Friday, February 6, 2009

O Leitor


Por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Passou também ontem fora de competição O Leitor (The Reader), filme de Stephen Daldry (Billy Elliot) que já está em exibição no Brasil como parte do pacote Oscar 2009. Na coletiva de imprensa, ontem à tarde, com a presença de Daldry, Kate Winslet, Ralph Fiennes, do jovem ator alemão David Kross e do autor do livro do qual o filme foi adaptado, Bernhard Schlink, Daldry tentou apresentar O Leitor não como "mais um filme sobre o Holocausto, mas sobre toda uma geração alemã que foi impactada pela herança sombria deixada pelos nazistas. "A maioria dos filmes sobre o Holocausto tem o ponto de vista da vítima, e o que me atraiu a essa história é que a personagem é um dos culpados."

Winslet não fugiu de perguntas sobre as cenas de sexo entre ela e Kross. No filme, ela foi integrante da SS num campo de concentração, e relaciona-se com um adolescente de 15 anos nos anos 50, sem que ele saiba do seu passado. "Não é algo que eu goste de fazer, mas faz parte da história. Li o livro seis anos atrás e me vi inspirada pelo amor entre os dois, é uma história de amor. Por isso, quando vejo coerência, eu vou lá e simplesmente faço".

Perguntada sobre a repercussão que esse tipo de cena tem na mídia puritana, Kate comentoiu que "basta você entender que as coisas são assim, o mundo é assim. Uu não leio críticas, entrevistas que eu dei ou matérias sobre celebridade, não temos nada de imprensa na minha casa. Atuar é uma paixão minha, e só é possível exercer isso com a cabeça aberta".

Fiennes explicou que é muito bom poder interpretar a segunda parte de um personagem (ele faz o personagem de Kross mais velho), pois normalmente você, como ator, precisa imaginar, criar, o passado de quem está interpretando. Nesse caso, estava tudo pronto, e ver as cenas com Kross me ajudou muito".

Ricky


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O realizador francês François Ozon está com um filme na competição do Festival de Berlim, chama-se Ricky, e é sobre um bebê. É provável que o leitor venha a descobrir o grande segredo do filme bem antes de Ricky chegar ao Brasil, mas não será por aqui. Acreditamos que certas descobertas (apelidados de "spoilers" no jargão da internet) devem ser feitas na sala de cinema, e não na imprensa. Segredos como esse em Ricky são raros, e fazem parte da própria construção do filme, feito por um realizador que parece ter o prazer de testar novos caminhos ao longo da sua carreira.

Ricky é o décimo longa metragem desse realizador de 41 anos. Cada filme de François Ozon divide bastante crítica e público, e o conjunto da obra revela-se uma virtual pesquisa de tons, estilos e atmosferas. Suspeitamos que esse talvez revele-se seu filme mais bem sucedido junto ao público.

Ricky deixou a imprensa por vezes incrédula no que estava vendo, e finalmente encantada com esse filme pequeno que começa como um drama realista ambientado num subúrbio parisiense (apartamento pequeno de classe média baixa). A mãe (Alexandra Lamy) é solteira e operária, a filha de sete anos Lisa (Mélusine Mayance, provavelmente a personagem mais discretamente forte do filme) é solitária, e vê com dissabor a chegada de um namorado da sua mãe, o espanhol Paco (Sergi Lopez).

A união gera uma gravidez, e logo Lisa terá companhia na forma de um bebê, Ricky, criatura que Ozon filma com a honestidade que bebês merecem, sem precisar carregar no quesito fofura que eles inevitavelmente têm. Também não poupa os detalhes mais sujos que essas coisinhas inevitavelmente produzem, e logo o espectador está totalmente envolvido, especialmente via olhar cético da irmã. Natural e progressivamente, Lisa perde o espaço para o recém chegado Ricky.

Aos poucos, no entanto, Ricky revela-se uma criança especialíssima, e o filme, crônica socialmente realista típica do cinema francês, toma rumos inesperados que ora lembram David Cronenberg, ora Walt Disney, com pitadas de uma fábula de Hans Christian Andersen.

Reações dos pais, de Lisa e, finalmente, da sociedade como um todo, permanecem totalmente criveis, e Ricky termina passando como o relato verdadeiro e bem narrado de uma história fantástica publicada num jornal sensacionalista, ou seja, algo realmente inusitado.

O filme é tão equilibrado na sua união de cinemas diferentes que o espectador tem a clara sensação de que uma certa idéia de Hollywood (o cinema fantástico, os efeitos especiais digitais) foi morar num apartamento cinzento de um subúrbio trabalhador francês.

Há algo de muito forte nessa mistura, pois Ozon lida aqui com a questão da identidade cultural de todo um cinema. O mercado nos ensinou a ver (e a esperar) que certas coisas simplesmente acontecem num determinado tipo de filme, mas que nunca ocorrem em outros tipos de cinema. Por mais que E.T. e Poltergeist, ambos da fábrica Spielberg, tenham nas suas bases um certo realismo, suburbano seus desdobramentos fazem parte de uma cultura de cinema (a americana) onde o fantástico já é esperado. Na verdade, é praticamente a norma.

Ozon quebra isso lindamente com o seu Ricky de dentro de uma idéia de estabelecida cinema francês. Sobra ainda um final inspirado que poderá nos levar em direção a um diretor que é capaz de deixar abertas portas para a visão emotiva de mundo apenas possível dentro do olhar de uma criança. Super bom.

Ontem, Ozon recebeu a reportagem do JC para uma entrevista no hotel Marriott, em Potsdamer Platz, onde nos falou sobre seu interesse em investigar diferentes gêneros. "Eu não escolho filmes tão diferentes entre si de maneira consciente, mas talvez escolha detalhes desses filmes seguindo instintos meus. E acho que alguns desses instintos são ligeiramente perversos, não tenho nenhum problema em afirmar isso!"

Filme visto em Berlim, fevereiro 2009

Thursday, February 5, 2009

The International





Olhos em Berlim

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O 59o. Festival Internacional de Berlim começou ontem sob dois fatores particulares à Alemanha. Lembranças da queda do Muro de Berlim, que em 2009 completa 20 anos, estão prometidas para todo o festival, e a comemoração de números excelentes para produções locais com a conquista de 27% do mercado de cinema. Ao longo do último ano, 129 milhões de espectadores foram aos kinos alemães. Para combinar, o filme de abertura, The International, do alemão Tom Tykwer, é uma produção multinacional, com dinheiro americano e germânico, ironicamente um filme onde os vilões são banqueiros.

Esse leve divertimento em formato de thriller conspiratório tem um aspecto curiosamente factual. Obviamente, Tykwer, que vem trabalhando no projeto há mais de quatro anos, explicou na coletiva de imprensa que tudo não passa de uma coincidência se o filme nos remete à crise financeira mundial originada na questão do crédito, fator claro e evidente já no início da projeção. "A crise é catastrófica, claro, mas para tentar tirar algo de positivo dela, talvez o público de cinema esteja mais ciente sobre os caminhos do poder no mundo de hoje", ponderou.

No filme, guerras e terrorismo são financiados por uma instituição financeira inescrupulosa com sede em Luxemburgo que banca guerras e o terrorismo. O modelo de negócio deles parece consistente com o do mundo real, que é negociar (ou fornecer crédito) para quem puder pagar, estimulando pequenas guerras e grandes conflitos. Os que tentam enfrentá-los, morrem misteriosamente em acidentes e assassinatos que os grandes poderes não tem muito interesse em esclarecer.

Até que entra o herói da história, um policial inglês (Clive Owen) trabalhando para a Interpol que acredita em fazer o bem para a humanidade, aliado sem nenhum motivo forte o suficiente a Naomi Watts, exceto talvez pela idéia de que os dois fazem um bom par. (química ausente entre os dois, aliás) Ela trabalha na justiça em Nova Iorque, investigando venda de armas no exterior, e o papel de Watts resulta no tipo de trabalho que atores, assim como os banqueiros do filme, fazem estritamente pelo dinheiro.

The International assobia e olha para cima como se a franquia A Identidade Bourne não existisse, talvez pelo fato de aqueles filmes de fato funcionarem bem como exercícios de cinema de gênero, atualizando a idéia de "thriller de espionagem". Nesse sentido, Tykwer parece levar cada uma das suas cenas como coisa séria, sem que ninguém tenha lhe alertado que o material é nada mais do que uma fórmula já tão gasta. Precisaria de alguém com visão, humor e até mesmo um pouco de saudável desdém para dar alguma energia a esse tipo de coisa.

Há uma cena, no entanto, digna de nota, um (improvável) tiroteiro no Museu Guggenheim de Nova York que poderá deixar alguns espectadores aflitos sobre a integridade física do acervo e, em especial, da arquitetura de Frank Lloyd Wright.

Tykwer, que firmou-se na Alemanha com filmes pequenos (Corra Lola Corra é o mais conhecido), entrou de cabeça em euro-produções faladas em inglês (Paraíso, O Perfume), e agora chega a The International, um filme realmente internacional. Faz o tipo de cinema consumista altamente industrializado que esperaríamos de um cineasta germânico globalizado do ano 2000, e esse seu primeiro produto de estúdio (Columbia/Sony) filmado em Berlim, Istanbul, Lyon, Nova York, Luxemburgo e Milão resulta num passatempo descartável que, de qualquer forma, poderá ter carreira comercial ok.

