihuahuas



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A 81a. cerimônia de entrega dos Oscars, que acontece hoje em Los Angeles, tem pelo menos dois aspectos curiosos. O primeiro por ter caído no domingo brasileiro de carnaval, o que poderá contribuir para que a propaganda gerada tenha efeito limitado no público nacional, solto na folia, isolado em retiros ou simplesmente sem acesso à TV paga (canal TNT exibe, TV aberta não mostra ao vivo). Em segundo lugar, tudo indica que esse ano Hollywood, a mais rica indústria de cinema do mundo (em poder e dinheiro), poderá estar dando um chapéu na Bollywood indiana, a maior indústria de filmes do mundo (em quantidade), com a vitória há muito anunciada de Quem Quer Ser um Milionário (Slumdog Millionaire), filme do inglês Danny Boyle.

A vitória de Slumdog Millionaire é tão certa quanto o prêmio para o falecido Heath Ledger (Coadjuvante), por seu último filme concluído, The Dark Knight, no papel do Coringa. Slumdog vem papando tudo o que é troféu como nenhum filme antes na chamada "temporada de prêmios" dos últimos dois meses. Levou o Globo de Ouro, o Bafta (Oscar inglês), os prêmios das associações de fotografia, roteiristas, som e montagem. É um grande sucesso nas bilheterias internacionais, especialmente para um filme de pequeno porte (custou U$ 15 milhões). Prepara-se para chegar às salas brasileiras 6 de março, com pré-estréias carnavalescas neste final de semana.

O filme concorre a dez prêmios (Fotografia, Montagem, Trilha Original, Canção Original -duas músicas -, Som, Montagem de Som, Roteiro, Diretor e Filme). Com a (falsa) aparência de um artesanato do terceiro mundo, estética de comercial para bebida energizante e uma estrutura espertalhona escondida num roteiro hollywoodiano, o filme de Boyle (Trainspotting, A Praia, Extermínio, Sunshine) é o perfeito bombom pseudo-artístico para as sensibilidades de uma Academia que deverá escolhê-lo para fugir dos mesmos dramas caucasianos de sempre, narrados no que seria uma rotação tida como normal.

Temos os obrigatórios dramas de Holocausto onde destaca-se sempre a capacidade que o ser humano tem de se superar (O Leitor, Um Ato de Liberdade), há reflexões sobre a vida (O Curioso Caso de Benjamin Button, Dúvida, O Lutador) e temos retratos político-histórico-pessoais de variadas densidades, que expõem os nomes dos seus objetos nas marquises (Milk, Frost/Nixon). Entre filmes ruins e outros bem feitos, nenhum deles tem o fator exótico do filme de Boyle, que destaca-se como um olho inchado do lote 2009.

Especula-se (o Globo de Ouro foi uma boa amostragem) que paira sobre O Curioso Caso de Benjamin Button, filme de David Fincher, a nuvem negra da decepção, e que o filme saia com zero Oscars, um feito e tanto para as suas 13 indicações obtidas. Ambicioso com quase três horas, veículo comercial de prestígio com Brad Pitt e uma sensação desagradável de déjà vu por causa das semelhanças com Forest Gump (1994, os dois filmes tem o mesmo roteirista, Eric Roth), Button poderá confirmar-se o elefante branco que sempre foi. De qualquer forma, o prêmio de Maquiagem seria de bom tamanho.

Afirmar que Button é o maior sucesso comercial (U$ 241 milhões no mundo) do Oscar 2009 nos leva a uma outra questão discutida na indústria, a baixa voltagem comercial dos filmes. Desde o anúncio das indicações, em meados de janeiro, que o mercado não reagiu como se esperava. Especula-se que o tom pessimista da crise financeira mundial tenha estimulado o grande público, nos EUA, a ver filmes fantasiosos, distantes dos dramas sérios que Hollywood escolhe para premiar.

No final de semana passado, por exemplo, a franquia recauchutada de Sexta-Feira 13 (já em cartaz no Brasil) arrecadou inacreditáveis U$ 45 milhões em três dias, como se o Oscar não existisse. Para se ter uma idéia, Frost/Nixon, de Ron Howard, fez até agora U$ 17 milhões em 11 semanas de exibição. Até mesmo Benjamin Button tornou-se um sucesso bem antes de ser indicado a qualquer coisa, o peso das suas 13 indicações negligível na soma geral. Milk, de Gus Van Sant (indicado a Melhor Diretor, Ator – Sean Penn, Ator-Coadjuvante – Josh Brolin, Filme, Figurino, Montagem, Roteiro Original), foi bem mais visto nos cinemas em dezembro, um mês antes das indicações serem anunciadas.

