Saturday, September 27, 2008

Paul Newman Faleceu






(um dos meus filmes preferidos dele)

aos 83 anos.

Friday, September 26, 2008

Festival do Rio 2008



Filmes, Copacabana e gente com duas cabeças. É o Festival do Rio, meu décimo primeiro, aliás. Mais aqui. KMF

Meu breve guia do que ver. (***** max)

*LIVERPOOL * 1/2
* Aquele querido mês de agosto ****
* ELEGY * 1/2
* Procedimento Operacional Padrão ***
* CHE de Steven SODERBERGH *** 1/2
* ENTRE LES MURS de Laurent CANTET - ****
* GOMORRA de Matteo GARRONE ****
* LA FRONTIÈRE DE L'AUBE de Philippe GARREL - ***
* LA MUJER SIN CABEZA de Lucrecia MARTEL - ***
* LE SILENCE DE LORNA de Jean-Pierre et Luc DARDENNE ***
* LEONERA de Pablo TRAPERO - ***
* SERBIS de Brillante MENDOZA - ****
* SYNECDOCHE, NEW YORK de Charlie KAUFMAN - ** 1/2
* TWO LOVERS de James GRAY - ****
* UN CONTE DE NOËL de Arnaud DESPLECHIN - *** 1/2
* WALTZ WITH BASHIR, de Ari FOLMAN - *** ½
* BOOGIE, de Radu Muntean - ***
* A FESTA DA MENINA MORTA, de Matheus NACHTERGAELE - **
* TULPAN de Sergey DVORTSEVOY - *** ½
* SURVEILLANCE de Jennifer LYNCH - *** 1/2
* THE CHASER de Hong-Jin NA - *** 1/2
* THE GOOD, THE BAD, THE WEIRD de Jee-woon KIM - ***
* VICKY CRISTINA BARCELONA de Woody ALLEN - *** 1/2

Thursday, September 25, 2008

A Última Amante



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Os filmes da cineasta francesa Catherine Breillat são capazes de despertar discussões acirradas no pós-sessão, seja pela voz psico-internalizada do sexo, ou pelo uso incomum de uma pedra ou de um cabo de enxada num outro momento mais duro. Filmes seus como Romance (1999), Para Minha Irmã (Á Ma Soeur, 2001) ou Anatomia do Inferno (Anatomie de l'enfer, 2004, inédito no Brasil) passam como versões radicais do modelo francês de verbalizar a sensualidade, despertando a repulsa e o sono em muitos, ou o interesse em outros. A Última Amante (Une Vieille Maîtresse, França, 2007) representa o toque Breillat numa embalagem mais acessível do que a norma. O filme é não apenas inteligente e humano, mas também divertido.

Exibido em competição ano passado no Festival de Cannes, A Última Amante é uma adaptação literária de um romance de 1851 escrito por Jules Barbey d'Aurevilly. Investiga com enorme efeito o mito da amante, « a outra », a terceira peça (in)desejável de um casal, prazer para uma das partes (nesse caso, o homem), pesadelo para a sua mulher escolhida perante a sociedade. Essa semana, aliás, foi noticiado que uma amante no centro-oeste terá de indenizar uma esposa no valor de 31 mil reais não tanto por adultério, mas por perseguir obsessivamente a mulher oficial, ao ponto de ameaçar sua relação com os filhos e levá-la a perder o emprego.

A amante no filme de Breillat, a franco-espanhola Vellini (Asia Argento), não sugere ações do tipo, muito embora ela tenha qualidades particulares. Sabe-se que é filha de uma nobre mulher francesa com um toreador, relação ilícita que definiu sua posição na sociedade francesa (o filme se passa em 1835).

Seu caso de amor com o muito bem nascido Rino de Marigny (Fu'ad Ait Aatou) já tem mais de dez anos e é público e notório. Essa relação será testada com o anúncio de que Rino irá casar-se com a virtuosa boneca de porcelana Hermangarde (Roxane Mesquida), da alta roda.

Como em outras obras literárias do mesmo século (Les Liaisons Dangereuses/As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, ou The Age of Innocence/A Época da Inocência, de Edith Wharton), bem adaptadas para o cinema por gente como Stephen Frears e Martin Scorsese, temos dois cínicos manipuladores: o visconde de Prony (Michael Lonsdale, que presença!) e a condessa d'Artelles (Yolande Moureau), que discutem, tomando chá e comendo bem, sobre os impulsos romântico-carnais das peças de tabuleiro que manipulam.