SUCESSOS - The International será o próximo grande lançamento alemão nas salas do país (12 de fevereiro), e deverá dar continuidade ao bom momento da produção local. Sucessos como Der Baader-Meinhof Komplex (indicado ao Oscar 2009) e o recente Keinohrhasen (Coelho Sem Orelhas), uma comédia, (quase cinco milhões de espectadores, 50 milhões de euros nas bilheterias), ajudaram o cinema alemão a chegar à maior porcentagem de ocupação das salas nacionais contra o produto de Hollywood desde 1991, número de difícil alcance no Brasil.

Wednesday, February 4, 2009

Berlim 2009


Chegando em Berlim (Táxi).

Pelo 3o. ano, faço cobertura da Berlinale para o Jornal do Commercio, com apoio do Consulado Alemão no Recife e Centro Cultural Brasil-Alemanha.

Atualizações constantes no blog.

Tuesday, February 3, 2009

Yes Man



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Engraçado como os dois lançamentos hollywoodianos da semana se comunicam, de certa forma. Tanto em Foi Tudo um Sonho (Revolutionary Road) como em Sim Senhor (Yes Man, EUA, 2008), os personagens partem para mudar de vida, infelizes com o estado de coisas e com a forma como se relacionam com o mundo em volta. Se no primeiro, um drama barrinha pesada, eles não conseguem, no segundo, uma comédia "pra cima" das mais simpáticas tudo corre bem. Curiosamente, Kate Winslet (em Foi Tudo um Sonho) e Jim Carrey (Sim Senhor) estiveram juntos em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, outra parábola sobre melhorar e mudar, meio do caminho entre os dois filmes.

Nesse novo filme de Jim Carrey, que o marketing nos levou a crer que seria tão pavoroso quanto O Mentiroso (Liar Liar), o interessante ator e comediante faz Frank, um bancário emocionalmente negativo, flagelo masculino que ainda sofre com o fim do seu casamento, anos antes. "Não" é a palavra chave da sua vida, "não" para o cara que distribui panfletos na rua, "não" para sair com os amigos que já estão desistindo dele, "não" para os clientes que vêm pedir empréstimos no banco. Imagino que "não" também para filmes como este, pois Frank é tão negativo que o seu tipo de filme antes do make over é Jogos Mortais e 300.

Como geralmente ocorre nesse tipo de coisa, ele encontra um velho conhecido que irá apresentá-lo aos prazeres do "sim!", levando-o a uma dessas palestras assustadoras de auto-ajuda, com platéia de centenas, em sala de convenções de algum hotel, que repete aos gritos mantras que chamam a mudança e explicam o segredo de viver. O ator inglês figura Terrence Stamp é o mestre do "sim", convencendo Frank a adotar a palavra de três letras que rima com tim-tim.

E lá vai Frank dizendo "sim", inicialmente a um sem teto que mora longe e no mato (o plano do homem emburacando nas brenhas é uma jóia de mau gosto), e que usa o celular de Frank até esgotar a bateria. Eis que quem planta colhe, pois os frutos desse primeiro "sim" levam Frank, sem celular e sem gasolina, a um posto, onde encontra a adorável figurinha Allison (Zooey Deschanel, espécie de gracinha número 1 do cinema ocidental), o início de um agradável romance.

O filme revela-se gracioso para com o bombardeio social e comercial diário que tenta nos levar a dizer "sim" (vírus de PC incluídos), seja verbalmente ou apenas clicando o computador, armadilhas que aprendemos com o tempo a resvalar em direção a uma quantidade realmente assustadora de "nãos".

A resignação de Frank rumo ao "sim" o leva a dois dos momentos mais grotescos do filme, e que se destacam feito dois dedos no olho. No primeiro, ele aparece com uma pretendente iraniana, tratada pelo filme como bichinho do mato que merece o tipo de achincalhe bem americano em relação a todas as coisas estrangeiras (ou de raiz muçulmana). O segundo envolve a vizinha idosa (e fogosa), e há uma piada fim da picada com, claro, próteses dentárias.

Felizmente, o filme é melhor do que esse tipo de coisa, e há um aspecto irônico de interesse. À frente dos empréstimos e trabalhando com crédito no banco, Frank evita no seu processo de vida pré-"sim" o seu chefe abiscoitado (é fã de Harry Potter) e, no contato com o público, passa a dizer "sim" sempre para micro-empresários ou alegres consumistas, o que talvez explique o tipo de crise mundial de crédito que nasceu nos EUA, "o crédito mais fácil do mundo". A piada funciona e lembra a outra piada política (esta consciente) de As Loucuras de Dick e Jane (sobre rombo em fundos de pensão).

Filme visto no UCI Ribeiro, Janeiro 2009, Recife

Revolutionary Road


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Os envolvidos com Foi Tudo um Sonho (Revolutionary Road, EUA/Inglaterra, 2008), sobre o naufrágio de um casamento, mostram-se muito bem casados, de certa forma, extra-filme. Leonardo di Caprio e Kate Winslet estiveram juntos há 12 anos em Titanic, sobre o afundamento literal de um navio. Winslet, que atuou num filme não muito diferente, Pecados Íntimos (Little Children), é casada com o diretor deste filme novo, Sam Mendes, que também freqüentou esse tipo de mal estar no seu super estimado Beleza Americana (1999). Foi Tudo um Sonho, que estréia hoje, tem três indicações ao Oscar, Figurino, Direção de Arte e Ator Coadjuvante para Michael Shannon.

Mendes (é inglês) vem do teatro, o que talvez explique sua queda pelo frufru em cena. Seu Beleza Americana ganhou cinco Oscars tratando seus personagens desesperados como bonecos de vudu, tudo muito cínico e afetado, com ornamentos de rosas vermelhas aqui e ali. Para quem queria mais afetação ainda, seu filme seguinte foi um banquete, Estrada Para Perdição (2002), adaptação de uma história em quadrinhos sobre um matador. Seu terceiro filme, Jarhead (2006), uma coleção de clichês superficiais sobre a guerra (no caso, do Kwait) que não ia, nem vinha.

Isso talvez faça de Foi Tudo um Sonho o seu melhor filme, até agora, o que talvez não diga muito sobre o filme, ou sobre o toque Mendes. De qualquer forma, ele parece melhorar o olhar sobre as pessoas no mesmo tipo de ambiente suburbano filmado em Beleza Americana. Há uma diferença, no entanto, um outro tempo. Será que Hollywood se solta mais ao distanciar-se da realidade e do tempo imediatos?

Estamos nos anos 50, década marcada pela idéia projetada de felicidade nos subúrbios americanos do pós-guerra, as chamadas "famílias nucleares" eletrodomésticas, limpeza total e um ar de felicidade de comercial de detergente. E todos fumam como se não houvesse amanhã.

Pela primeira vez, as atenções redobradas de Mendes para a decoração encontram eco nos conflitos humanos. April e Frank Wheeler (Winslet e DiCaprio) se conhecem numa festa novaiorquina, e ambos se descobrem como pessoas especiais. Os planos futuros de ela tentar uma carreira de atriz são imediatamente destruídos na cena seguinte, com o fracasso de uma peça de grupo amador de teatro onde ela tinha o papel principal. Esse fracasso é significativo, negando todas as possibilidades do sonho americano, seja em relação à celebridade, do bem sucedido, o constrangimento se ser uma perdedora.

Enquanto April preenche desconfortavelmente suas funções de mulher do lar, mãe de dois filhos (que o filme esquece totalmente de desenvolver, as crianças são nulidades presentes), Frank vê-se seguindo os passos do pai, um zangão anônimo que trabalhou numa grande empresa de equipamentos de escritório, em Manhattan. Ele detesta o mesmo trabalho e, talvez como forma de melhorar o ânimo de suas atividades no trabalho, passa a flertar fisicamente com uma das secretárias (Zoe Kazan, neta do cineasta Elia Kazan).

Proprietários de uma casinha branca na Rua Revolutionary, os dois são vistos com admiração/inveja no convívio social, embora saibam intimamente que talvez sejam "o melhor dos iguais". Desesperada por uma saída rumo à felicidade, April inventa um plano mirabolante de fuga que os levará a morar em Paris, onde Frank terá todo o tempo do mundo "para se achar", enquanto ela passará a ser a provedora.

Talvez seja o segmento mais discretamente triste do filme, quando o casal liga os motores para a fuga, com Paris em mente, verdadeiro ato de revolução pessoal que irá causar enorme desconforto nos amigos mais próximos. Tal ato é exatamente o que muitos gostariam de fazer, e não farão nunca, e essa psicologia do casal amigo é muito típica nas relações humanas, o distúrbio via reflexo de você mesmo.

Em meio a desdobramentos que cheiram realistas para com a vida prática versus vida sonhada, surge o personagem de um louco (Shannon, tão bom em Bug, e que Hollywood decidiu que sempre interpretará malucos), o filho problemático da corretora imobiliária dos Wheeler (Kathy Bates, perfeitamente matrona), sobrevivente de 37 sessões de eletrochoque. Problemático, aliás, é pouco, o caba é uma lapa de doido que só existe em filmes como esse, o doido 24 horas para o roteiro, grilo falante da moral sugerida, e que Shannon parece resignado em fazer, quem viu Bug sabe que ele faz bem (sua participação em World Trade Center deprimente, de outra forma).

Esse personagem, John, na verdade, parece incorporar repentinamente o roteirista, explicando tudo o que nós já estávamos entendendo sobre o casal em crise. É dele a frase mais impactante do filme, "muita gente vê o vazio, mas é preciso coragem para ver a total falta de esperança", perfeita para citar em textos como esse.

