
Kleber Mendonça Filho
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A partir da projeção de um filme, questões surgem que revelam tensões inerentes à sociedade brasileira, em relação à luta pela terra. Na sessão de pré-estréia terça à noite do documentário O Tempo e o Lugar (Brasil, 2008), filme de Eduardo Escorel sobre o agricultor alagoano Genivaldo da Silva, o clima ficou tenso depois da exibição no Cinema da Fundação (Recife). Escorel, um dos nomes mais importantes da cinematografia brasileira (foi montador de Glauber Rocha em Terra em Transe, de Eduardo Coutinho em Cabra Marcado Para Morrer e, recentemente, de João Moreira Salles em Santiago), fez um filme com o único ponto de vista do seu personagem.
Genivaldo da Silva veio especialmente ao Recife para acompanhar a projeção do filme, que o registrou em diferentes momentos ao longo de um período de nove anos – em 1996, 2005 e 2007. O contato inicial de Escorel com Genivaldo veio de um episódio do notório especial televisivo dos anos 90, Gente Que Faz, levado ao ar semanalmente aos sábados da era FHC, na Globo. Dirigido por Escorel - que incluiu o episódio embriagadamente otimista em tom nos primeiros minutos do seu filme -, O Tempo e o Lugar parece partir para uma desconstrução do aspecto alegremente publicitário daquela peça, ao longo de cerca de 100 minutos. Lembra a revisão de Salles sobre uma primeira tentativa de fazer um filme em Santiago.
Esse personagem rende um filme pelo fato de ter passado por algumas encarnações políticas e partidárias ao longo da sua trajetória, e isso pode tanto ser visto com maus olhos como por uma representação de reinvenção num mundo instável.
Foi integrante do MST, e diz no filme ter recebido treinamento de integrantes do Sendero Luminoso, movimento revolucionário peruano de ordem maoísta, informação contestada ao final da sessão por ex-companheiros de Genivaldo. Segundo Genivaldo, o treinamento os prepararia para enfrentar a policia e seguranças de fazendeiros.
Fora do MST, entrou para a Pastoral da Terra (Igreja Católica), onde também passou a discordar da postura reinante. Depois, militou pelo PT, apoiando a luta de Lula, e chegou a ser candidato a prefeito, sendo expulso do partido. Crítico de Lula, o presidente, ("Fome Zero e Bolsas Família não mudam nada politicamente"), Genivaldo hoje atua de forma independente, estimulando famílias a trabalhar suas terras, ele mesmo o dono de uma propriedade em Inhapi, no sertão de Alagoas.
"Cada vez mais, me parece, que o documentário marca o encontro entre o personagem e quem o filma. Se eu não contesto as coisas que ele diz, isso significa implicitamente que eu endosso o que ele me conta ao entender que aquela é a narrativa dele. Ele pode ser vítima da sua própria memória seletiva como todos nós, e não vejo nisso um problema", disse Escorel no debate, respondendo a um questionamento da platéia sobre o senso de responsabilidade que documentários deveriam ter.
"Vivemos uma época onde sempre esperou-se muito do documentário como capaz de responder às grandes questões, ou de persuadir politicamente ao defender uma causa. Não é o tipo de filme que eu tenho tentado fazer. Me interessa mais conhecer e entender meu personagem nas suas dificuldades e contradições."
Um membro da platéia lembrou que "não trata-se de um filme sobre um avô brincando com os netos, mas sobre um personagem de luta que participou de um movimento de luta e há repercussões que vão além da figura dele". Respondendo, Escorel disse preferir fazer um filme que dialogue com o espectador ao invés de entregar tudo pronto num painel 'completo'.
O estilo de Escorel no filme não parece casar bem com olhares apaixonados demais por uma causa que é historicamente delicada no Brasil. Apreciar o filme sem que o pulso acelere parece exigir uma distância razoável do assunto, seguida de um olhar generoso para com os desdobramentos atuais do cinema de documentário.
Jairo Amorim, coordenador estadual do MST, presente na sessão, tomou a palavra: "Não sei se fiquei feliz ou triste, pois vim para assistir e terminei virando personagem no filme. Creio que faltou contextualizar a história e o porquê de Genivaldo ter saído do movimento. Por mais que tenhas tentado ser imparcial, não conseguiu, pois um filme fica para a história. Soa como uma verdade que engole os motivos", disse.
No seu momento mais duro, Amorim virou-se para Genivaldo da Silva e, depois de parabenizá-lo, de qualquer forma, "peço cuidado para que esse filme não faça latifundiário bater palma para você, para a grande mídia não criminalizar ainda mais nosso trabalho". Genivaldo preferiu não comentar.
O que aconteceu na sessão de terça foi um embate entre um certo sentido moderno de cinema e paixões políticas humanas e tradicionais. Longe de um "sentido jornalístico" de reportagem televisiva onde diferentes lados são ouvidos para formar mensagem equilibrada do todo, O Tempo e o Lugar alinha-se com desdobramentos muito discutidos atualmente no gênero documentário, que assume cada vez mais a aura de obras pessoais onde antigas concepções são descartadas.
O próprio Santiago, essencialmente um filme sobre o seu realizador, e não sobre o personagem título (outro motivo de acirradas discussões), Jogo de Cena, onde a verdade existe no emotivo, e não nos fatos relatados, mesmo caso de dois filmes extraordinários exibidos em Cannes semana passada, o israelense Valsa com Bashir, de Ari Folman, (uma animação...) e o chinês 24 City, de Jia Zhang Ke, curioso companheiro de filosofia de Jogo de Cena, preocupam-se muito mais com versões do que com fatos.
O que fica para o espectador é a pergunta: causa tão explosiva sustenta-se em tratamento tão livre de julgamentos?