Informada por Prony sobre os planos de casamento do seu amante, Vellini não mostra-se vencida, pois ninguém, segundo ela, tem idéia da força que existe entre ela e Rino. Mais tarde, ele chega para uma despedida apaixonada, a conclusão de um romance libertino e instável, mas que sempre resultou nos dois juntos, na cama.

O filme é inegavelmente de Breillat, que o realizou como prova da sua força pessoal, pois recuperava-se, aos 56 anos, de um derrame que a deixou parcialmente paralisada, meses antes de filmar. O cinema francês de época, sem grandes orçamentos, traz uma elegância no filmar que chama a atenção.

A sorte focada de Breillat, no entanto, está nos seus atores, que encarnam humana e visualmente os arquétipos clássicos de quem representam. Rino parece representar à perfeição o cavalheiro que simboliza o desejo feminino projetado de um ser masculino. Sua noiva é a perfeição virginal e nobre.

No entanto, é Ásia Argento que sai com o filme embaixo do braço. Essa atriz interessantíssima tem algo de inegavelmente punk, aspecto que tem sido utilizado com paixão por outros diretores em filmes ambientados hoje em dia (Terra dos Mortos, Transilvânia), mas que parece criar uma tensão muito interessante num filme de época como esse, e isso vai até mesmo para a sua tatuagem visível que Breillat parece ter deixado de pensar em maquiar.

Sua beleza que muitos confundem com feiúra tem algo de desafiador, seja de charuto na boca ou lambendo a ferida do seu amado. A composição de Argento para Vellini é talvez seu melhor papel no cinema, até agora.

Filme visto no Estação Botafogo 1, Rio, Setembro 2007

Reflexos do Passado




Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Questão recorrente, e fonte de alguns prazeres para o espectador, é a união entre música pop e cinema. Muitos filmes usam canções como muletas para trazer sensações que o próprio filme não é capaz de transmitir em imagens, para não falar dos que só querem empurrar uma canção comercialmente, a música tão importante quanto o Mc-Lanche Feliz que vai na promoção do filme. Poucos, no entanto, transformam a música (ou uma canção) num personagem, talvez o aspecto mais interessante de Reflexos do Passado (Flashbacks of a Fool, Inglaterra, 2008), filme do novato Baillie Walsh.

Esse diretor de comerciais conseguiu filmar seu projeto pessoal pela participação do amigo, aqui produtor e ator Daniel Craig, o atual James Bond. O título original traduz como "Lembranças de um Bôbo", e Craig (muito bom) é o personagem titular, o astro hollywoodiano Joe Scott. A apresentação de Joe não é das melhores, numa cena de sexo obrigatoriamente escura e 'artisticamente' desfocada. Na cama com o que mais parecem duas modelos, cheirando cocaína e com performance abaixo do esperado, Braillie vai de mão pesada ao tentar gritar para o espectador o quão decadente seu personagem está.

A coisa piora com a entrada em cena da sua empregada, Ophelia (Eve), que reitera a decadência do patrão num curto discurso que combina com a decoração fria e espaçosa da casa californiana à beira mar. Na verdade, o que Ophelia diz é inferior à sua pessoa, e à sua presença refrescante, uma vez que as outras demonstrações de humanidade próximas a Joe são a sua fornecedora de drogas, seu empresário tubarão em Hollywood ("eles querem alguém mais jovem, Joe!") e um diretor de filmes de ação sem nada na cabeça. Uma vida vazia, pois.

Toca um telefonema da Inglaterra, que informa Joe sobre a morte de um amigo de infância, Boots. A notícia irá levá-lo a um redemoinho de questionamentos pessoais e a uma bruta saudade de um período essencial na sua vida, nos anos 70. Abre-se um longo flashback onde a Inglaterra das memórias é ensolarada e sensual (filmada na África do Sul...), e onde a música pop era bela.

O jovem Joe (Harry Eden), filho de uma casa feminina (mãe, tia, irmã), também à beira mar, e aos 16 anos, inicia-se sexualmente com uma mulher casada (Jodhi May) escrava de hormônios e que parece ter a palavra "CATÁSTROFE" estampada na testa, aviso que o inexperiente Joe não consegue ler. Predatória, negativa e carente, ela é uma personagem interessante, com certeza, e ainda mãe de uma garotinha. Vale ponderar que é difícil não associar o fim narrado desta personagem a uma lógica puritana de ação e castigo divino.