Não é exatamente um filme alegre, e não poderia ser. Mendes orquestra sua inhaca humana que sustenta-se bem na capacidade de vermos April e Frank como gente, e os dois atores parecem totalmente sincronizados nesse sentido. Se Winslet acrescenta peso só de estar respirando em cena, DiCaprio parece existir em três frentes distintas: macho de corte antigo na empresa, pai de família apaixonado e salva vidas frustrado do próprio casamento, sem sair-se bem em nenhuma das frentes.

Curiosamente, o segmento final soa desnecessário, acrescenta peso ao que já estava se equilibrando fragilmente, adquirindo o tom insuspeito até então de um novelão, piorado por uma cena final que Mendes parece ter resgatado dos arquivos de Beleza Americana. V

A imagem assinatura deste filme, no entanto, acontece bem antes, e poderá ilustrar a reação de casais casados, andando calados num longo corredor (de shopping), em direção ao carro novo da família.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009

Austrália


KIDMAN! JACKMAN! (e aborígene)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Por motivos misteriosos, Austrália (EUA/Austrália, 2008), novo filme de Baz Luhrman, foi maltratado nos EUA, onde atraiu reação negativa junto à crítica, nas bilheterias, sem conquistar também a atenção dos prêmios de prestígio da atual temporada, como Globos de Ouro e Oscar, com uma indicação apenas (Figurino), divulgada ontem, o que meio que dificulta sua carreira no Brasil.

É tudo uma questão de vento, sorte e mandinga, creio, pois não há nada no filme que nos leve a crer que ele deveria ser menos valorizado pela indústria do que o elefante branco O Curioso Caso de Benjamin Button, que está com 13 indicações. O filme de Luhrman lembra uma matinê antiga com tom de antiquário e brechó, e é certamente o bicho esquisito no cinemão de mercado atual.

Esse diretor australiano nos deu música, cores e movimento em Vem Dançar Comigo, Romeu + Julieta e Moulin Rouge, sua chamada "trilogia da cortina vermelha". Muda o foco para fazer um filme caro em tela larga sobre o seu país, com dinheiro hollywoodiano e do próprio governo australiano, que promete devolver à 20th Century Fox o que o estúdio venha perder caso o filme não se pague.

À frente das suas preocupações estão não apenas uma clara e evidente "taxa de paisagem" para satisfazer os burocratas, mas também a tentativa de exorcizar atrocidades sociais que fizeram parte natural da sociedade australiana até os anos 1970: o racismo grotesco que separou australianos brancos dos aborígenes, os nativos do país, tema abordado há alguns anos por um outro cineasta australiano, Philip Noyce, em Geração Roubada (Rabbit Proof Fence, 2002). E olha que não é uma ironia que um dos cartazes de Austrália mostre KIDMAN e JACKMAN bem grandes, e ali miniaturizado embaixo o pequeno aborígene...

Luhrman, no entanto, usa um painel de "grande aventura", e quem conhece mesmo que um pouco do cinema australiano, sabe que o país continental de clima tropical fotografa muito bem em Panavision, sua identidade visual semelhante ao do western clássico americano, seja em dramas intimistas como Picnic na Montanha Misteriosa (1975) e Gallipoli (1981), de Peter Weir, ou na trilogia Mad Max, de George Miller.

Essa identidade emprestada do cinema americano (vistas largas, secas, desérticas) ganha personalidade na iconografia local marcada por cangurus, camelos, coalas, bumerangues e, especialmente, pelo inglês colorido dos australianos, seja em sotaque ou palavreado.

Os heróis são Drover (Hugh Jackman) e Lady Ashley (Nicole Kidman), ele um caubói australiano de corte Crocodile Dundee (um filme bem melhor, e mais engraçado), ela uma aristocrata inglesa que vem resolver problemas de terra que parecem estar consumindo o seu marido. Proprietários de uma enorme fazenda cobiçada pelo maior empresário do país, King Carney (Bryan Brown), ela chega à localidade remota para encontrar o marido assassinado, a culpa jogada num mestre aborígene, avô de uma criança mestiça chamada Nulla, criada na fazenda.

Começando com um clima desagradável de Indiana Jones e o Tempo da Perdição, ele o macho áspero, ela cheia de frescura esganiçada, aos poucos o filme vai conquistando a atenção durante a perigosa viagem que levará cerca de duas mil cabeças de gado digital em direção à cidade de Darwin, na costa norte da Austrália, viagem de mais de mil quilômetros. Para atrapalhar a aventura e proteger os interesses do tirano Carney, capangas tentam sabotar a marcha, a parte mais aventuresca do filme.

A informação de que Drover foi, no passado, casado com uma aborígene impressiona menos do que se de fato víssemos esse herói branco australiano em relação amorosa com nativa, mas, ao invés disso, ele faz par mesmo com Nicole Kidman, cuja Lady Ashley rapidamente torna-se mulher rochedo, uma micro-Scarlett O'hara ativista de Ong do ano 2000 para as causas humanitárias da década de 40. E diverte.

O filme parece ter um problema claro e evidente. A marcha com o gado prende a atenção, utilizando todo tipo de imagem clássica do cinema americano e australiano do passado (dos já citados a Walkabout, de Nicolas Roeg, especialmente), e o feito é empolgante o suficiente para que o espectador pense que o filme acabou uma vez alcançada a meta.

No entanto, eis que tudo recomeça, dando ao todo um ar de mini-série em três capítulos, pois a última parte, sobre o ataque japonês a Darwin no pós-Pearl Harbor, em 1941, dá um reset no filme, infelizmente o segmento menos interessante, enorme barriga que leva tudo aos 160 minutos de projeção. Há falsos finais infelizes que não enganam ninguém, mas que tomam tempo e metragem.

Uma outra coisa, e que me chama a atenção. Se um filme desse porte, com orçamento de 130 milhões $ ainda precisa enfiar o pé na jaca nos efeitos digitais, criando uma sensação de interrupção no estilo e fluência das suas imagens caras, qual o filme que poderá ser filmado "à moda antga", e que caberia bem à idéia de Luhrman de fazer "uma aventura à moda antiga?" Tendo visto Benjamin Button e Austrália tão manipulados, bate sensação de desdém para com a coisa do digital. O problema não parece exatamente o uso do digital, mas a salada maluca de realismo e artifício.

Mesmo assim, a minha boa vontade me faz ver aqui um filme certamente curioso. O sucesso constante dos filmes anteriores de Luhrman lhe permitiu fazer esse filme autoral sobre seu país, obra de saudável bairrismo que pode não ter deixado o mercado americano muito interessado. A capacidade que esse diretor tem de mixar o passado do cinema numa obra nova com tom de milk-shake nunca deixa de ser interessante (especial piscada de olho para O Mágico de Oz, e Oz é apelido australiano para o país, vale saber), num filme largo que traz a paisagem real entrecortada com imagens digitais que revelam o momento exato de realização. Pode envelhecer mal.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009.

Quien Dice Que És Fácil?


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma das qualidades mais interessantes do que entendemos por "cinema argentino" é a sua capacidade de ser pequeno, ou talvez adequadamente dimensionado às suas necessidades, algo que filmes brasileiros, em geral, ainda não parecem ter observado. Mesmo em esforços não tão bem sucedidos como Quem Disse Que é Fácil (Quien Dice Que És Fácil?, Argentina/Espanha, 2007), filme de Juan Taratuto, percebe-se uma honestidade, nem que seja equivocada.

É a história de um trintão que ainda não amadureceu emocionalmente, tem uma vaga idéia do que mulheres significam e que apaixona-se pela sua inquilina, também sua vizinha, uma fotógrafa. Atraente, livre perante a vida e grávida, essa artista terá de acertar os ponteiros com esse homem imaturo, conservador e sexualmente inexperiente para, talvez, firmarem parceria para toda a vida, proposta que torna-se cada vez mais difícil de crer depois de um início promissor.

Há toques curiosos relacionados à sexualidade, à feminilidade, às diferentes tribos sociais ('caretas' e 'alternativos') e aos pormenores de contratos de locação para pequenos apartamentos. No entanto, Taratuto parece perder seu filme de vista rumo ao final, claramente tomado pela emoção paralisante de estar filmando uma história pessoal, transformando a chegada de um bebê numa homenagem brega à vida e às diferenças que existem no amor. Boas intenções, resultados decepcionantes com tendência ao horrível.

Filme visto no Cinema Rosa e Silva, janeiro 2009

Lemon Tree


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Vendo a produção multinacional (Alemanha, França, Israel) Lemmon Tree (Etz Limon, 2008), dirigido pelo israelense Eran Riklis com olhar claramente pró-palestino, talvez seja possível não apenas entrar um pouco mais nos conflitos tão divulgados que dividem muçulmanos de judeus, mas também pensar em alguns dos nossos. A imagem principal desse filme é a linha reta que divide, e que aqui ganha as formas de muros e cercas.

A incursão ultra-violenta que deixou mais de mil palestinos mortos ao longo do último mês na Faixa de Gaza dá relevância factual a Lemon Tree, exibido no Festival de Berlim do ano passado. Curiosamente, as citações a mísseis do Hezbollah e frases como "Israel às vezes passa dos limites" passam a sensação de que o filme foi finalizado duas semanas atrás.