Isso explica as críticas dos que acreditam que a Academia deveria relaxar mais e abraçar os bons produtos de apelo popular lançados ao longo do ano, como o sucesso de quase um bilhão de dólares para a Warner, The Dark Knight, de Christopher Nolan (indicado em sete categorias técnicas, e pela atuação póstuma de Ledger), e também Wall-e, de Andrew Stanton, a sofisticada animação autoral da Pixar que deve levar Melhor Filme de Animação (mais cinco indicações tecnicas, incluindo roteiro original, possível vitória).

Curiosamente, são todos fatores que conspiram para uma vitória da pequena produção multi-nacional (e de marca inglesa) Quem Quer Ser um Milionário, o próprio filme a história do que os americanos chamam de 'underdog', aquele cavalo meio magrelo e feio que corre por fora e termina ganhando. Seria o perfeito final feliz da vida real para esse 'cachorro de favela' milionário (tradução literal), algo que poderá também ser aplicado à volta de Mickey Rourke em O Lutador, onde Melhor Ator é uma real possibilidade.

Sobre Rourke, uma figura e tanto, a máquina de publicidade pré-Oscar, na véspera de entrega das cédulas de votação (quarta-feira), anunciava nos sites de cine-fofoca que um dos seus Chihuahuas morreu na madrugada de terça-feira, deixando-o desolado. É o verdadeiro vale-tudo de mídia e contra-informação.

Oscar: No Caso de Derrota, Como Se Comportar

Esse é um dos momentos guardados do Oscar mais bacanas que eu já vi. 1987, o australiano Paul Hogan, que concorria por 'Crocodile Dundee' (melhor roteiro original), apresenta esse monólogo sobre como se comportar na hora de perder.

Infelizmente, sem legendas em português.

Berlim: Bujalski e Lichtenstein



Beeswax

Happy Tears

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Com a sugestão de três colegas americanos (de Nova York), Daniel Kasman, do site The Auteurs, e Damon Smith e Cristina Garza, do www.filmcatcher.com, fui ver Beeswax, de Andrew Bujalski, que passou na paralela Forum, em Berlim. Eu reclamava com eles que fazia tempo que não via um filme americano pequeno, um verdadeiro “indie”, alguma coisa sem os cacoetes de Juno ou The Savages, representantes do tipo de amerindie que é a moeda corrente. Além de Beeswax, passou também Happy Tears, de Mitchell Lichtenstein (exibido na competição), e os dois juntos negam certas expectativas relacionadas a essa idéia pessimista de amerindie, ou ‘cinema independente americano’, o que talvez explique a dificuldade de vê-los fora de um contexto americano, ou de festivais internacionais.

Beeswax (cera de abelha) é um pequeno prazer, com uma honestidade clara e evidente desprovida de qualquer ambição de passar como cartão de visita para algum projeto futuro do diretor Andrew Bujalski na Dreamworks, ou na Warner. O filme parece ter sido feito com alguns dos nossos amigos, ou gente que conhecemos, e horas depois da sessão dá uma vontade estranha de saber como os personagens andam, de ligar para eles e descobrir o que têm feito.

Rodado em 16mm (“porque eu acho bonito fazer em filme”, disse Bujalski depois da sessão), e projetado no Cine Star 8 numa tela monstra (“não sabia que meu filme era tão grande!”), Beeswax tem um estilo cru perfeitamente contra balanceado pelo seu interesse nos personagens. A estrutura vai sendo montada aos poucos e organicamente, sem preocupações de plot ou clímax.

Duas irmãs (Tilly Hatche e Maggie Hatcher, irmãs na vida real) formam o eixo do filme. Uma delas, Jeannie, é sócia de um brechó de roupas usadas em Austin, no Texas. Ela é também usuária de uma cadeira de rodas, paralítica, e está tensa pois teme que desentendimentos com a sócia possam levá-la a uma ação na justiça. A outra irmã não parece estar trabalhando, sua vida emotiva consegue equilibrar um aspecto ativo, mas vago, acumulando ex-parceiros que ficaram muito mal por causa dela. A relação entre as duas tem uma harmonia e tanto, e que fotografa lindamente na tela.

