Friday, January 23, 2009

A Duquesa



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma semana antes da estréia do pernambucano Deserto Feliz, de Paulo Caldas, entra em cartaz um outro relato sobre as agruras vividas por uma mulher, em conflitos que revelam algumas coisas sobre a condição feminina na sociedade. Em A Duquesa (The Duchess, Inglaterra, 2008), que se passa na Inglaterra, na época da Revolução Francesa, uma adolescente – a duquesa de Spencer – casa-se com um outro aristocrata que vê nela única e exclusivamente um útero capaz de gerar um herdeiro. Se o filme é de uma mediocridade paralisante, espectadores poderão ver sua atenção mantida com os desdobramentos de uma vida amorosa animada, adaptada de personagem real, cheia de frustração, dor de cotovelo, paixão e chifre.

Essa estrela de proveta, Keira Knightley (Piratas do Caribe), interpreta a ancestral de Lady Di (que também era Spencer), o nobre útero já citado. O Duque de Devonshire (Ralph Fiennes) é um aristocrata de olhar vago, sempre frio, o marido dela. Sem muita conversa para a coisinha feminina que é a sua esposa, e sempre cobrando um menino (inicialmente, ela lhe dá duas meninas), a duquesa tenta equilibrar o ar de cafetina da mãe (Charlotte Rampling) com a sua solidão palacial frente ao abandono proposto pelo marido, algo que lembra a biografia conhecida da moderna Lady Di.

Seu espírito livre e língua afiada transformam-na numa das mulheres mais populares do Reino Unido, sua solidão aos poucos aplacada pela amizade de uma outra nobre solitária, Bess (Hayley Atwell), foragida do próprio casamento e que irá ensinar a Spencer que o sexo não existe apenas para gerar rebentos, mas também como fonte de prazer, conceito que nossa heroína apenas desconfiava existir. Earl Charles Grey (que tornou-se primeiro ministro britânico), sua paquera dos tempos da adolescência, seu envolvimento extra-conjugal.

Os envolvimentos passionais e sexuais são pratos cheios para um filme interessante, mas o tratamento aqui aplicado é de uma anemia profunda, especialmente para os espectadores que tiverem a péssima idéia de ficar lembrando saudosos de Barry Lyndon (1975), de Stanley Kubrick. Aquele filme, claro, parece ter sido filmado no século 18 não apenas visualmente, mas também nas observações cristalinas e reveladoras da vida naquele tempo.

Em A Duquesa, que, de qualquer forma, é melhor do que A Outra (The Other Boleyn Girl), exibido há alguns meses, temos esse tratamento diluído para adolescentes que numa história tão passional nos concede apenas um rápido bumbum anônimo passando ali, e onde a sexualidade ganha não mais do que 60 segundos de sugestão apavorada, para ninguém na platéia correr o perigo de se enojar com algumas verdades sobre a natureza humana.

Knightley parece esticada até quebrar, enquanto Fiennes mostra-se sempre interessante como o totalmente desinteressante duque, o roteiro garantindo que até os créditos finais ele irá se transformar num homem melhor. Drama de época comercial sem grandes conquistas.

Filme visto no Multiplex UCI Recife, Outubro 2008

'RocknRolla', VRUUUMMM, VRUUUMMMM...



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O mais novo filme do cineasta inglês Guy Ritchie (Snatch) tem sido considerado melhor do que o que vinha fazendo antes, e o filme chama-se RocknRolla (2008). Como realizador, Ritchie parece ter 10 anos de idade, a julgar pelos seus filmes dá quase para imaginá-lo fazendo "VrummmmMMMM", "VrummmmMMMM" com a boca enquanto dirige uma cena. Sua preferência pessoal, e o que tem lhe garantido algum sucesso em pequena escala na indústria, é o pastiche do filme de gangster com ambientação londrina. É também adepto de, em alguma cena, e sempre do nada, usar aquele FF brega que apressa a imagem em soluços nervosos que assola os trailers da indústria já há dez anos. Só que ele faz isso no próprio filme.