Lemmon Tree (lançado no Brasil com esse título, literalmente "Limoeiro") utiliza um pequeno incidente doméstico em tom de fábula para ilustrar uma situação cujas linhas gerais o mundo já conhece relativamente bem. O governo de Israel decide derrubar os pés de limoeiro que pertencem a uma viúva palestina. Os militares decretam o pomar de Salma Zidane (Hiam Abbass, boa presença) uma ameaça à segurança do novo ministro da defesa, Israel Navon (Doron Tavory, milico asqueroso), cuja nova residência é vizinha da solitária viúva.

Seus limoeiros foram plantados pelo seu pai e, durante 40 anos, sustentaram a pequena economia da sua família. Ameaçados com o corte sumário (mais simpática indenização), as árvores oferecem, em teoria, proteção e disfarce para inimigos do estado contra o ministro e sua esposa, Mira (Rona Lipaz Michael), uma arquiteta, ela mesma sempre às voltas com linhas retas na tela do seu computador e em projetos plotados.

Sob uma camada espessa de "world cinema" edificante, Lemmon Tree revela-se aos poucos uma fábula de interesse, clássico arquétipo de Davi e Golias. Não há aqui a ironia cortante de um Elia Suleiman (do excelente Intervenção Divina, um dos melhores filmes desta década), cineasta palestino que não poupa os dois lados, mas também não há o equilíbrio internacionalmente calculado de Paradise Now. O ponto de vista é claramente a favor da personagem palestina, mulher que parece ter se recusado, ao longo de toda a sua vida, a falar hebraico, a língua dos seus vizinhos de cerca.

Com a ajuda de Ziad, um advogado (Ali Suliman, um dos homens bomba de Paradise Now), ela irá lutar na justiça contra Israel para manter o direito de ter o seu pomar, luta que o filme transforma em cenas rápidas e pouco espetaculares de tribunal, levando Salma e Ziad à última instância da suprema corte. Isso irá atrair a atenção da mídia internacional, a simpatia de governos estrangeiros e a um racha entre o ministro e sua esposa, ela uma espécie de eixo moral imparcial da história.

Nada mais simbólico que rupturas ocorram. Riklis, durante todo o filme, não economiza nas imagens de mecanismos de separação: as novas cercas de arame que separam o pomar da casa do ministro, o chamado Muro de Israel no West Bank (registrado em vídeo com tons documentais), check-points e novos muros erguidos para deixar as duas partes ainda mais distantes.

É o segundo comentário pessimista filmado via israelenses da safra 2008 a mostrar algum senso crítico sobre Israel e suas atitudes político-brutalizantes, o outro o notável Waltz With Bashir, de Ari Folman, que ganhou o Globo de Ouro de Filme Estrangeiro e que acaba de ser indicado (ontem) ao Oscar de Filme Estrangeiro.

Para brasileiros, Lemmon Tree também pode nos levar a lembrar que um outro conjunto de ferramentas históricas e políticas nos fazem viver com uma quantidade também espetacular de cercas e muros, divisórias ora cruéis, ora apenas ridículas do medo que separa as muitas classes que fazem o Brasil. É o cinema falando dos outros, mas, de certa forma, de nós mesmos.

Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, janeiro 2009

The Curious Case of Benjamin Button


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


« A vida não é medida em minutos, mas em momentos », diz o slogan de cartão de crédito utilizado no cartaz de O Curioso Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, EUA, 2008). O filme de David Fincher nos apresenta a história de um homem (Brad Pitt) que nasce velho e morre bebê depois de viver cerca de 80 anos na contramão do processo natural de todos os que ele conheceu e amou. É um dos filmes de prestígio e qualidade que aparecem como surto nessa época do ano, feito para deixar o grosso das platéias nos cinemas comerciais saindo pensativas até chegarem ao quiosque do shopping para pagar o estacionamento.

São 160 minutos dos mais ilustrativos, como se Fincher partisse para explicar, tim tim por tim tim, a imagem final da « criança estelar » de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, crente de que não deixará uma pergunta que seja sem resposta. O filme incha com grande pompa o conto de F. Scott Fitzgerald, originalmente publicado na coletânea Tales of the Jazz Age.

Vendo O Curioso Caso de Benjamin Button ser empurrado ladeira acima por Fincher e equipe técnica das mais capazes, nos chama a atenção uma das questões mais importantes dos que procuram na arte (teatro, música, dança, cinema…) algo que de fato nos intrigue, nos deixe mudados após nossa exposição à criação. Há uma diferença importante entre pensar e mostrar, e o filme de Fincher passa mais como um álbum de fotografias que, na pior das hipóteses, nós já esperávamos ver, da primeira à última foto.

O eixo existencialista do filme é uma história de amor entre o personagem titular e uma mulher chamada Daisy (Cate Blanchett, seu rosto e corpo indo dos 23 aos 80), ambos com mais ou menos a mesma idade, nascidos no pós-1a. Guerra Mundial em Nova Orleans. Button herda a fortuna do pai, Daisy torna-se uma bailarina que chega a dançar com o Bolshoi.

A grande tensão aqui vem do fato de ele, aos cinco anos de idade, ter a aparência de um diminuto nonagenário em cadeira de rodas, trabalho de caracterização e efeitos especiais interessantíssimo. Além de Pitt estar sob perfeita maquiagem, seu corpo ainda foi diminuído digitalmente, dando-lhe a aparência de um Yoda infantil, e o efeito é muito convincente (e estranho).

Todos nós sabemos que a idade avançada faz os idosos recuperar traços e tons infantis, mas o filme transforma isso numa imagem e tanto, parte das preocupações do realismo extremo perseguido por Fincher na sua carreira, na sua crença de que mostrar talvez seja mais relevante do que abstrair.

É uma das marcas pessoais desse realizador, que iniciou-se no cinema saído da publicidade e do videoclipe com Alien 3 (1992). Estilizou o filme de serial killer com Se7en (1995) e foi para as jugulares do pós-moderno com Clube da Luta (1999), um filme certamente curioso, mas claro trabalho de um cineasta verde, ainda com dificuldades de lidar com pequenos detalhes como o ser humano.

Seu interesse pela técnica cinematográfica faz com que seus filmes tenham o ar de brinquedos de um menino mimado, até que há dois anos ele lançou o muito bom Zodíaco, um brinquedo e tanto. Esse filme pessoal sobre, essencialmente, um lugar e um tempo, a cidade de Fincher (São Francisco) numa época (os anos 70) que ele viveu e conheceu, funcionou muito bem dentro da sua vontade de ilustrar tudo tão bem, sugerindo uma nova fase, talvez mais amadurecida, na sua trajetória.

Em Benjamin Button, no entanto, um filme sobre a vida e como vivê-la, é provável que o mostrar seja menos importante do que o sentir e o viver, aspectos que ganham tratamento já tão visto antes. Mais uma vez, por exemplo, temos a estrutura de um idoso no leito de morte, contando a sua insuspeita história de amor para um filho, algo usado recentemente no burocrático Ao Entardecer, com Vanessa Redgrave.

Vale salientar que a abrangência temporal do filme, ironicamente, parece falseada pela quantidade de artifícios que dublam lugares como Nova York, Rússia, Paris e o Atlântico Norte (em estúdios ou digitais), enquanto imagens da Índia parecem ter sido feitas de verdade. Em geral, o filme tem o look falso típico do cinema que utiliza o digital como um aliado que pode virar um inimigo.

Como o seu personagem Louis de Pointe du Lac em Entrevista Com o Vampiro (1993), Pitt atravessa a sua história com uma narração consciente cujo principal mote, e algo repetido inúmeras vezes, é a certeza de que « nada é para sempre ». Pitt, um ator competente que mostra-se quase sempre acima da sua presença indiscutível de estrela hollywoodiana, atravessa o filme com um ar frustrante de sonolência, como se Button nunca tivesse realmente parado para viver a vida, mesmo que ela tivesse o relógio indo no sentido anti-horário. Uma desconfortável lembrança de Forrest Gump (escrito pelo mesmo roteirista de Benjamin Button, Eric Roth) paira constantemente no ar, sem o benefício da ambiguidade daquele outro filme.

Esse filme de Oscar revela suas verdadeiras cores num final que honra em imagens o seu slogan publicitário, o tipo de artimanha emotiva cuja ressonância não parece ir muito longe.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009

O Corajoso Ratinho Desperaux



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma animação que não consegue livrar-se do fantasma de Ratatouille, O Corajoso Ratinho Desperaux (The Tale of Desperaux, EUA, 2008) estréia hoje, programa de qualidade garantida para as férias infantis, já que o direcionamento de mercado para o filme é exatamente esse. Com a prática da dublagem (que faz parte desse direcionamento), o vistoso elenco apresentado nos créditos de abertura torna-se inútil (Dustin Hoffman, Mathew Broderick, Sigourney Weaver), sobrando a fluente narrativa visual e as vozes cariocas que saem da tela.

Como no excelente filme da Pixar de dois anos atrás, esta é a história de um ratinho que irá desafiar os obstáculos para mostrar-se um grande herói. O pequeno Desperaux (menor do que os outros ratinhos já pequenos) e com orelhas de Dumbo é o personagem de um livro, lançado no Brasil pela editora Martins Fontes – A História de Desperaux, de Kate DiCamillo.

Há um tom de fábula, bem diferente da histeria colorida de Madagascar 2, e o cenário do filme sugere a Europa dos contos clássicos, um lugar chamado Dor, alguma localidade nórdica onde a sopa é o principal prato que une o povo. Sendo esta uma obra americana, o sistema de preparação artesanal da grande sopa pelo chef francês e dezenas de cozinheiros é apresentada como uma linha de montagem numa grande fábrica que administra frutas e legumes em esteiras industriais e roldanas de madeira.