Joe também paquera uma garota de sua idade, Ruth (Felicity Jones), menina linda e gente boa, a relação de amizade e intimidade (sem sexo) entre eles é claramente a melhor coisa do filme. São não apenas belos exemplos de juventude ansiosa pela vida, mas também cercados por uma ambientação perfeita dos anos 70 via décor, roupas e admiração sem limites pela música de David Bowie e Roxy Music.

É aqui que o filme revela-se claramente apaixonado por uma música: If There is Something (1972), do Roxy Music, que marca um momento pequeno mas significativo de felicidade, e que passa a assombrar o filme inteiro e talvez o próprio espectador como uma Madeleine de Proust para Joe e do seu tempo perdido. Observa-se que Ruth e If There is Something são personagens fortes, já que Reflexos do Passado parece esquecer de desenvolver Boots, pivô de tudo, o amigo que morreu jovem, e que conhecemos apenas superficialmente.

Essa música em particular funciona, pura e simplesmente, pelo fato de o filme se preocupar em tocá-la para que possamos ouvi-la, um pouco como um amigo que quer mostrar uma faixa incrível que precisa ser descoberta com som alto e livre de interrupções. Esse tempo, coisa tão rara no cinema moderno apressado, é raro. A química entre os personagens ajuda bastante, com destaque para a ótima Jones.

Mesmo com desdobramentos trágicos que beiram uma terrível novela das oito, e que revelam ainda a cartilha de que "sucesso e dinheiro não trazem felicidade", o espectador poderá lembrar, finda a sessão, o quão íntimos os ingleses são da música pop, talvez por terem, eles mesmos, a melhor música pop do mundo. O conceito de existir uma trilha sonora para as nossas vidas é perfeitamente utilizada. Prova disso está não apenas numa sequência final eficaz emocionalmente, mas por nos levar a perceber que a nossa melhor lembrança do filme coincide com o momento mais feliz da vida do seu personagem principal. Isso é bonito.

Wednesday, September 24, 2008

'Crítico' no Festival do Rio


Sábado, 4 de Outubro, 18h, Cine Palácio 1

(material de divulgação/press release)

O filme “Crítico” é a primeira experiência em longa-metragem do cineasta de Kleber Mendonça Filho (Vinil Verde, Eletrodoméstica, Noite de Sexta Manhã de Sábado). Neste documentário de 76 minutos, cerca de 70 críticos e cineastas, entrevistados no Brasil e no exterior, discutem o cinema a partir do conflito que existe entre o artista e o observador, o criador e o crítico. O filme foi produzido com incentivo do Funcultura do Governo de Pernambuco, com apoio da Faculdade Maurício de Nassau. É uma produção do CinemaScópio, em co-produção com a Link Digital.

O filme chega ao Festival do Rio depois de passagens pelos festivais de Tiradentes (estréia, em janeiro passado), BAFICI – Buenos Aires Festival Internacional de Cinema Independente), Curta-se (Aracaju), FAM (Florianópolis), Gramado e Atlantic Film Festival, em Halifax, Canadá. Curiosamente, a primeira entrevista feita para o filme foi em setembro de 1998, e sua exibição no Festival do Rio marcam os dez anos de trajetória do projeto.

"Crítico" passou ainda por dois anos de montagem e um trabalho de pesquisa, entrevistas e reunião de dados que teve início em 1998. Como crítico profissional de cinema (Kleber Mendonça Filho escreve para o Jornal do Commercio, no Recife e tem seu próprio site, o www.cinemascopio.com.br), a realização desse documentário foi guiada pelos questionamentos pessoais de quem se posiciona na indústria cultural tanto como cineasta, como também observador da arte e da indústria do áudio-visual. Entre 1998 e 2007, KMF registrou depoimentos no Brasil, Estados Unidos e Europa, a partir da sua experiência como crítico.

No filme, há depoimentos reveladores de criadores como Walter Salles, Nelson Pereira dos Santos, Costa Gavras, Tom Tykwer, Gus Van Sant, Eduardo Coutinho, Curtis Hanson, Fernando Meirelles, Carlos Reichenbach, João Moreira Salles, Cláudio Assis, Richard Linklater e Carlos Saura, para citar alguns. Críticos do mundo inteiro também foram registrados, representando meios como Les Cahiers du Cinéma, Telérama e Positif (França), O Globo, Folha de S. Paulo (Brasil), e Variety (EUA). É um filme sobre cinema, e também sobre os que o fazem.