Mais uma vez, temos um grupo de bandidos supostamente simpáticos e uma trama tão complicada que depois de um tempo o espectador apenas assiste na esperança de que tudo dê certo. Os homens que deverão nos despertar simpatia são One Two (Gerald Butler), Mumbles (Idris Elba) e Handsome Bob (Tom Hardy), que vêem a possibilidade de ganhar dinheiro roubando um bilionário russo que está de olho num grande empreendimento imobiliário. O peixe grande londrino, administrador de corrupção no sistema (Tom Wilkinson), é o atravessador que também termina lesado pelo esquema do trio, e todos se metem numa incrível confusão.

O filme explora a atmosfera de dinheiro que marca Londres no século 21 (pré crise financeira mundial, aliás), com um mercado imobiliário super aquecido que oferece grandes oportunidades para quem tem o dinheiro, e outras ainda maiores para quem não tem. Usando isso como fundo, Ritchie faz suas mungangas com a câmera, com seu roteiro e com uma montagem desembestada que faz de tudo uma corrida maluca não se sabe bem para aonde.

Um outro personagem é tratado com especial carinho por Richie, o do astro pop viciado em crack, Johnny Quid, um agente do caos, talvez a criatura mais interessante de todo o filme ao lado dos dois capangas russos, prováveis criminosos de guerra (Chechênia?) que, mesmo aparecendo como meros objetos de cena, passam sensação desagradável de terror como ameaças indestrutíveis não muito distantes do primeiro Terminator (1984). Tandie Newton, como contadora do russo, aparece como brinde-mulher.

Menção horrorosa especial vai para Butler, o poste de 300, em talvez a pior atuação de um ator principal num filme que se tem notícia. Pouco à vontade em todas as cenas, ele parece estar tentando agradar não sei bem quem, com momentos particularmente constrangedores como numa cena forçada onde satisfaz os desejos homo-eróticos de um grande amigo. Não obstante o quadro aqui apresentado, não é possível negar que essa besteira seja incapaz de entreter minimamente.

Filme visto na Sala 7 THX do Box Guararapes, novembro 2008

Guel Arraes Sobre 'Romance'



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

10/11/2008

"Uma das coisas boas de lançar um filme é poder já estar pensando no próximo", disse ontem, durante um almoço, no Pina, o cineasta pernambucano Guel Arraes. No Recife para apresentar seu último filme, Romance, Arraes confidenciou que o sistema de já ter um novo projeto encaminhado funciona bem para sustentar o tranco de colocar um filme novo no mundo, com as tensões inerentes ao processo (receptividade do público, da crítica).

Seu próximo projeto será uma atualização de O Bem Amado, de Dias Gomes, com Marco Nanini no papel principal que foi, de certa forma, imortalizado na cultura brasileira por Paulo Gracindo na Globo dos anos 70. "A pré-produção já está a pleno vapor, estamos procurando locações e devemos filmar no final de janeiro".

Ele mostrou-se pouco entusiasmado com a possibilidade de fazer cinema popular sem povo, e com as carreiras possíveis que filmes são capazes de ter atualmente no Brasil. Ele acredita que o novo projeto faça o duplo salas de cinema/depois mini-série na Globo, estrutura invertida se lembrarmos que Auto da Compadecida (2000), seu primeiro longa metragem, passou primeiro na TV.

Com uma obra marcada pelo tom híbrido da sua linguagem – "dirigi três peças, mas, na verdade, eram mais TV do que teatro como texto", Arraes chega a Romance com um filme onde o número de cortes é menor do que os seus anteriores, e com a suspeita de que talvez seja um filme "mais fechado" do que Auto ou Lisbela e o Prisioneiro (2003) que, juntos, venderam mais de quatro milhões de ingressos. O filme será lançado nacionalmente amanhã, com cerca de 90 cópias, número médio/grande.