Em momentos de dúvida na hora de temperar, o chef é visitado por uma espécie de entidade do sabor, talvez a criação visual mais interessante de todo o filme, misto de espantalho com horta ambulante, sua cabeça um jerimum, rosto, boca e nariz de picles, cenouras e outros membros honorários de uma boa salada. Toda a ação dentro da grande cozinha não ajuda muito o espectador no sentido de esquecer Ratatouille, que era sobre um ratinho com talento nato para a alta comida.

O filme, na verdade, começa com um personagem nos informando que ele não será o principal. Roscuro é uma ratasana de navio que, seguindo o olfato, vai parar na cozinha real. Um incidente no qual ele é o principal protagonista leva a rainha à morte durante um jantar oficial. O rei, inconformado com a perda, decreta o banimento de sopas, ratos e ratasanas do seu reino.

É nesse clima de medo e depressão que nasce o pequeno Desperaux, que a história nos mostrará o quanto é diferente da norma. Gosta de gatos e tem curiosidade pelos humanos. É tido como corajoso (rouba queijo de ratoeiras com um salto mortal) e logo desenvolve o desejo de querer ser um cavaleiro que poderá conquistar a princesa. Ele irá descobrir o submundo das ratasanas, que o filme parece nos mostrar como se fosse a sua própria versão do terceiro mundo. Lá as ratasanas são atrasadas e comem comida estragada.

A animação de Desperaux é realmente muito boa, sem conseguir nos mostrar nada de realmente novo. Percebe-se uma clara dificuldade de dar conta dos personagens e incidentes do livro, tudo sob uma camada esforçada e industrial. Não é um filme orgânico como os da Pixar, mas apenas um produto que almeja o bom gosto, e, de certa forma, acerta.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009

Sunday, February 1, 2009

Perambulando pela memória dos Outros





Em Paris, em janeiro, as exposições de/para Dennis Hopper e Serge Gainsborug, e o novo filme de Agnés Varda.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


PARIS - Memória e filmes caminham juntos, o cinema não existe sem os arquivos mantidos, as imagens guardadas e os relatos pessoais sobre o tempo. O tema essencial aparece atualmente com destaque na França através de duas exposições e um filme novo, todos compostos de fragmentos do passado, em imagens e sons. Sem fazerem parte de um projeto único e coordenado, a existência dos três num mesmo momento em Paris mostra o tipo de sintonia que há entre artistas. São eles o ator, diretor e artista plástico americano Dennis Hopper, o também multi-artista francês Serge Gainsbourg e a cineasta francesa Agnès Varda.

Na verdade, me parece que as personas artísticas de Hopper e Gainsbourg ganham validação moderna cada vez mais forte no nosso hoje dentro de uma visão "multi", tão aplicada nas multidisciplinas contemporãneas. Os dois são temas de exposições construídas a partir de arquivos pessoais, os deles. São dois multi-artistas cujas carreiras no cinema e na música (respectivamente) de certa forma eclipsaram suas conquistas em outras áreas. Agora, suas importâncias ganham esse alcance que nos leva a enfoques variados.

A Cinemateca Francesa mostra-se generosa no resgate de Hopper fotógrafo e artista plástico ao lado do ator e cineasta de Easy Rider (1969), da mesma forma que a Cité de la Musique revela o Gainsbourg não apenas compositor, mas também "o homem renascentista das expressões artísticas", inclusive do cinema.

É significativo que a exposição Dennis Hopper & Le Nouvel Hollywood (até 19 de janeiro na Cinemateca Francesa, Paris) comece com uma projeção do homem num monólogo ricamente ilustrado e marcado pela frase "eu me lembro...", uma série de reminiscências que cobrem, em dez minutos, os últimos 50 anos de visões pessoais e históricas na voz e no rosto de Hopper. "Eu me lembro do rosto de James Dean..." é a primeira, "...Eu me lembro de Barack Obama fazendo campanha para a presidência dos EUA..." a última.

Boa parte das lembranças oferecem um retrato pessoal dos EUA, sendo ele um protagonista de peso na cultura, ao mesmo tempo em que atuou como um retratista desse tempo. O subtítulo da expo nos lembra que Easy Rider, que Hopper dirigiu e atuou em 1969, redefiniu os caminhos de um novo cinema americano, livre e autoral, a partir dali, resultando numa leva sensacional de filmes na primeira metade dos anos 70.

Essas lembranças de Hopper também existem impressas em papel, pois ele fotografou tudo e todos desde o início dos anos 60 (amigos o chamavam de "turista", com câmera sempre presente), e essas fotos oferecem olhar intimista de gente como Paul Newman, Andy Warhol e Jane Fonda.

Mais curiosos ainda são as reinterpretações do homem Hopper via obras de Julian Schnabel (também cineasta) e Warhol, integrando a expo, ou a maneira como Hopper se mostrou ao longo da sua carreira em filmes tão variados como Juventude Transviada, Apocalypse Now e Veludo Azul, ou publicidades de carro onde cita ele mesmo e seu Easy Rider.

A sensação de passar duas horas dentro de um grande armazém de objetos e idéias pessoais também existe em Gainsbourg 2008 (até 1o de março na Cité de la Musique, Paris), uma outra carga de imagens e sons sobre o artista que faleceu em 1991. O eixo da exposição é associar livre e fielmente as múltiplas influências de Gainsbourg como criador (especialmente a música, as letras e as imagens) numa época em que a sua obra torna-se cada vez mais conhecida longe da França, onde, de certa forma, manteve-se restrita ao longo da sua carreira.

Melodista agraciado e letrista iluminado com radar afiado para o mundo, a política e as mulheres (suas musas Brigitte Bardot e Jane Birkin), a exposição oferece o arquivo (música, filmes, acervos digitais manipuláveis pelo visitante) como forma de entender um criador do passado cuja obra continua totalmente relevante no presente.

E Agnès Varda é a terceira parte desse passeio não planejado em janeiro de 2009 pelas memórias guardadas em arquivos áudiovisuais. Seu filme novo, em cartaz na França, chama-se Les Plages d'Agnés (As Praias de Agnes), um diário de vida que pode ser visto como um documentário narcisista, mas que não merece realmente o comentário nesse tom negativo. Há um claro desejo da sua autora no sentido de compartilhar (mais uma vez) seu rico arquivo pessoal, do topo dos seus 80 anos de idade, deixar claro que viveu a vida e que foi importante.

Recentemente, Ernesto Barros programou no Apolo (Recife) uma temporada de filmes de Jacques Demy, o companheiro de Varda (falecido em 1990), e com quem colaborou no cinema e na vida. A presença de Demy em As Praias de Agnès soa como a leitura de velhas cartas pessoais, e persiste no filme a sensação de uma artista que precisa compartilhar com o mundo um pouco da sua vida, balanço arquivado de imagens e sensações que ela filma em esquetes documentais, e outras figurativas de tom sentimental.

É um filminho tocante, de alguém que quer deixar imagens e sons como herança. Isso nunca é ruim.

Num determinado momento, ela nos mostra Serge Gainsbourg no estúdio, ou um Harrison Ford lembrando com sarcasmo que o estúdio o rejeitou para papel principal de um projeto de Demy em Hollywood, logo após o sucesso de seus filmes nos anos 60 (Os Guarda-Chuvas do Amor, Palma de Ouro em Cannes 1963).

À certa altura, Varda mostra a Palma conquistada pelo marido e o seu próprio Leão de Ouro em Veneza 1985 (por Sem Teto Nem Lei-Vagabond), ameaça de auto-parabenização, pensa o espectador, mas usa os troféus para mostrá-los sumindo no tempo.

É um filme pessoal, home movie lançado nas salas, e que sugere registrar os amigos e os fatos não tanto na forma que eles realmente existiram e ocorreram, mas da maneira que a portadora das imagens e das memórias quer que sejam lembrados.

Changelling



Lábios procuram o filho perdido no passado.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Há um mês, registramos os 100 anos de Manoel de Oliveira, que trabalha no seu mais novo filme, Singularidades de uma Rapariga Loura, com provável estréia no próximo Festival de Berlim. A Troca (Changelling, EUA, 2008), que estreou no último Cannes, é a mais nova peça na obra de Clint Eastwood, que aos 78 anos nos dá dois filmes feitos e lançados em 2008. Esse é o primeiro que chega ao Brasil, o segundo, em cartaz nos EUA, chama-se Gran Torino (lançamento no Brasil em março). Não deixa de ser um privilégio ter um Eastwood apresentando suas narrações tão distintas da norma atual.

Por ser prolífico e pontual, já escrevemos sobre Eastwood e seu cinema ao longo dos últimos anos sempre com esse misto de respeito e admiração, talvez uma postura conservadora de reverência a um tipo de escrita que vem carregada de tempo, e é possível que haja algo de bom nisso. O segredo aqui é entender onde fica a real admiração pelo cinema e a condescendência com o autor que pode, de fato, vir a fazer um filme não muito bom.

Tem sido uma leva consistente de dramas americanos essa de Eastwood, e que parecem funcionar com público e crítica. Têm surgido como candidatos constantes às honrarias da chamada "temporada de prêmios" de Hollywood, e a atual temporada começa neste domingo com O Globo de Ouro.

