Thursday, July 10, 2008

Falsa Loura


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Carlos Reichenbach me disse uma vez que foi através de um crítico, João Carlos Rodrigues, que percebeu uma alternância curiosa na abordagem de homens e mulheres em cada filme seu. Isso marcou sua fase nos anos 70 e 80, com obras como Corrida em Busca do Amor (macho, 1972), Lilian M. (fêmea, 1974), Filme Demência (macho, 1986), Anjos do Arrabalde (fêmea, 1987). Curioso que, dos anos 90 para cá, depois de um último retrato masculino (Alma Corsária, 1993), Reichenbach tenha se interessado apenas por mulheres. E esse é o caso de Falsa Loura (2007), seu último filme de uma seqüência de três outras obras recentes de enfoque feminino – Dois Córregos (1999), Garotas do ABC (2003) e Bens Confiscados (2005).

Aqui de longe, e num arroubo analítico de psicologia vulgar, me parece que esse autor, já na sua fase madura, busca nas mulheres um abrigo compreensível para o seu cinema, talvez para a sua vida. Isso remete a uma carinhosa acusação que teria sido feita à sua pessoa no Festival de Roterdã '87, onde apresentou Anjos do Arrabalde, afiado drama da periferia de São Paulo sobre professoras primárias: "Reichenbach é um heterossexual de alma feminina".

Em Falsa Loura, o universo da periferia ganha mais peças importantes dentro de uma obra muito pessoal e generosa para com essa geografia social. Sua personagem chama-se Silmara (Rosanne Mulholland), uma de muitas operárias numa fábrica de plásticos, extensão das Garotas do ABC e mais uma vez filmadas em elegantes movimentos laterais de câmera.

Sem cinismo algum, há algo de puramente cinematográfico na movimentação de Mulholland no filme, provavelmente associada à sua presença feminina que emite sinais constantes de sexualidade confiante.

Dotado do que me pareceu uma respeitosa tara pela sua Silmara, Reichenbach filma Mulholland como uma heroína do cinema clássico italiano, onde os sentimentos dela aos poucos revelam-se o ouro do filme, e não tanto alguma verdade social do ambiente realista ali representado.

Mostrada inicialmente como algo de predadora e líder de um pequeno secto de seguidoras na fábrica (que inclui até a chefe), elas a vêem como um dínamo capaz de dar estilo a quem não tem e pegar qualquer homem que as outras adorariam deglutir.

Falsa Loura, no entanto, vai desenvolvendo o título em si, a revelação do que existe por trás de uma imagem feminina projetada, e essa imagem, inevitavelmente, passará pela interpretação vulgar do papel sexual que alguém como Silmara supostamente deveria representar. De menina linda à idéia de prostituição, ou de virar um sonho erótico real, Mulholland entrega-se totalmente à corrida de obstáculos melodramáticos e masculinos que Reichenbach cria para ela em direção ao final.

O estilo totalmente realista de Mulholland parece triturar boa parte dos seus coadjuvantes, que passam a sensação de estarem tentando atuar num outro filme inferior (as cenas com o pai, via ator João Bourbonnais são as mais tensas, no mau sentido).

Ela também sai ilesa de um segmento curioso pelo tratamento dado de revista barata (e particularmente triste, no bom sentido) com Mauricio Mattar, rumo a um final que poderá ficar com o espectador como o belo ponto final para um retrato feminino que tira grande delicadeza da grosseria que compõe a existência da mulher.

Filme finalmente visto no Cine Rosa e Silva, Recife, Junho 2008

'My Blueberry' Bombom

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

É simbólico que Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights, Hong Kong/China/França, 2007), o mais recente exemplar da obra do cineasta Wong Kar Wai, esteja sendo lançado em multiplex no Recife, exibido diariamente em diferentes sessões, como um filme de gente normal. Toda a obra anterior de Kar Wai, composta por filmes como Felizes Juntos, Amor à Flor da Pele e 2046 era falada em cantonês com atores chineses, filmada em Hong Kong, e encontrava espaço invariavelmente nos estranhos cinemas alternativos, ou nas esquisitas "sessões de arte". Esse último é falado em inglês, tem atores hollywoodianos e foi filmado nos EUA. Para quem acompanha o cineasta, esse cine-bombom passa como uma remixagem dele mesmo para ser visto por mais gente, um projeto comercial bem sucedido.

Um Beijo Roubado foi o filme de abertura de Cannes 2007, e para o festival que recebeu seus filmes anteriores acima citados, esse aqui foi visto com frieza. Isso sugere duas possíveis maneiras de olhar essa história de amor narrada em cores cuidadosamente coordenadas, lideradas pelo azul dor de cotovelo.

Uma, para quem já o conhecia, é a de que Kar Wai virou uma imitação dele mesmo, sem saber diferenciar uma publicidade de TV de alta definição (ele fez para a Sony) de uma vitrine chic de shopping, ou de um filme novo. A outra, para os novatos, é descobrir com prazer esse cineasta que filma elegantemente gente bonita num tipo de cinema romântico que vem sendo tão vulgarizado por mãos menos capazes.

Em Um Beijo Roubado, a heroína chama-se Elizabeth (a cantora Norah Jones, capaz), que acaba de ter seu coração partido. Ela vai buscar consolo na central universal dos que têm os corações partidos: um bar. Ajuda o fato de o barman ser Jude Law, que também, aliás, teve seu coração recentemente partido, por uma russa. Um detalhe tipicamente Kar Wai é o simbólico estacionamento de chaves de casa que ele mantém no balcão, um cemitério de amores desfeitos.