"Essa questão da linguagem sempre me chama a atenção. Saí do Recife em 1969 e em Paris eu tinha um gosto muito alternativo para cinema, inclusive evitando ver filme americano, me apaixonando por Jules e Jim e freqüentando a Cinemateca Francesa de Henri Langlois. "Quando voltei para o Brasil, fui trabalhar direto na Globo, e de repente me vi questionando aqueles preconceitos anteriores meus."

Arraes também parece fazer uma auto-reflexão sobre um dos seus personagens em Romance, o do chefão televisivo de José Wilker. "Vejo nele muita coisa de Daniel Filho e do Boni, mas também de mim mesmo como produtor.

Ele vê o amor como o motor do seu filme novo, baseado em dois pontos: "a música de Caetano Veloso e Jules e Jim, de Truffaut. São obras que discutem o amor contemporâneo que marcaram minha vida. Outra coisa é trabalhar com grupos de teatro que sempre me pareceu muito doce e nostálgico, que talvez remeta aos anos 70, meus anos de formação".

Sobre Tristão e Isolda, Arraes definiu seu interesse pela obra como "técnica". "para fazer uma história de amor sobre o amor, pensamos originalmente em Dom Quixote e Dulcinéia. O amor como ser intransferível, inexprimível, é um bom tema para ficcionalizar".

Dentro da idéia de criar uma ficção com tons sempre alegóricos, perguntamos a Arraes o porquê de seu trabalho tentar evitar a realidade imediata, algo que Romance já revela um pouco mais. "Interessante você levantar isso, pois minha formação é de documentarista, mas na ficção me preocupo muito com o controle sobre as coisas. A estação de metrô que está em construção no filme não está ali por acaso, mas por fazer parte da história. Talvez seja algo que vem do teatro!"

REC


"It's a Sony!"

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Sabendo do ouro que tinham em mãos, os produtores do divertido trem fantasma espanhol REC (2007) soltaram uma publicidade no YouTube, onde uma câmera registrava as reações físicas de uma platéia durante sessão do filme. Muito engraçado ver um grupo de pessoas tranqüilas e, em um segundo, dando pulos histéricos, mãos instintivamente usadas como plano de defesa, entes queridos se agarrando em posição de socorro. O filme é bem bacana, as imagens publicitárias devem ser reais, como um curto documentário de observação.

Curiosamente, a linguagem aqui é, mais uma vez, "documental", câmera ofegante, sempre ligada. Grande sucesso na Espanha e na comunidade de cinema do gênero 'fantastique', REC chega um mês antes da sua refilmagem americana, Quarentena, que já está pronta e lançada nos EUA. Vai ser curioso ver a reação do público pagante desavisado que for desembolsar R$16 para ver a refilmagem de uma obra que talvez ainda esteja em cartaz. Mostra a voracidade da indústria e como em mercados periféricos como o brasileiro, produtos europeus podem (raramente) concorrer com a máquina hollywoodiana nos multiplex, algo que não ocorre nos EUA.

O REC espanhol, feito em vídeo pelo que parece ter custado dois mil reais (perfeitamente empregados, aliás) é um primor de simplicidade eficaz, algo que os americanos imediatamente pagaram para refilmar. Vale ponderar que REC (ou Quarentena, seu remake) são crias de toda uma leva recente de vídeo-terror (Bruxa de Blair, Cloverfield, Diário dos Mortos), e que talvez tenham como raiz o clássico Canibal Holocausto (1980), feito 20 anos antes da explosão de imagens digitais.

A repetição do conceito apenas prova que não importa quantas vezes você ouve a mesma piada, o que vale talvez seja o movimento e o medo do escuro (pelo menos para este observador...). Esse conceito, de fato, parece pedir um pouco de generosidade do espectador. O filme utiliza uma câmera como dispositivo do próprio filme, e exige que um dos personagens não largue a mesma nunca, não importa o quão grotescas as coisas fiquem. Se é para correr da morte certa, corra dando um .REC.