Merril (Alex Karpovsky) é o outro personagem de interesse, estudante de direito que está fazendo o ‘bar exam’ (o equivalente da prova da OAB no Brasil), e envolve-se delicadamente com Jeannie, não apenas no campo amoroso mas também tentando ajudá-la nas tensões relacionadas ao problema com a sócia, Amanda (Anne Doogle). Não sei se é preciso deixar claro que o fato de Jeannie ter um problema físico nunca vira assunto no filme, e que bonito isso.

A naturalidade de tudo encanta no filme, composto por cenas que provavelmente não sobreviriam a uma rodada de oficina de roteiro, do tipo que tem ajudado (ou, em muitos casos, sujado a integridade natural de realizadores). Uma cena simplesmente mostra as irmãs tirando fotos juntas num descampado, um momento físico de movimentação e sincronia que torna-se um dos destaques de todo o filme. Uma outra apresenta Jeannie pedindo ajuda a um transeunte para sair do carro, o estranho abrindo a mala e entregando-lhe a cadeira de rodas desmontada.

Há um pequeno interesse de Bujalski na sub-trama sobre o processo na justiça que irá separar de vez as ex-amigas que ainda são sócias, embora nada realmente nos leve a nenhuma cena judicial, muito menos num tribunal. Mais interessante para Beeswax é analisar os rostos e a forma como reagem às questões mundanas da vida. Merril e Jeannie na cama, cientes do momento íntimo, a irmã sacando que os dois estiveram juntos, Jeannie administrando a loja como uma patroa que já se mostra uma leve chatinha controladora no papel de administradora.

É tudo muito real, e que muito me atrai por tratar-se de um filme americano onde as regras de sempre não se aplicam, pois estamos claramente na casa de alguém que sabe o que quer dos seus amigos. Para se ter uma idéia, Bujalski revelou depois da sessão que o filme veio da sua admiração pelas irmãs, duas amigas, crente de que as duas ficariam ótimas (e lindas) num filme.

HAPPY TEARS – No outro indie Happy Tears, de Mitchell Lichtenstein (filho do artista pop Roy Lichtenstein), o tom é outro e mais próximo do ‘bulshit indie’, deslizando perigosamente em direção ao padrão “dysfunctional family”. Temos também já um outro aspecto conhecido e que não configura-se necessariamente um problema, a presença de uma estrela hollywoodiana claramente à procura de algum tipo de redenção artística, imagino que a ser encontrada num pequeno filme como este. Demi Moore é a estrela e o filme em si destaca-se pela ousadia quixotesca do seu autor, um diretor claramente destemido no sentido de tentar idéias, mesmo que, em grande parte, elas não funcionem.

Na verdade, eu desenvolvi um certo apreço pelo filme horas depois de ter saído da sessão de imprensa do filme, impressionado com o quão tosco a coisa toda é. Finalmente, essa precariedade se transformou em alguma admiração, pois, se Mitchell Lichtenstein (Teeth, safra Sundance 2007, sobre o mito da ‘vagina dentata’ foi seu filme anterior, igualmente interessante pela sua corajosa incompetência abrangente) não tem medo de errar, fica na tela alguma coisa que transcende a mediocridade conservadora que é a norma.

Mais uma vez, temos duas irmãs, Demi Moore é a mais centrada, casada, classe média baixa, e Parker Posey (atriz troféu desse tipo de cinema há pelo menos 15 anos, em indies tipo Amateur, Flirt, House of Yes, Basquiat) a doidivanas que é chamada da sua vida fútil pois o pai delas acaba de oficialmente entrar na fase final da vida, através de um processo de irreversível de demência.

Lichtenstein é capaz de nos mostrar uma cena maluca numa loja, onde o atendente, portador de más notícias sobre o preço de uma bota, vira, do nada, um homem urubu. Ele também é capaz de nos mostrar honestamente as irmãs às voltas com as fezes do pai nu num banheiro, o tipo de detalhe que, de alguma forma, valoriza o filme e sua escrita humanamente certa por linhas tortas (ou toscas).

Rip Torn, como o pai, está muito bom, e Ellen Barkin tem uma participação estranhíssima como a namorada/enfermeira dele, personagem que o espectador nunca sabe exatamente do que se trata, ou quem ela é, algo que traz curiosa tensão para as duas irmãs.