Em termos técnicos, "Crítico" é fruto de um novo tipo de tecnologia que viabilizou uma obra realizada com câmeras portáteis digitais e uma montagem executada em computadores pessoais pelo próprio realizador, e pela montadora Emilie Lesclaux. A montagem final inclui imagens do acervo pessoal do realizador, como de arquivos internacionais de filmes que encontram-se em domínio público, disponíveis via internet. Esse material compõe o todo, estabelecendo um diálogo entre a palavra e as imagens do próprio cinema.

Sobre o realizador

Kleber Mendonça Filho nasceu no Recife, Brasil. Formado em jornalismo, tem um trabalho abrangente como crítico de cinema e também como co-programador da principal sala de perfil alternativo do Recife, o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco. Nos anos 90, ele fez documentários, obras de caráter experimental, e ficção como videomaker. Como cineasta, ele tem utilizado técnicas diferentes atualmente disponíveis (digital, 35 mm, fotografias still, animação). O foco do seu cinema está nas pessoas, no amor e no medo.

Os curtas metragens de Kleber Mndonça Filho, Enjaulado (1997), A Menina do Algodão (2003), Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005) e Noite de Sexta Manhã de Sábado (2006) ganharam mais de 70 prêmios nacionais e internacionais, com passagens por festivais como Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, Roterdã (Holanda), Clermont-Ferrand (França), Hamburgo (Alemanha), Cork (Irlanda), Upsala (Suécia), Huesca (Espanha) e a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.


Filmografia:

Enjaulado (Caged In, 1997, Betacam, 33 mins.)
A Menina do Algodão (The Little Cotton Girl, 2003, Mini-DV-35mm, 6 mins.)
Vinil Verde (Green Vinyl, 2004, stills/35mm, 16 mins.)
Eletrodoméstica (2005, 35mm, 22 mins.)
Noite de Sexta, Manhã de Sábado (2006, Friday Night, Saturday Morning, Mini-DV/35mm, 14 mins)


Sinopse

70 críticos e cineastas discutem o cinema a partir do sempre interessante conflito que existe entre o artista e o observador, o criador e o crítico. Entre 1998 e 2007, Kleber Mendonça Filho registrou depoimentos sobre esta relação no Brasil, Estados Unidos e Europa, a partir da sua experiencia como crítico. Com depoimentos reveladores de criadores como Gus Van Sant, Tom Tykwer, Eduardo Coutinho, Curtis Hanson, Carlos Reichenbach, Walter Salles e Carlos Saura, Crítico abre uma janela para uma arte cada vez mais julgada por mecanismos de mercado, e que luta para permanecer humana tanto no fazer, como no observar.


Ficha Técnica

Mini-DV - imagens de arquivo – fotos still / 35 mm
Cor e P&B, Dolby Digital, 76’
2008

Filme: Kleber Mendonça Filho
Produção, Roteiro e Montagem : Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho
Produção de finalização: Error! Contact not defined., Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho
Pesquisa : Emilie Lesclaux
Entrevistas e imagens adicionais (Paris) : Leonardo Sette, Francisco Fagan
Música original : DJ Dolores
Letreiros : Daniel Bandeira
Animação : Daniel Bandeira, Emilie Lesclaux, Kleber Mendonça Filho
Arte do cartaz : Kilian Glasner
Finalização : Link Digital
Mixagem: Estúdio Carranca

Trailer

Tuesday, September 23, 2008

Tropa de Elite USA



Do ponto de vista da linguagem, esse trailer roliúde de Tropa de Elite diz tudo. O filme parece ter sido feito para existir nessa peça pré-programada, fruto de algum 'trailer droid' que destaca com precisão todos os ticks industriais do filme. Cinema e globalização, tema rico.

e vejam isso: (obrigado Arnaldo, da comunidade do CinemaScópio no Orkut)

Sunday, September 21, 2008

A Casa da Mãe Joana


Juliana Paes é no filme a fada brasileira por excelência.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

A Casa da Mãe Joana (Brasil, 2007), filme de Hugo Carvana, passa como um alegre pesadelo para feministas. Esse filme retrô sugere algo como se ouvíssemos numa mesa de bar vizinha histórias machistas de homens que já foram jovens. A imagem assinatura do filme é a da sensualidade brasileira desejada de uma Juliana Paes fadinha masculina em coloridos baby-dolls, andando pra lá e pra cá. Esse curioso produto de mercado lembra o que restou do espólio da comédia popularesca nacional, com peças avulsas da chanchada, do programa de auditório e de uma 'sensibilidade uísque' tão cara a uma faixa social burguesa dos homens da boa idade, grupo que abriga Carvana, aos 71 anos.