A situação aqui é a seguinte: uma simpática repórter de programa de final de noite ("Enquanto Você Dorme" é o nome do programa, piscadela de olho em direção aos nossos adorados pesadelos filmados) irá acompanhar a madrugada no corpo de bombeiros, em Barcelona, mostrando o que fazem e como dormem. Felizmente, chega uma chamada e lá vai ela com o seu câmera ver o que se passa num edifício residencial. Ali, uma senhora idosa parece ter enlouquecido.

O filme apresenta tudo isso com muita clareza, e logo o espectador estará no prédio, tão atônito quanto os policiais, bombeiros e vizinhos, pois entendemos que a velha virou zumbi.

Curiosamente, o fato de nossa repórter estar acompanhando bombeiros nos lembrou a participação dos documentaristas franceses Gédéon e Jules Naudet, que também acompanhavam bombeiros no 11 de setembro de 2001, quando registraram o primeiro avião entrar na primeira torre. Os diretores Jaume Balagueró
Paco Plaza também parecem fazer menção especial a um outro filme espanhol de anos recentes, A Comunidade, de Alex de la Iglesias.

Começa, portanto, mais um filme de zumbi, e por mais que já tenhamos visto essas criaturas que babam, grunhem e mordem, não há como negar o apelo das mesmas. As regras são simples, fique longe deles e, se for mordido, vai virar zumbi, uma morte sebosa de sangue e insanidade. E, claro, o filme contém pelo menos dois pulos de cadeira que merecem a gritaria vista na publicidade viral divulgada e medalha de honra ao mérito. Lembram que o bom cinema é feito de ponto de vista, luz e sombras bem orquestrados.

Filme visto no Espaço Unibanco 2, Festival do Rio, setembro 2008.

Orquestra dos Meninos



Na foto debaixo, o verdeiro Mozart (direira), Paulo Thiago e o ator Murilo Rosa (Mozart no filme)

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O cineasta mineiro (radicado no Rio) Paulo Thiago tem uma filmografia claramente interessada em histórias brasileiras. Filmou em Pernambuco uma espécie de épico histórico chamado Batalha dos Guararapes (1977), mostrou um caminhoneiro pelas estradas do Brasil em Jorge Um Brasileiro (1988) e investigou a alma do que se chama o tupiniquim em Policarpo Quaresma – Herói do Brasil (1998), onde seu herói queria o tupi-guarani como nossa língua oficial. Seu novo filme, A Orquestra dos Meninos (2008), segue o curso com mais um relato brasileiro, inclusive de uma história real: o nefasto sistema de intrigas pessoais e políticas que tentou derrubar o trabalho de música e cultura orquestrado por um professor no agreste pernambucano.

A história de Mozart Neves, natural de Belo Jardim, é material farto para um filme, e não é difícil associar essa história pronta a Thiago e sua adesão irrestrita às convenções de uma narrativa popular/popularesca. Temos o herói contra todos e injustiçado, investindo no árido terreno da falta de cultura e de educação como alvo incansável desse trabalho (visto como alienígena, como não poderia deixar de ser num mar de pobreza).

Purificador e esclarecedor, os beneficiários são a sociedade como um todo, e mais diretamente um grupo de crianças que, de outra maneira, nunca teriam acesso à música e a novas oportunidades. Entre o final dos anos 70 e os anos 90, Neves, músico e professor, formou a Orquestra Sinfônica do Agreste, utilizando menores que estariam normalmente pegando em enxadas, e não em tubas e oboés.

Se o projeto é exemplar do ponto de vista de como alguém põe em prática sua paixão e claro amor à arte, é também o tipo de pauta que a imprensa adora, até mesmo por trabalhar com arquétipos arcaicos da representação de uma cultura – leia-se "crianças sertanejas tocando musica clássica, que inusitado...". A televisão vive desse tipo de realismo fantástico com base no político e no social, e a Rede Globo fez uma matéria especial memorável que 'vendeu' a história para todo o país com aquele ar de encantamento global tão conhecido.