Elizabeth decide partir numa viagem por dentro dela mesma através dos EUA, e suspeitamos que o verdadeiro beneficiário dessa viagem é o próprio Kar Wai, aqui na sua primeira produção "americana". Segue o roteiro básico do cine-turista estrangeiro pelas paisagens U.S.A, de Nova York a Memphis, de Las Vegas a Los Angeles.

No caminho, Elizabeth encontra duas histórias de amor, para as quais ela age como anjo da guarda, agregando experiência emocional para si mesma. Na primeira, um policial (David Strathairn, roubando o filme com discreta intensidade) enche a cara num bar para tentar superar a dor de ser deixado pela esposa (Rachel Weisz). Na segunda, ela conhece uma jogadora compulsiva (Natalie Portman) que também terá de lidar com outra perda, em Las Vegas.

É tudo muito chic, às vezes parece um suntuoso teste de daltonia, às vezes um entretenimento comercial realmente incomum, feito por um olhar estrangeiro. Onde mais você verá personagens adultos bebendo e fumando em bares da vida no cinema comercial do século 21, se não numa produção franco-chinesa filmada nos Estados Unidos?

Kar Wai, que construiu esse filme a partir de um maravilhoso curta que ele fez intitulado In the Mood For Love 2001 (corações partidos e beijos com tortas e chantilly já estão todos lá) desdobra-se usando seu toque autoral num produto claramente feito para exportação. Mas, funciona.

Filme visto na Sala Debussy, Cannes, Maio 2007

Kung Fu Panda (um PC)



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Semana passada estreou Wall-e, a animação da Pixar que é uma feliz experimentação sobre um robozinho solitário. Hoje, de olho no mercado das férias brasileiras de inverno, a estréia nacional (mundial, aliás) é Kung Fu Panda (EUA, 2008), animação digital com ênfase na 'ação' sobre urso sedentário que sonha em tornar-se herói das artes marciais. Se fossem computadores, Wall-e seria um Mac e Kung Fu Panda um PC, mas pelo menos um que faz o serviço bem e sem travar.

Com Wall-e, havia alguma dúvida se o estilo tranqüilo e visual do filme manteria a atenção das crianças. Como criança não é boba, há relatos de conhecidos de que Wall-e tem encantado os pequenos, e essa dúvida inexiste em relação a Kung Fu Panda, uma super movimentada sessão de videogame com personagens engraçados e ação visualmente estapafúrdia. É para ver, divertir-se e esquecer.

O filme da Dreamworks Animation, vice já há dez anos no mundo da animação digital, sempre atrás criativamente da Pixar, é aquela coisa de programa perfeito para as crianças, que, em grande parte, não vão dormir. Teve o tratamento tapete vermelho no último Festival de Cannes, onde passou fora de competição com a presença dos atores que dão suas vozes aos personagens, Jack Black, Angelina Jolie e Dustin Hoffman. No Brasil, por causa das cópias dubladas, eles não estão no filme, e os distribuidores tentam destacar os trabalhos de dois astros televisivos nacionais, de longe sem o mesmo efeito: Difícil imaginar alguém pulando de alegria para ouvir Lúcio Mauro Filho e não ver (categoricamente) Juliana Paes, embora sua dublê animada seja gatosa.

Kung Fu Panda explora o universo oriental cinematográfico das artes marciais com personagem titular fofinho de grande identificação. Esse panda chama-se Po, construído como aquele cara legal um pouco obeso que ainda mora com a família, dona de um restaurante de macarrão chinês. Ele é fã de cultura pop (da antiga China), e lá estão referências à comida, fogos de artifício, Bruce Lee, num universo re-popularizado recentemente no ocidente por O Tigre e o Dragão, de Ang Lee, e Kill Bill, de Quentin Tarantino.

Investindo no conceito de "o escolhido", Po é apontado por uma antiga profecia como sendo predestinado a ser um mestre das artes marciais, escolha que choca toda a comunidade. Como pode um urso sem fôlego virar lenda e salvador do Vale da Paz? A escolha inesperada de Po também decepciona os lendários 5 Furiosos, talvez a mais engraçada criação do filme.

São cinco animais, alguns claramente raquíticos geneticamente, todos treinados por Shifu, clássico mestre no estilo Pei-Mei, do filme de Tarantino. Foi ele quem preparou uma tigresa bem 'gata' (Paes), um macaco, uma víbora, uma cegonha e um louva-Deus bem macho. A escolha dessas espécies reflete a própria escolha incomum de Po, e cada um deles revela-se uma máquina de sopapos quando o negócio aperta.

O vilão da história é um outro discípulo de Shifu, um tigre da neve chamado Tai Lung, um cabra tão mal humorado pelo seu treinamento inclemente que virou uma ameaça à sociedade, isolado numa prisão de segurança máxima só para ele, e que quer voltar para vingar-se da comunidade de Po.

Esse tipo de produto é feito por gente profissional que não dá ponto sem nó, explorando o universo infantil contemporâneo como quem segue os resultados de uma pesquisa de mercado. A movimentação dos 5 Furiosos tem muito de Matrix e de videogames como Tekken. A fuga de Tai Lung da prisão é uma partida de videogame já pronta para ser comercializada, e que também demonstra o grau de dificuldade que Po terá no sentido de defender sua comunidade.

A mensagem final de Kung Fu Panda também chega como um alívio para crianças e adultos sedentários. Parece que a conclusão é "basta você ser seu próprio herói com a ajuda dos seus amigos, e tudo dará certo". Que bom.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, Julho 2008