Destaca-se nessa obra o trabalho de alguém que parece emular nos seus filmes novos o estilo do cinema clássico americano do passado. Menina de Ouro (Oscar de Atriz, para Hilary Swank, e Direção para Eastwood) sugeria ter como raiz os dramas realistas de boxe da Warner nos anos 30, A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima (lançados com intervalo de apenas dois meses) pareciam releituras de filmes de guerra dos anos 40. Já A Troca passa como um melodrama dos anos 30, o tipo de coisa que uma Claudette Colbert estrelaria na época.

Essa busca por um cinema do passado ganha clara sugestão já nos primeiros segundos de projeção de A Troca com a utilização da vinheta original dos anos 30 da Universal, no lugar da moderna animação digital colorida que vemos normalmente. O que segue é a proposta de sermos transportados para a Los Angeles de 1928, num trabalho de reconstituição visual repleto de pequenos e grandes detalhes, o maior prazer deste filme. Planos gerais de ruas e da cidade do passado não são poupados.

Christine (Angelina Jolie, lábios e lágrimas em personagem de papelão) é a mãe solteira de Walter (Gattlin Griffith). Funcionária da empresa telefônica (lindo cenário), ela divide as obrigações profissionais com as maternas numa época em que as mulheres ainda lutavam por espaços de chefia. Chegando em casa um dia, Walter sumiu, o que estabelece a base desta história real.

Lembranças de Los Angeles – Cidade Proibida (L.A Confidential) surgem no sentido de os dois filmes terem como forças narrativas a corrupção, incompetência e pura malvadeza histriônica da polícia da cidade na época. Christine é transformada em objeto de marketing ao virar peça chave de um plano absurdo de tons surrealistas dignos de um pesadelo, uma vez que as autoridades entregam a Christine (com presença da imprensa) um garoto que não é o seu filho. Por mais que ela explique que aquele garoto estranho não é dela, termina levando-o para casa.

O tom novelesco do filme (porém filmado como grande cinema de tela larga) encontra tradução na presença de John Malkovich, como um pastor radialista que denuncia os podres da polícia, aliado poderoso de Christine. Malkovich marreta sua interpretação quase tanto quanto a enfermeira loira do sanatório que recebe a pobre mãe injustiçada, e essa enfermeira parece estar sob empréstimo de Olga, de Jayme Monjardim.

Entre o fascínio de um filme antigo e a sua própria obesidade, o espectador poderá ver-se constantemente interessado e frequentemente confuso. Com 140 minutos não muito fluentes, A Troca passa de mãe coragem - "eu quero meu filho!" – a filme de serial killer com gradual investigação, terminando com drama de tribunal, cenário muito freqüentado pelo cinema americano, onde verdades vêm à tona e a moral da lei é conquistada e restituída aos bons de espírito.

Curiosamente, a moral é de fato devolvida, mas Eastwood fica devendo à sua personagem parte importante da sua própria alma, sob o peso do mistério e do horror de ter um filho que sumiu.

Impossível não ignorar o sentido legalista de Eastwood, seu horror ao abuso de crianças (Sobre Meninos e Lobos ecoa nesse novo filme) e o fim que criminosos do tipo merecem por crimes hediondos: a pena de morte, uma outra instituição americana. O filme cresce, no entanto, ao (ironicamente) alongar-se ainda mais na sua duração desengonçada para nos mostrar que não é fácil encontrar paz mesmo vendo seu algoz sendo executado na sua frente, ou mesmo sendo uma cinéfila constante apaixonada por Clark Gable e Claudette Colbert.

Na sua estréia em Cannes, A Troca parecia uma obra inacabada. Se o tom melodramático folhetinesco (gente boa contra gente ruim) era aquele mesmo, seu aspecto inchado e à procura de polimento sugeria um filme que poderia ser melhorado. Revendo-o essa semana no Recife, A Troca é o mesmo filme. Esperemos Gran Torino.

Filme revisto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009.
Visto originalmente em Cannes, sala Lumiere, maio 2008.

Cinema Jean Vigo, Bordeaux




por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O Jean Vigo fechou no dia 30 de dezembro, em Bordeaux, na França. A prefeitura da cidade, que subsidiava a sala, decidiu encerrar a parceria.
Na França, cinemas de artes e ensaios ("arts et essais"), em ruas, como esse recebem subsídios para existir como forma de oferecer uma outra experiência cinematográfica, e de olhar, longe dos multiplex.

A penúltima sessão foi Annie Hall, de Woody Allen, em 35mm, que eu fui ver. O filme foi parte de uma temporada de Woodys dos anos 70, na sua fase "Diane Keaton" (Sleeper, Love and Death, Annie Hall e Manhattan).

Caos Calmo



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

22/12/2008

Interessante escolha para uma programação de natal no Cine Rosa e Silva com o filme italiano Caos Calmo (2008). De certa maneira, muitos de nós chegam ao final do ano sob o peso de um dezembro caótico de fechamentos de processos pessoais e profissionais e uma correria de compras refrigeradas que, ironicamente, querem apontar para um final de ano marcado pela paz, harmonia e tranqüilidade. O filme de Antontello Grimaldi estreou no último Festival de Berlim e foi um sucesso comercial nos cinemas italianos, adaptado de um best-seller nacional escrito por Sandro Veronesi.

O personagem principal chama-se Pietro Paladini (Nanni Moretti), é ele quem passa pelo momento titular. Acaba de perder a esposa jovem e tem uma filha pequena. Por algum motivo, nem ele nem a filha reagem emocionalmente dentro dos padrões conhecidos. Ele desenvolve instinto de super-proteção com a filha mantendo sempre uma expressão serena de perplexidade e pânico controlado. A menina não parece entender que a mãe não estará mais do seu lado, e se entende, parece tentar não lidar com isso.

O eixo dramático do filme, e aspecto memorável do mesmo, é uma praça bucólica. Ao levar a filha na escola pela primeira vez depois da grande perda pessoal, Pietro promete à filha insegura e debilitada que ficará ali o dia todo, esperando ela sair. O que seria o ato de um dia, logo se transforma em vários dias, e em algumas semanas, com Pietro sentado nos bancos da praça enquanto a filha fica na escola. É um feito e tanto já que Pietro é um grande executivo de um enorme conglomerado da comunicação.

Sua estadia na praça, ou sua greve de responsabilidades perante dores da alma, resulta numa série de interações com os que freqüentam o lugar normalmente, de mulheres lindas e simpáticas que passam andando, uma relação terna com um garoto e as visitas preocupadas do irmão de Pietro (Alessandro Gassman, filho de Vitório). Seu chefe estrangeiro, ninguém menos do que Roman Polanski, também o visita ali, reforçando o clima geral de paz na terra aos homens de boa vontade.

Bem menos pegajoso do que algumas cenas nos levam a achar que o filme poderia ser, Caos Calmo resulta numa experiência curiosa não só como produto, mas como parte da trajetória de Nanni Moretti. Esse autor italiano dono de um cinema em Roma, primo de segundo grau de questões humanas e estéticas de um Woody Allen, normalmente dirige seus filmes pequenos, um deles, O Quarto do Filho (Palma de Ouro em Cannes) com questões semelhantes às propostas em Caos Calmo.

Nesse aqui, ele atua e é co-roteirista, sua presença sempre interessante, tolerante, e é impossível não citar um momento inesperado de Caos Calmo que é ver Moretti numa cena de sexo especialmente descabelada. Um detalhe ruidoso como esse é exatamente o que diferencia o cinema mundial da escrita hollywoodiana, onde personagens benignos são desprovidos de sexualidade para confirmar ideais puritanos que regem a indústria. Nesse caso, apenas aumenta a sensação de estarmos diante de cenas honestas da vida humana, e isso nunca é ruim, especialmente nessa época de natal.

Manoel Faz 100 Anos


"Em julho de 2001, uma menina acompanhada de sua mãe, distinta professora de História, atravessa milênios de civilização ao encontro do pai"

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Esse é o singelo letreiro que Manoel de Oliveira usou para abrir um dos seus mais belos exercícios filmados, Um Filme Falado (2003), que ele rodou aos 95 anos de idade. Aqui, seu cinema da Mandragoa/Gemini Films elegantemente ciente não apenas de si, mas fascinado com o passado e a Europa, encontra um reflexo nítido. Revendo o filme às vésperas do aniversário de 100 anos desse realizador único, torna-se impossível não aplicar o doce letreiro à própria trajetória do homem em si, Manoel de Oliveira.

Esse autor português de cinema atravessou, de fato, um bloco particularmente espesso de história, o século 20, seu curta Encontro Único (Rencontre Unique, 2006) leve e ligeiro assinala isso, numa reimaginação do que teria ocorrido se o Papa João XXIII tivesse encontrado Nikita Khrouchtchev num jantar, em algum ponto do século 20.

Sua trajetória sugere algo de místico na sua longevidade, e conectar um ser humano nascido em dezembro de 1908 à sua desenvoltura física e intelectual em dezembro de 2008 é algo que parece mexer com as regras da própria natureza, não obstante o fato de termos no Brasil um outro caso raro do tipo no colega de geração de Oliveira que é Oscar Niemeyer, também ativo aos 101.

Muito se fala e se escreve na grande mídia sobre Oliveira como objeto geriátrico, a descrição mais medíocre possível a de que é "o cineasta mais velho em atividade". O fato que é realmente belo, algumas vezes esquecido como observação quando ele é o assunto em questão, existe mesmo na compreensão de que Manoel de Oliveira é velho. No entanto, como podemos computar esse fato no sentido de nos dar uma obra incomum e que não pode ser dissociada de toda uma trajetória de tempo que ele mesmo sugere tentar compreender na sua produção?