Para encurtar a história, com o projeto na Globo e a Orquestra sendo recebida pelo então presidente da República Itamar Franco, tudo os levou também a uma turbulenta ciumeira política que Neves preferiu não concordar. Os desenvolvimentos incluem sugestões de pedofilia e o seqüestro de um dos garotos integrantes com uma pitada impensável de terror.

Há um mês, Paulo Thiago, Neves e o ator que o interpreta, Murilo Rosa, vieram ao Recife para divulgar o filme. Tentamos perguntar a Neves o que ficou dos eventos de 1995 e como isso bate com o filme. "Esse filme fala de uma ditadura branca, pois é o que acontece com alguém que se mete com questões sociais e vai falar a verdade. Há pré-requisitos que te perseguem como, por exemplo, a inveja. Hoje eu conheço a diferença entre o mal e o bem. Ali veio o ódio, a prepotência e a inveja, a oligarquia. Sou sério, belo jardinense, casado há 21 anos com o amor da minha vida e vi bandidos terem tratamentos mais especiais do que o que eu tive na época", nos falou.

Sobre o filme em si, A Orquestra dos Meninos nos coloca (os espectadores), numa difícil posição, que é a de ver o filme (envolvente no seu estilo rústico com tudo bem preto e tudo bem branco) e não esquecer que trata-se de uma dramatização de incidentes verídicos, algo que sentimos também no também baseado em fato Última Parada 174, de Bruno Barreto.

Paulo Thiago não parece operar muito bem com sutilezas no seu cinema, sempre pintado com pinceladas espessas de piche e cal. Isso significa que os vilões (todos os que vão contra a bela obra) agem como os vendilhões do templo numa paixão de Cristo teatral de interior, enquanto nosso herói (Rosa, constante, mas com a questão do sotaque digital tão comum nas representações do nordeste via sudestinos) corre de A para B num papel que seria, de direito, de um Gregory Peck, ou um Tarcísio Meira.

Personagens coadjuvantes de luxo (da realidade) com Cussy de Almeida e Dom Helder Câmara ganham roupas negras ou alvas como as nuvens, e há um estranho transplante da morte do crítico de música do Jornal do Commercio, Heber Fonseca (de fato um dos grandes defensores da obra de Neves) para fins narrativos do filme em si que não fazem qualquer sentido, prova do quão 'all over the place' o foco (ou falta de) de Thiago revela-se, mais uma vez.

Constata-se que Orquestra dos Meninos narra uma história, realmente, isso é o seu mérito, mas parece cego às grandes possibilidades de oferecer um panorama humano e social complexo do Brasil, país sem educação e que, em bolsões de ignorância arcaica, vê o conhecimento como algo que precisa ser destruído, e não estimulado. Trabalha com as não-sutilezas de uma reportagem de TV onde todos parecem ter sido especialmente penteados para aparecer, e onde fatos são apresentados como momentos bombásticos de uma verdade imaginada.

Filme visto no Plaza Casa Forte, Recife, Outubro 2008.

Jogos Mortais V


Cabeça achada no lixo.

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Um pouco como a Exposição de Animais no Cordeiro, os filmes da série Jogos Mortais acontecem todo ano, nessa mesma época. O que começou em 2003 com um filminho de terror histérico, mas assistível, transformou-se num transtorno obsessivo compulsivo do mercado que sugere algum programa de auditório da tortura. Arremessa um conceito que virou lixo já a partir do segundo filme, e impressiona muito que o público pipoca-zumbi dos multiplexes continue pagando para ver esse tipo de porcaria. Ontem estreou Jogos Mortais V (Saw V, 2008), que não foi mostrado para a crítica pernambucana. Fomos ver o filme com o público, na sessão de pré-estréia.