Thursday, February 19, 2009

Slumdog Millionaire


Uma criança coberta de merda.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Quem Quer Ser Um Milionário (Slumdog Millionaire, Inglaterra, 2008), filme de Danny Boyle, oferece mais uma oportunidade interessante de sentar durante duas horas e observar essa questão antiga e persistente da representação no cinema, especialmente quando tal representação vem dos ricos (os que têm a câmera) para com os pobres (os que aparecem nas imagens, sorrindo), algo muito discutido no cinema brasileiro. Ilustra as diferenças entre riqueza e pobreza como fotos de um turista gringo recém chegado de viagem e que viu o terceiro mundo como um fotogênico lixão.

No Brasil, onde realizadores de classes abastadas filmam personagens de classes pobres (Garapa, de José Padilha, é o caso mais recente, exibido em Berlim semana passada), os resultados são sempre discutíveis. Nesse filme britânico com ganas de ganhar Hollywood e o mundo, temos personagens locais nas favelas de Mumbai, na Índia, filmados por ingleses. A questão persiste dentro de um panorama ainda mais abrangente, levando em conta que o filme em questão parece ter o desejo de remixar o cinema indiano de Bollywood, maior produtor de filmes do mundo.

Desde Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), de Steven Spielberg, que não víamos em Technicolor tão bonito crianças indianas raquíticas transformadas em entretenimento! É incrível. Esse filme inglês parece voltar à Índia, sua antiga colônia, para atualizar o acervo de imagens do passado, sempre compostas verticalmente na relação rico/pobre, colonizador/colonizado.

Em 2009, deixa-se de lado o tom ‘British country club’ de antigamente (Passagem Para a Índia, de David Lean, para citar um exemplo) para transformar as favelas de Mumbai no cenário perfeito para uma publicidade do Red Bull, ritmada por música pop também indicada ao Oscar. Eu achei que seqüências inteiras foram pensadas para serem vistas num Nokia.

A estética aqui é a da misteriosa ‘câmera bicho’. Dependendo da cena, pode ser o ponto de vista de uma galinha, um cachorro ou de um suíno, algo visto em primeira mão em Cidade de Deus. Essa identidade visual é fortíssima, e imagino a reação de Meirelles e César Charlone, seu fotógrafo, ao ver Boyle remixar esse look com força, já reprocessado em O Jardineiro Fiel, do mesmo Meirelles (e Charlone), Homem em Chamas, de Tony Scott, e Tropa de Elite, de Padilha.

Em Quem Quer Ser Um Milionário, fica claro que o look e a rispidez calculada da câmera é a escolha visual desta década para um certo tipo de cinema que entra nos labirintos do entulho, alvenaria vernacular, fumaça e papelão com evidente alegria, nosso proverbial pinto no lixo.

A contribuição de Boyle e seu fotógrafo proficiente Anthony Dod Mantle (acurado pesquisador da imagem digital ao lado de Lars Von Trier) consiste ainda de deixar os ângulos desnivelados de maneira esquizofrênica, garantindo a atenção constante do espectador, crente de que mais alguma coisa relevante está prestes a acontecer. São deixas visuais de um cinema que grita pela sua atenção, e que parece atingir plenamente os objetivos.

Essas imagens estão a serviço de uma historinha hollywoodiana com final super feliz. Jamal (Dev Patel) é um jovem indiano, formado na escola da vida. Está prestes a vencer um prêmio milionário na versão indiana do Quem Quer Ser um Milionário? (Show do Milhão, no Brasil), onde vem acertando perguntas escorregadias, ao vivo, para toda a nação. O apresentador do programa é um escroque.

Para aumentar artificialmente a tensão, o roteiro de Simon Beaufoy (adaptado do livro Q&A, de Vikas Swarup) insere tortura com jacarés nos dedos dos pés de Jamal, ligados a uma bateria de carro, já que o apresentador vilão acredita que ele estaria roubando. “Um ‘vira lata de favela’ não seria capaz de ir tão longe no programa”, dando ao filme ambientado no terceiro mundo sua cena obrigatória de tortura.