Observar sua filmografia e vê-lo concentrando o grosso da sua produção como octogenário e, especialmente, na sua nona década (entre 1930 e a década de 70, fez 14 filmes, mas nos últimos 25 anos já conta 34, com mais um previsto para 2009, Singularidades de uma Rapariga) explica um olhar pessoal ímpar em tom, ritmo e recorte sobre temas como o tempo. Não tanto o peso do passado, mas a sua beleza. Isso explicaria o fato de vir filmando, já há dez anos, um filme por ano, às vezes dois, entre longas e curtas. Ele, que foi corredor automobilístico, parece estar correndo também agora.

Esse é um retrato possível de um artista que, numa imagem emblemática, foi visto por mim no último mês de maio, no Festival de Cannes, não apenas recebendo uma homenagem de Gilles Jacob – presidente de honra de Cannes -, mas, não muito longe dali, num outro dia, andando sozinho e tranquilamente aos 99 anos de idade na calçada da Croisette, com bengala e chapéu panamá. Ele sempre faz isso, em Cannes.

A homenagem de Cannes 2008 (amplamente divulgada na grande mídia sublinhando o já citado fator geriátrico do homem) aconteceu principal sala do festival, diante de toda a comunidade cinematográfica que o aplaudiu de pé. Foi ali celebrada a vida centenária de Oliveira, associada na cerimônia aos 100 anos do próprio cinema, idéia que lhe cai bem factual e poeticamente. Ao vê-lo passando por mim na Croisette, numa manhã apressada de Cannes, algo me chamou a atenção na imagem saudável do ancião esguio.

A primeira informação racional que vem à cabeça é o fato de ser este um cineasta cujo primeiro filme - Douro, Faina Fluvial - ele realizou em 1931, época em que o cinema ainda se reequipava para os filmes sonoros, e quando o seu anfitrião em Cannes, Gilles Jacob, presidente de honra do festival, tinha um ano de idade incompleto. Que distância de vida e de história separam Douro, Faina Fluvial, um filme mudo, de Um Filme Falado, realizado por Oliveira já na década de 2000!

Se a distância é incomensurável, percebe-se nos dois filmes uma ligação profunda à idéia de geografia humana e histórica que parece ter como base sua terra natal, a magnífica cidade do Porto. Da presença constante do rio no primeiro filme, à sua fauna ribeirinha, temos a despedida das terras portuguesas como os antigos navegantes, poeticamente substituídos pela mãe e sua miúda loirinha de Um Filme Falado.

A percepção dessa cidade me leva à pouco discutida, mas muito desfrutada força que alguns insistem em chamar de "mística", inerente ao processo artístico em geral, e certamente presente também no cinema, e no cinema de Oliveira. No nosso papel de observadores, essa mística geralmente ocorre quando encontramos na imagem apresentada uma sintonia para o que pensamos, ou, melhor ainda, quando a projeção nos mostra caminhos novos.

Isso é normalmente amplificado pelas relações pessoais que estabelecemos com certos objetos, cabendo ao artista o papel de mediador. O que dizer, por exemplo, de uma visita apaixonada ao Porto e, por uma feliz coincidência, assistir ali mesmo, no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, a O Porto da Minha Infância (2001), homenagem pessoal de Manoel de Oliveira ao lugar que o definiu?

O filme, com pouco mais de uma hora, é uma caixa de lembranças ordenadas organicamente num pensamento em fluxo. Oliveira foi filho de família burguesa, seu pai o primeiro fabricante português de lâmpadas elétricas. Nesse filme, outra imagem emblemática a ser lembrada nesse mês de comemoração: um homem escala sozinho, nos anos 20, e sem a ajuda de cordas ou aparatos de segurança, os 76 metros da Torre dos Clérigos, claramente uma lembrança aqui restaurada pelo cinema da juventude de Oliveira.

Seu interesse pelo Porto mostra-se presente tanto na parte inicial da carreira, com relatos documentais (Douro, Faina Fluvial, ) e ficcionais (Aniki Bobó, 1942, sobre crianças da área ribeirinha), como nesse filme recente que ilustra o fator réquiem tão curioso no cinema recente do autor português.

A obra réquiem não é exatamente uma área restrita aos que chegaram à idade avançada, mas ela parece surgir naturalmente para muitos desses artistas maduros. No cinema, há exemplos de realizadores que sustentam hoje em dia um ritmo acelerado já depois dos 70 anos de idade como se pouca coisa os afetasse. Woody Allen, Alain Resnais, Clint Eastwood, Sidney Lumet, ou os brasileiros Eduardo Coutinho e Domingos de Oliveira, que filmam como jovens.

Debruçando-nos sobre suas respectivas obras pessoais, é possível enxergar reflexões sobre eles mesmos com o tom de uma reavaliação e ciência de que o fim se aproxima. De qualquer forma, obras como Os Imperdoáveis (Eastwood), O Fim e o Princípio (Coutinho) e o recente Juventude (Oliveira) parecem atropeladas pela própria energia de vida desses realizadores, que dão continuidade ao que fazem com trabalhos seguintes não tão claramente associáveis à idéia da passagem.

No cinema de Oliveira, esse tom tem sido presente de forma constante, leve e plena de beleza, e o início dessa fase pode ter sido iniciada em 1982, quando fez o ainda inédito Visita – Ou Memórias e Confissões, o filme que, de fato, ele deseja ter como testamento. Sua exibição está interditada até depois da sua morte, e sabemos que nessa obra há lembranças pessoais que incluem sua prisão via Policia Internacional de Defesa do Estado, no ano de 1963.

O desejo de ver finalmente Visita – Ou Memórias e Confissões gera, portanto, um impasse para o observador. Só veremos o filme depois da morte de Oliveira, o que nos leva a não querer ver essa obra tão cedo. De qualquer forma, um plano precioso da sua obra conhecida parece ilustrar com propriedade esse artista.

Em Viagem ao Princípio do Mundo, um homem velho (Marcello Mastroiani, no seu último papel), visita as cercanias de onde cresceu no norte de Portugal. À certa altura, ele olha para a janela traseira do carro, que trafega por uma quinta portuguesa, e durante mais de dois minutos, vemos a estrada ficando para trás. O tempo.

A Mulher do Meu Amigo



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma discussão de tom nacionalista relacionada à nossa presença no mercado de cinema indica que entre o lixo estrangeiro e o lixo brasileiro, melhor ficarmos com o lixo feito aqui. De fato, é melhor mesmo, e mais saudável, mas há uma terceira possibilidade que é, entre uma bagaceira e outra, evitar as duas. Um caso específico é o filme A Mulher do Meu Amigo (Brasil, 2008), de Cláudio Torres, que funciona como nossa resposta nacional a algo importado como Jogos Mortais V. Dependendo da visão de cada um, ambos são comédias, ou filmes de horror. Essa produção da Conspiração Filmes tem um elenco composto por Marcos Palmeira, Maria Luisa Mendonça, Mariana Ximenes e Otávio Muller.

Não se sabe bem ao certo o porquê, mas a comédia brasileira de mercado vai bem mal, alguns filmes memoráveis apenas via busca na internet apontam para isso (Trair e Coçar é Só Começar, Muito Gelo e Dois Dedos D'Água, Sexo Com Amor, A Guerra dos Rocha). É uma lista tão pavorosa que, numa visão retrospectiva, o grande sucesso recente do gênero, Se Eu Fosse Você (o "2" estréia em janeiro), termina sendo o nosso atual Um Convidado Bem Trapalhão (The Party), de Blake Edwards, ou Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot), de Billy Wilder.

Para começar, é difícil fazer uma comédia, especialmente se o gênero, tão propício ao comentário sobre o ser humano e o mundo e seu estranho funcionamento, parece estar sendo tratado como pedras de dez toneladas jogadas em caminhões caçamba de 12 pneus. Curiosamente, a melhor comédia brasileira do ano parece ter sido mesmo Juventude, de Domingos de Oliveira, um micro-filme feito em vídeo sobre três homens maduros e suas lembranças da vida, isolados numa mansão interiorana e, mesmo assim, um filme humano e engraçado. A ironia é que A Mulher do Meu Amigo seria uma adaptação de um texto do mesmo Domingos de Oliveira (Largando o Escritório, no original), talvez não por acaso também ambientado numa mansão interiorana.

Palmeira (a presença mais serena do elenco) é um advogado de 38 anos, casado com a filha (Ximenes) do dono (Antônio Fagundes, especializado em ser dono, chefe e Deus). Num final de semana na já citada casa, o amigo (Muller), sua esposa (Mendonça) e os filhos testemunham uma mudança de alma no advogado, que decide abandonar o mundo dos grandes negócios escusos para dedicar-se a uma vida mais saudável, largar o escritório e cuidar dos despossuídos. Descobrimos que sua esposa é amante do amigo há mais de dez anos e que, numa ausência dela e do amigo, ele irá se interessar pela mulher do amigo.

Não é um filme de insinuações, mas de marteladas, um pouco como as tentativas de uma perua mostrar-se elegante. De fato, o filme parece direcionado ao vasto público perua dos multiplexes de bairros abastados que ainda acha que, para compreender que um casal irá ficar junto, Let's Get it On, de Marvin Gaye, precisa ser ouvida na trilha sonora. Detalhe interessante é a participação das crianças, que não falam, não têm nome e o tempo de tela que têm deve ser igual à do merchandising, que continua aparecendo como faróis em cena.