Com a graça e a espontaneidade de uma micareta, a série Jogos Mortais chama a atenção em dois quesitos. Mesmo tendo visto os quatro filmes que vieram antes, é impossível ter a mínima lembrança dos últimos três, prova do quanto decidiram ejetar trama, enredo, narrativa e insistir nos mesmos visuais monótonos de sempre.

Temos, portanto, uma série de calabouços verde-musgo com luzes piscando e instrumentos de tortura metálicos cuja simples imagem parece atrair efeitos sonoros tão constantes quanto irritantes. Habitando esse espaço, as mesmas vítimas genéricas de sempre, o que apenas reforça a idéia de filme de sacanagem sem sexo, mas onde cada momento pornográfico é construído (muito mal, aliás, a montagem é o que não há) em direção ao orgasmo da morte.

Já comentado antes, é irônico que Jogos Mortais V seja lançado na mesma semana em que o circuito local recebe Violência Gratuita (Funny Games), do austríaco Michael Haneke, estudo professoral raivoso contra o tipo de alegria débil mental que vende tortura como impulsos pisca-pisca como forma de diversão.

Filme visto no Recfe UCI, outubro 2008

'Violência Gratuita' e a 'Filme-Instalação'


A tela demoníaca...


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Num mercado de cinema onde a indústria investe em continuações e refilmagens como tentativas de garantir o certo, chega o autor austríaco Michael Haneke (A Professora de Piano, Caché) para apresentar uma leitura algo de anárquica da idéia de "remake" com o seu Funny Games, filme de 1997 que gerou choro e ranger de dentes em Cannes, no mesmo ano. Sua refilmagem Violência Gratuita (Funny Games U.S, 2007) passa como uma espécie de performance artística, uma refilmagem no sentido literal, quadro a quadro, falado em inglês e embalado para o mercado americano. A sigla U.S (EUA) que acompanha o título original soa como um irônico lembrete de como o cinema é tratado como produto "for export/para exportação".

Gus Van Sant havia tentado algo parecido com sua refilmagem/réplica de Psicose (1998), de Alfred Hitchcock, e é fácil enxergar em Van Sant o mesmo tipo de desejo pela idéia de um atentado estético e autoral que guia Haneke nesse aqui, enquanto estúdios (Universal no caso de Psicose, Warner com Funny Games) assoviavam e cogitavam lucro. Isso talvez explique a reação incrédula de espectadores, e mesmo de parte da crítica, que não vêem o sentido de imitar um original tão meticulosamente. Fica a certeza de que alguns autores não trabalham dentro de expectativas comuns.

O Funny Games original, falado em alemão, oferecia duas leituras possíveis: emocionalmente, seria um filme de suspense e terror desagradável como pouca coisa antes sentida, o próprio Haneke defensor dos espectadores que abandonam o filme no meio da sessão, xingando-o. Para ele, seria uma validação dos seus objetivos, o que apenas reforça a idéia de algo mais próximo a uma performance do que da idéia amplamente defendida de que filmes não precisam apenas existir, mas devem ser vistos, desfrutados.

Para os que sustentam o olhar até o fim, uma pequena história feroz desenrola-se na tela. Pai (Tim Roth, sua atuação com algo de familiar ao seu personagem também moribundo em Cães de Aluguel), mãe (Naomi Watts) e filho (Devon Gearhart) vêem sua casa de campo invadida calmamente por dois rapazes com roupa de tênis branca (Michael Pitt e Brady Corbet), cada um com uma luva também branca. Emissários de Haneke com liberdade de olhar para a câmera e falar com a platéia, eles irão torturar as três vítimas em jogos cada vez mais perigosos ou, nas palavras deles, "engraçados" (funny).