A estrutura narrativa, semelhante à de Os Suspeitos (The Usual Suspects, 1996), nos mostra cada pergunta feita a Jamal no programa como uma deixa para que voltemos ao seu passado, as respostas inseridas na sua dura experiência de vida. E Jamal teve uma vida difícil, que o filme mostra em detalhes espetaculares da miséria. À essa altura, o espectador poderá desconfiar que alguém teve a idéia de fazer uma versão ‘super bacana’ de Pixote, de Hector Babenco.

Há uma cena absurda com o tipo de coisa que crianças faveladas indianas fazem para conseguir um autógrafo, claramente a fossa do filme em vários níveis. Jamal viu também a mãe ser morta a pauladas num conflito entre muçulmanos e hindus que queimou gente viva. Essa seqüência, rápida como um raio, obviamente, passa sem qualquer contextualização histórica ou religiosa sobre conflitos étnicos, imagino que pelo total desinteresse de Boyle e seus colaboradores no assunto.

Mais tarde, ele e o irmão, órfãos, saem do lixão para integrar um exército de pedintes mirins, onde o patrão gente ruim manda cegar algumas crianças com chumbo quente para que ganhem mais dinheiro nas ruas. Latika, sua amiguinha de infância, vira prostituta nos bordéis de Mumbai e, mais tarde, ele vê seu irmão Salim virar Zé Pequeno junto ao crime. Latika, claro, será transformada numa belíssima garota adulta, o paraíso amoroso de Jamal, o seu objetivo na vida, seu final feliz.

Não é de se estranhar que a resposta global a Quem Quer Ser um Milionário (U$ 150 milhões nas bilheterias internacionais, até agora) venha sendo a de um filme “pra cima”, mesmo com tanto horror na trama. O cinema é a arte da dissimulação, capaz de transformar um copo quebrando num interessante longa de 90 minutos, ou levar milhões a acreditar que a dureza da vida num país pobre e distante pode ser uma diversão sensacional onde até mesmo crianças do terceiro mundo merecem - não tanto o reconhecimento pelos seus esforços no viver-, mas a sorte, pura e simplesmente.

Boyle (Cova Rasa, Trainspotting, Extermínio) co-assina a direção com a pouco divulgada profissional de elenco indiana Loveleen Tandam, num acordo não muito distante da parceria Meirelles/Kátia Lund, em CdD. A fome de Boyle (claramente um animal do cinema sem capacidade de reflexão) por imagens o leva a, seja por ignorância, ou puro cinismo, terminar tudo com um final de efeito audiovisual alegre, mas culturalmente azedo como pouca coisa que vi recentemente. Tenta dar ao todo a aura artificial de um musical de Bollywood, cujo estilo nada tem a ver com o realismo freqüente almejado por esse filme, sob o simpático pop Jay Ho, de A.R. Rahman e coreografia em plano aberto com dezenas de figurantes.

É a dança alegre da miséria, a exploração mala de uma cultura desconhecida, remixada para o gosto ocidental e que ainda corre o risco de passar a sensação edificante de que estamos vendo um outro mundo distante com olhos mais abertos e tolerantes, provável combustível para a enorme aceitação do filme, imagino que junto ao Oscar.

PS: Ainda sobre a questão da imagem, em dezembro, Anthony Dod Mantle ganhou o prestigioso Camerimage, em Lodz, na Polônia, por seu trabalho no filme. Ironicamente, o segundo lugar foi para César Charlone, por Blindness, de Fernando Meirelles.

PS2: Na citada seqüência final, o som pop de A.R Rahman me lembrou uma utilização totalmente diferente em efeito desse tipo de som indiano na abertura de Inside Man, de Spike Lee, que usa "Chaiyya Chaiyya (composta pelo mesmo A.R. Rahman) para abrir o seu filme, numa Nova York repleta de diferenças culturais incorporadas por Lee no seu panorama.

São Francisco

Milk, de Gus Van Sant

Zodiac, de David Fincher

Um brinde aos autores e aos seus filmes pessoais.

Vendo Milk há pouco, a lembrança de Zodiac estava sempre presente. Os dois parecem existir juntos em reconstruções independentes da São Francisco dos anos 70. Antes de aparentarem precisão e verdade, soam, acima de tudo, como frutos de observações pessoais de David Fincher e Gus Van Sant. Cada um examina temas que lhes são caros, e o resultado você sente na tela. K.M.F

Sunday, February 15, 2009

Berlim: Peru X Uruguai



Por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Foram entregues na noite gelada de sábado os prêmios da 59a. Edição do Festival de Berlim. A cerimônia, realizada, no Berlinale Palast, em Potsdamer Platz, definiu como grande vencedor do Urso de Ouro de Melhor Filme peruano La Teta Assustada, da diretora Claudia Llosa, narrativa marcada pelo realismo fantástico latino americano. É o segundo Urso de Ouro consecutivo para o cinema latino-americano, o brasileiro Tropa de Elite venceu ano passado. Llosa dedicou o prêmio ao Peru. Outro grande destaque da noite foi a tripla premiação de Gigante, filme uruguaio de Adrian Biniez.