Tudo isso vindo de Cláudio Torres, uma das forças criativas da Conspiração Filmes, cujo primeiro filme, Redentor, sugeria coisas melhores do que esta. Chama a atenção a mão de Torres para com os atores. Exceto por Palmeira, que parece ter se recusado a seguir orientações, Ximenes, Muller e até mesmo a sempre interessante Mendonça desfrutam de uma euforia estranha localizada a pelo menos cinco graus da realidade. Sugerem o desespero dos que estão desesperadamente sem graça.

Deserto Feliz


Hermila Guedes e Nash Laila em Brasília Teimosa.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Depois de estrear internacionalmente no Festival de Berlim do ano passado, ter exibições vitoriosas em festivais como Gramado (prêmio de Melhor Diretor), Rio e Mostra de São Paulo de 2007, e passar por um longo período de reconfiguração de custos de produção, finalmente chega aos cinemas Deserto Feliz, filme de Paulo Caldas (co-diretor de Baile Perfumado e Rap do Pequeno Príncipe). O longa metragem nos conta a história de uma garota de Petrolina que toma o sentido leste para a sua vida rumo a Boa Viagem, no Recife, e de lá para Berlim, na Alemanha, traçando um painel humano moderno de movimentações políticas e econômicas que levam as pessoas de um lado ao outro.

O filme de Caldas apresenta um processamento importante no sentido de estabelecer a produção pernambucana ligada direta e tematicamente com o mundo exterior, muito embora a predominância de obras de sabor "local" (Amarelo Manga, Baixio das Bestas, de Cláudio Assis), mas de apelo universal, nunca tenha sido realmente um problema nos filmes aqui produzidos. Depois de flertar com personagens estrangeiros em Baile e Cinema Aspirinas e Urubus, Deserto Feliz parece passar para a próxima fase.

O faz sob um dos temas principais do cinema hoje, que é a relação entre mundo pobre e mundo rico. Narrado no que aparentam ser três atos, Jéssica (Nash Laila), no primeiro, é a menina sertaneja que mora nos arredores de Petrolina, onde o verde das plantações domina, e verde é algo que Caldas já havia aprovado (em Baile Perfumado) como cor representativa de um sertão que o cinema insiste em mostrar cinza.

Jéssica mora com a mãe (Magdale Alves) e o padrasto (Servilio Holanda), e entre o carinho da mãe e os abusos animalescos do padrasto, ela prefere fugir de caminhão em direção ao Recife. Essa primeira parte tem um tom rústico marcado por um almoço de tatú que irá contrastar fortemente com o que veremos depois, introduzindo ainda uma sub-trama não muito bem desenvolvida sobre tráfico de animais silvestres que cheira a uma metáfora de obviedade questionável sobre o destino da própria Jéssica.

No Recife, Jéssica entra para a prostituição e passa a morar no edifício Holiday com duas outras garotas, e que interessante é poder ver o Recife do presente filmado em tela larga, muito embora Caldas prefira as internas e os closes dos seus personagens. Para quem não conhece a forma peculiar do Holiday, o edifício (anos 50) é alto e curvo, primo do Copan em São Paulo, e seu desenho, mais uma vez, sugere a curva que a vida da garota passa a tomar.

Uma das meninas chama-se Pâmela (Hermila Guedes), que ameaça roubar não apenas as afeições maternas de Jéssica, mas o filme como um todo. A questão é que o papel de Guedes tem o que falar, enquanto Jéssica permanece misteriosamente calada, fator que torna-se ainda mais frustrante ao sermos apresentados a Mark (Peter Ketnath), um turista alemão boa pinta que passa a ter a sertaneja como acompanhante turística, um tipo igualmente silencioso.

Inicialmente, a relação entre ambos sugere mimetizar a nossa própria observação (nas ruas da zona sul do Recife e hall do aeroporto) das movimentações do chamado turismo sexual, onde predomina a imagem de um homem estrangeiro mais velho e sua acompanhante nativa, os dois de mãos dadas e nenhuma palavra entre o casal.

No entanto, a relação entre Jéssica e Mark parece maior do que isso, talvez exista amor ali, a julgar pela ida dela à Alemanha, onde é exposta a um outro planeta tanto no sentido climático como cultural, algo que não parece muito bem explorado dada a riqueza da premissa. O segmento de Berlim é marcado por um tédio existencial que chega intacto ao espectador, e por uma outra cena simbólica onde Jéssica alimenta animais presos.

Essa apatia dramática do filme poderá dar ao espectador a impressão de que Jéssica e Mark estão trancados num filme de arte sobre mais uma relação marcada pela incomunicabilidade, algo que faz parceria com a fotografia bizarramente azul (mesmo no sol quente do sertão) e por uma câmera equipada com lentes de fundo de garrafa que parecem mais distração do que composição.

Se dramaticamente Deserto Feliz resulta numa experiência fria e árida (talvez seja a estranha intenção), o filme, de qualquer maneira, revela-se o trabalho de um autor que está à procura de um cinema verdadeiro, que nos fale sobre o mundo que enxergamos ao nosso redor. Como lupa para esse mundo, Caldas nos dá uma peça para que possamos construir esse olhar aberto, e no atual panorama de cinema do Brasil, Deserto Feliz tem relevância evidente.

Filme revisto no Palácio 1, Festival do Rio 2007 (visto originalmente no International, Berlim)

Queime Depois de Ler



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Relatos dos que já tinham visto Queime Depois de Ler (Burn After Reading, EUA, 2008) apontavam para uma comédia hilariante dos Irmãos Coen, cineastas da independência comprovada no fazer cinema e que chegaram esse ano ao Oscar (com Onde os Fracos Não Têm Vez) nos termos deles, e não nos da indústria. Veteranos de um lote notável de filmes incomuns com raros sucessos comerciais e nenhum blockbuster, os Coen são admirados por muitos pelo estilo constante e peculiar senso de humor. Curiosamente, esse novo filme nos pareceu bem triste, crônica amarga sobre um grupo de pessoas perdidas e desesperadas.

O filme levanta questão curiosa para a cinefilia, ou o ato de ir ao cinema ver um filme. O que é engraçado? Os filmes de terror REC e Os Estranhos dão medo? Para uns, Queime Depois de Ler passa como engraçadíssimo, e REC e Os Estranhos como ridículos, que não assustam ninguém. Enfim, cada um com o seu cinema.

Nesse filme, feito com a carpintaria usual dos Coens (bem filmado, editado, sonorizado), astros como George Clooney e Brad Pitt engatam o formato palhaço, algo que talvez leve alguns a achar tudo muito engraçado. Eles são parte de uma engrenagem típica dos irmãos, que é filmar gente burra, que talvez seja o oposto geométrico deles mesmos. O próprio slogan do filme, "a inteligência é relativa", dá a deixa e logo o filme nos coloca dentro de um mundo institucionalizado da inteligência (a CIA, em Washington) e também, por outro lado, de pessoas comuns.

O mundo da capital federal (o mesmo ocorre em Brasília) ganha interessante contorno, um lugar onde todo mundo trabalha em algum gabinete ou ministério, cada trabalho mais desestimulante do que o outro, a hierarquia dos que estão lá em cima e dos que estão por baixo, e a atmosfera de mistério e investigação sobra para dois funcionários de uma academia de ginástica, Chad (Pitt) e Linda (Francês McDormand). Chad bebe Gatorade e está sempre se balançando com um iPod, homem de limitado vocabulário que as legendas não conseguem expressar. Linda quer fazer quatro intervenções cirúrgicas para turbinar o seu corpo, certa de que, alterada, irá encontrar um homem.

O filme, na verdade, começa com a demissão de um funcionário responsável pela pasta política das Balcãs, na CIA, Osbourne Cox (John Malkovich), que repassa a sua desgraça profissional para a esposa (Tilda Swinton, redefinindo o termo "mulher fria") como tendo "pedido demissão". Ele parte para escrever uma autobiografia bombástica, cujos manuscritos vão parar no chão da academia, e que Chad e Linda interpretam como segredos de estado que devem valer algum dinheiro.

O filme segue a mesma arquitetura de pensamento de um dos melhores filmes dos Coens (e espetacularmente engraçado), O Grande Lebowski (1998). O problema é que aquele filme tinha a lógica (muito bem fundamentada) da maconha, e os pensamentos e conclusões fraturadas faziam total sentido. Em Queime Depois de Ler, o espectador precisa ter a paciência de aceitar os desdobramentos como parte de como a vida transforma cada um numa pequena peça de um grande tabuleiro de poderes, medos e incertezas.

Uma rápida (e sangrenta) explosão de violência é o maior exemplo disso, o que talvez leve o filme a um caminho sinistro que, de engraçado, há muito pouco ou mesmo nada. Até os casos extra-conjugais do personagem de Clooney ganham um aspecto deprimente de rotina, mesma rotina que ele parece estar querendo fugir no casamento.

Curioso Queime Depois de Ler certamente é, os Coen seriam incapazes de fazer algo desinteressante, mas há algo na estranha mistura que deixa um gosto ruim na boca. Repetem o toque narrativo do filme anterior ao verbalizar conclusões que, em qualquer outro filme, seria filmada de maneira aplicada, embora o resultado seja, dias depois, mais próximo do 'esqueça depois de ver'.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Novembro 2008