Exatamente como no original, temos não apenas o calvário dos personagens mas, principalmente, de quem assiste, tudo muito bem filmado, editado, dirigido e interpretado. Já a partir dos 15 minutos, instala-se na sala a sensação de que a platéia está numa prensa que aperta lentamente rumo ao insuportável, especialmente pelo rigor de nunca permitir um alivio refrescante, uma catarse, algo espetacular (e irritantemente) ilustrado na discutida cena em que um controle remoto é usado para corrigir um prazer brutal concedido ao espectador.

A outra leitura é intelectual, uma reflexão sádica de um pensador da imagem sobre o cinema comercial de horror onde a extrema violência é sempre tão sádica e explícita quanto sem sentido. Curiosamente, a outra estréia de hoje – Jogos Mortais V (Saw V) – é precisamente o tipo de coisa que Haneke ataca com seus alfinetes direcionados aos nossos olhos.

O que significa moral e fisicamente agredir alguém? Qual o peso de uma morte? Porquê no cinema tudo é tão simplificado, ao ponto de uma mutilação virar nada mais do que um efeito cênico rápido? No cinema de Haneke, o ato de violência vem sempre seguido de um silêncio atônito e sombrio, e o gosto na boca é amargo. Ele ainda esbanja cinema ao não mostrar graficamente nenhum dos atos de violência, pois sabe que o antes e o depois são ainda mais fortes.

Curiosamente, a exportação do filme para o mercado americano em caixotes com a marcação "U.S." pode ser considerada um fracasso. É fato que essa versão teve difusão maior do que o original austríaco nos cinemas americanos. Mesmo assim, o filme passou como mais um produto europeu vindo do inferno, restrito a guetos alternativos. No Brasil, Funny Games U.S está circulando no mesmo micro circuito que exibiu o original em 1998, no Recife, inclusive, no mesmo Cinema da Fundação. Isso, em grande parte, significa pregar para o que já foram convertidos, o que não deixa de ser uma pena.

Ao Entardecer



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Ao Entardecer (Evening, EUA/2007) tem todos os trejeitos do produto de "bom gosto" comercial. Medido e pesado, ao que parece, para conquistar prêmios de prestígio como o Oscar, a fotografia tem sempre um brilho dourado não importa aonde no quadro, a morte via câncer é serena e elegante e o cartaz do filme destaca orgulhosamente suas atrizes peso pesado como a razão de ser do todo. De fato, Vanessa Redgrave, Meryl Streep, Claire Danes, Glenn Close, Natacha Richardson e Toni Collette comprovam que este é um produto embalado para o mercado consumidor feminino e maduro, um antídoto para High School Musical e provável programa para anteceder um chá no final da tarde.

O esquema projetado para o Oscar não deu certo, Ao Entardecer passou em branco na última temporada da Academia, ninguém sabe o porquê. O filme do fotógrafo húngaro Lajos Koltai (atualmente cineasta) é tão mecânico quanto qualquer outro produto vencedor de estatuetas douradas, como Rain Man, Conduzindo Miss Daisy ou As Horas. O roteirista Michael Cunningham, aliás, é o mesmo de As Horas e, para completar, o esquema narrativo é precisamente o mesmo de O Curioso Caso de Benjamin Button.

Dividido entre o presente e o passado, a personagem principal é a cantora de jazz Ann (a inglesa Redgrave, crente de que está num filme melhor), em leito de morte, cuidada pelas filhas Nina (Collette) e Constance (Richardson, filha de Redgrave na vida real) numa linda casa grande e americana. Balbuciando lembranças dopadas com morfina, Ann recorda-se de um incidente nos anos 50, e entram flashbacks da sua juventude onde, misteriosamente, a personagem se transforma na muito americana Danes.

Ann era a amiga boêmia de Buddy (Hugh Dancy), universitário rico, sofisticado, provavelmente gay, que a convidou para o casamento da irmã dele, Lila (Mamie Gummer, filha de Streep na vida real), num final de semana. Lila casou com um chato na luxuosa casa de praia da família.