Os resultados de Berlim ano passado e agora soam como enigmáticas finais da Copa América. Brasil (com Tropa de Elite) e México (com o micro-drama de risos discretos Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke), esse ano Uruguai e Peru. Representam o reconhecimento artístico via um dos principais festivais internacionais de cinema do mundo para uma produção local que, juntando os quatro filmes, soam especialmente pré-moldadas como cinema, e que seguem caminhos já bem gastos por esse mesmo cinema.

Se Tropa de Elite reveste o filme de favela com estética moderna de filme de ação hollywoodiano, Lake Tahoe e Gigante fazem arte da escola de world cinema lacônico e cheio de boas intenções, ganhador freqüente de prêmios ecumênicos. La Teta Assustada, por sua vez, entra no nicho muito bem aceito de "realismo fantástico" latino.

O simpático Gigante, por exemplo, sobre um segurança de supermercado que apaixona-se pela garota da limpeza, ficou com Melhor Primeiro Longa e Troféu Alfred Bauer, dedicado a "filmes que abrem novas perspectivas na arte do cinema". Muito longe de ser ruim, Gigante, de qualquer forma, revela-se uma historinha pueril de amor entre um ogro e uma garota, com final especialmente decepcionante, ou, talvez, a verdadeira revelação dos interesses do filme, que parecem voar baixo.

O filme de Biniez ilustra bem os caminhos tomados (e premiados) por esse quarteto de filmes. É correto, parece ter sido feito com grande cuidado a partir de manuais de realização, por alunos atentos à carpintaria. Faltam-lhes, no entanto, alma.

Curiosamente, o prêmio Alfred Bauer foi dividido com o mestre polonês Andrzej Wajda (Canal, Homem de Ferro). Com mais de 60 anos de cinema, apresentou em Berlim Tatarak, relato pessoal sobre a perda, claramente a obra de um cineasta maduro que passa a sua vida a limpo.

Berlim terminou juntando uma mostra praticamente paralela de cineastas veteranos com suas obras novinhas em folha, dos quais o filme de Costa Gavras talvez seja, de longe, o mais fraco e frustrantemente convencional. Na maioria dos casos, em tratando-se desses realizadores mais velhos, o espectador precisa ajustar-se à quantidade de alma em cena, e perceber a permanência curiosa de estilos de filmar que só poderiam ser descritos como "velha escola", motivo de grande quantidade de resmungos nas platéias.

A francesa Catherine Breillat, ainda debilitada e andando com auxílio de bengala por causa de um derrame, há dois anos, mostrou na Panorama sua reinterpretação da história do Barba Azul. Interessante o tempo inteiro, o filme passa como uma fábula infantil adequadamente terrível sobre a alma feminina.

O grego Theo Angelopoulos chuta o pau da barraca sem medo de ser feliz com The Dust of Time, um filme de arte do tipo que passa no inferno que tem o aspecto positivo de ser um filme singular, certamente de ninguém mais do que de Angelopoulos. Sem medo de quebrar suas gruas, o grego acredita na grandiloqüência de uma mise en scéne solene para falar sobre o peso da história na Europa, num período que cobre 50 anos. Alguns espectadores poderão protestar indo embora, mas o dinheiro do ingresso pelo menos está projetado na tela.

Se Claude Chabrol continua mantendo o nível com o seu novo policial farsesco Bellamy (passados alguns dias, pode-se dizer que seria um "filme menor" do mestre), o grande mistério do atual cinema chama-se Manoel de Oliveira. A piada em Berlim, dos muitos que se encantaram com seu novo filme, Peculiaridades de Uma Rapariga Loira, eu incluído, é que trata-se do Curioso Caso de Manoel de Oliveira, o cineasta de 100 anos que mostra-se mais leve e jovem a cada filme. Peculiar, com certeza.