Embora ame loucamente Harris (Patrick Wilson), o filho idealista da governanta, rapaz que venceu na vida ao tornar-se médico, e também ali presente, Lila casa-se com o bobão. Harris também atraiu a jovem Ann naquele final de semana conturbado que marcou a todos. De volta ao presente, as filhas tentam entender palavras soltas ditas pela mãe, com curiosidade especial para saber quem é esse tal de Harris que ela tanto fala, inconsciente.

Não há nada de errado com uma história clássica como esta, a saudade do passado e da juventude são temas humanos imortais, a iminência da morte, o balanço de uma vida, potencial de beleza há. É mais o tratamento convencional de papel de carta, com musiquinha genérica que vulgariza emoções e as paisagens de revista de turismo, personagens que parecem sobras de uma adaptação apressada (baseado num livro de Susan Minot), psicologia fácil (a filha Nina irá aprender uma grande lição de vida, para sempre e sempre). Na verdade, a questão é essa, aceitar ou não uma caricatura confeitada da própria vida. Dependendo da sua visão, pode ser frustrante.

Filme visto no Cine Rosa e Silva, Recife, outubro 2008.

Espelhos do Medo


"Adorei Garotos Perdidos!"

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O titulo brasileiro é Espelhos do Medo (Mirrors, EUA, 2008), mas esse é o tipo de filme que poderia também se chamar Espelho Fatal, ou Espelho da Morte, ou Espelho Mortal. É um desses genéricos que dão má fama ao gênero terror. A estrutura, suspeita-se, vem de O Iluminado, de Kubrick, mas o tratamento é o mais rasteiro possível. Duas cenas !!g*r*a*t*u*i*t*a*s!! nos fazem lembrar que estamos vendo um filme de horror no sentido mais barato do termo, o resto poderia ser algum especial sobrenatural para a TV.

O diretor é o francês Alexandre Aja, que foi importado por Hollywood depois de fazer o muito interessante "assassino à solta" Alta Tensão (Haute Tension, tem em DVD), filme de grosseria memorável e sangrenta, do tipo violento demais até para os EUA. No seu primeiro filme americano, fez Viagem Maldita, refilmagem de The Hills Have Eyes (1977), de Wes Craven, ainda interessante, novamente pela agressividade.

Nesse Espelho Fatal (ou Espelho do Medo), temos um "tira" fracassado (Kiefer Sutherland) que aceita trabalhar como vigia noturno numa grande loja totalmente destruída num incêndio, cinco anos antes, na 6a avenida, em Nova York.

O cenário (na verdade, um prédio em Bucareste que o governo romeno de Nicolae Ceaucescu deixou inacabado) seria mais interessante se pudéssemos vê-lo direito, uma vez que o filme parece crer que ambientes escuros dão, necessariamente, medo. Kubrick parecia pensar diferente em O Iluminado, mostrando seu grande hotel de cabo a rabo com todas as luzes ligadas e, ainda assim, fez um filme de terror com T maiúsculo.

Sutherland, portanto, começa a ver coisas nos espelhos, e descobre que no incêndio morreram 45 pessoas. Não é exatamente um lugar alegre essa loja extinta, e logo ele irá pesquisar o passado do lugar que foi também um hospital psiquiátrico.

Ao invés de chamar o canal de TV mais próximo para mostrar a bagaceira sobrenatural, o filme faz o personagem agir misteriosamente econômico no seu estarrecimento ("tem alguma coisa no espelho!"), e logo será visto como insano, até mesmo quando alguém próximo a ele arranca a própria mandíbula numa das cenas horrorosas mais sem sentido que se tem notícia, suspeito que rebento da lógica Jogos Mortais.

Com outras claras influências dos filmes japoneses de terror recentes (cabelo, água no chão), Espelhos do Medo vai se arrastando em direção a um final que, visto o que passou durante a projeção, termina sendo uma idéia interessante nesse filme.

Filme visto no UCI Boa Viagem, outubro 2008