Novo Costa Gavras


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Eden a L'Ouest foi o filme de encerramento do Festival de Berlim 2009, exibido em sessão de gala na noite de sábado. É o mais novo filme do cineasta greco-francês Costa Gavras, ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 1982 por Desaparecido – Um Grande Mistério (Missing). Na coletiva de imprensa, Gavras me confirmou que estará no Recife em abril, quando Eden L'Ouest (O Édem é o Oeste) irá abrir a próxima edição do Cine PE. O filme teve sua estréia internacional em Berlim.

Como todos os outros autores maduros cujos novos trabalhos tiveram estréias mundiais em Berlim ao longo das últimas duas semanas (o francês Claude Chabrol, o grego Theo Angelopoulos, o português Manoel de Oliveira), Gavras mostrou seu filme novo longe da competição, onde esteve pela última vez em 2002 com o fraco drama sobre o Holocausto e a Igreja Católica, Amém. Na noite de sábado, a Berlinale parabenizou Gavras pelos seus 76 anos, comemorados quinta-feira. Ele foi também presidente do júri ano passado, responsável pelo Urso de Ouro de Tropa de Elite.

Sobre os filmes de autores maduros exibidos em Berlim, Eden a L'Ouest tem um ritmo em alta rotação para narrar a história de Elias (o ator italiano Riccardo Scamarcio), um jovem imigrante que vai dar numa praia da costa européia depois de viagem difícil no porão de um navio cargueiro. Elias representa os milhares de imigrantes que chegam ao mundo rico sem uma identidade definida e de forma ilegal, à procura de uma vida melhor, um dos temas mais filmados do cinema europeu atualmente.

O material de imprensa do filme nos informa que há semelhanças com a Odisséia, de Homero, inclusive com o início da aventura no Mar Egeu. Elias, que pula do navio antes da abordagem da guarda costeira grega, vê-se preso num resort onde as classes mais ricas pagam por estadias higiênicas, distantes do mundo real, confirmando o tom de fábula do filme, repleto de simbolismos encaixados pelo roteiro de Gavras e Jean Claude Grumberg.

Inicialmente, a interpretação de Gavras sugere que esse clube (chamado Édem) seria um reflexo da própria Europa. Os ricos ali hospedados são egoístas e insensíveis, e querem explorar Elias em diversos níveis, inclusive sexualmente. Passada a primeira meia hora, o filme efetivamente toma as estradas do continente em direção a Paris, que Elias acredita ser a resposta para todos os seus problemas. Paris é também a promessa de um mágico, prova de que algumas metáforas escolhidas não têm tanta qualidade.

Gavras sempre foi bem sucedido ao longo da sua carreira com thrillers políticos ágeis, mas em Eden a L'Ouest ele parece bater alguns recordes de velocidade. Elias, composto como uma versão do bom selvagem, algo lamentável num filme sobre imigrantes, corre e se esconde durante a totalidade das duas horas de projeção, quando o espectador passa a ter a sensação de estar vendo uma bola batendo pra lá e para cá dentro de um fliperama.

Cada situação, algumas com não mais do que 30 segundos, também não parecem se sustentar bem. Lembranças de Depois de Horas, de Martin Scorsese (onde um personagem vê-se fugindo freneticamente da noite de Nova York) sublinha o quão menor esse filme de Gavras é.

Outra coisa que chama a atenção é o fato de Gavras sempre ter trabalhado personagens que agem contra alguma coisa. No caso de Elias, ele é apenas um boneco passivo, e outra vez esta não deve ser uma imagem a ser apreciada dos pobres imigrantes. Aos 76 anos, Gavras fez um filme de subversão zero.

COLETIVA – Exibido numa Berlinale já esvaziada, no sábado, Eden a L'Ouest foi, mesmo assim, relativamente bem recebido. Gavras, mesmo assim, sentiu críticas negativas no contato com os jornalistas, como uma colega francesa que perguntou com discreta irritação, "poquê seu personagem é tão ingênuo?" O diretor e co-roteirista não acredita que ele é ingênuo, mas que é um otimista, e citou Cândido, de Voltaire, como referência.

Perguntamos sobre a idéia do clube fechado como metáfora da Europa, e Gavras respondeu que, de fato, a idéia original seria ambientar o filme inteiro no "Édem", mas que logo perceberam que o resort nada mais é do que uma bolha onde as pessoas passam poucos dias".