Carvana - "o Dr. Andrade da novela Três irmãs" – é uma figura memorável no cinema brasileiro, sua personalidade artística não deve estar distante da sua própria pessoa. Fez um filme marcante em Vai Trabalhar Vagabundo (1973), onde o malandro carioca ganhou representação icônica. Fez o repórter Valdomiro Pena na excelente série Plantão de Polícia, na Globo dos 70/80 (porquê não existe em DVD?!), com o mesmo tipo de malemolência anarquista-zona sul-Rio de Janeiro.

Esse tom antigo marcado por toda uma trajetória revela-se presente no seu filme novo, e não deixa de ser uma curiosidade observá-lo. Rodado em grande parte em estúdio, com planos médios e fechados predominando, há, mesmo assim, um aspecto de "filme" que outros produtos atuais do tipo não parecem alcançar.

Temos um grupo de quatro homens safados que aplicam golpes em mulheres para ganhar dinheiro e conquistar outras mulheres. A filosofia é nunca ter que dar um dia de trabalho que seja, se dar bem sexualmente e beber uísque. Em ordem decrescente de idade, Antônio Pedro, José Wilker, Paulo Betti e Pedro Cardoso integram essa quadrilha. Terão que rever seus dogmas para saldar dívida contraída num esquema mulheril que não deu certo.

Desdobramentos beiram o indescritível, com Betti de prostituto semi-nu para mulheres maduras usando adereços de couro e protagonizando piadas de Viagra. Wilker vira enfermeiro para um comendador e travesti de idade avançada (Agildo Ribeiro de cadeira de rodas e vestido de mulher), enquanto Cardoso fica de caso com a esposa (Malu Mader) de um joalheiro. Como num vaudeville tupiniquim, entra ainda a mãe de Betti (Laura Cardoso), conseguindo aos poucos superar a mera 'piada de véia', e a filha de Wilker, uma menina chamada Tainacã (Fernanda Freitas, simpática), sempre com um sorridente shortinho, e, às vezes, sem.

Já o mais velho Pedro tenta incorporar a alma feminina brasileira ao virar uma falsa colunista mulher para algum jornal, sua musa é Juliana Paes, tratada pelo filme como uma aparição através de pirlimpimpins digitais alegremente toscos. A capacidade de Paes sorrir e fazer biquinho impressiona. O elemento macumba sela a bagaceira como indiscutivelmente brasileira. Arlete Sales, Miéle, Beth Goulart e Cláudio Marzo também compõem o elenco, ou o quadro.

Estômago


Raimundo Nonato descobre a existência do vidro, em Estômago.


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Saiu quarta-feira o resultado do edital do BNDeS. O título de um dos projetos premiados me chamou a atenção: 5 Vezes Favela – Agora Por Eles Mesmos, de Carlos Diegues, o "agora por eles mesmos" o fator curioso. Informa que o 5 Vezes Favela dos anos 60, filme patrono do fascínio do cine brasileiro com o universo da pobreza, terá, desta vez, o olhar do favelado, ainda que o projeto seja assinado por Diegues. De alguma forma, isso me leva a Estômago (Brasil, 2007), filme que reflete questões de cine-representação em imagens que vêm de cima para baixo (da pior forma possível). O elemento em questão é a figura do "nordestino".

Essa produção do Paraná tem a carpintaria relativamente segura do seu diretor, o curitibano Marcos Jorge, que usa como personagem principal Raimundo Nonato (João Miguel, de Cinema Aspirinas e Urubus), mais uma variação borrada do Didi Mocó/João Grilo reconfigurado para um ambiente urbano contemporâneo no sul do Brasil. O espectador poderá perceber para onde o filme quer ir a partir do exato momento em que Nonato desce do ônibus, elemento simbólico da cultura brasileira, ligação entre o norte e o sul.

Nonato, que Marcos Jorge compõe como uma 'pessoa simples' (fala 'engraçado', não sabe o que é gorgonzola) tem talento para a gastronomia. Sempre de cabeça baixa e grato por estar respirando, se deixa explorar por Zulmiro (Zeca Cenovicz), o dono de um bar, que exige longas horas de trabalho escravo. Dá a Nonato não um salário, mas um lugar para dormir e uma série de pequenas humilhações inspiradas pelo preconceito sul>norte.

Feliz com o pouco que tem, Raimundo Nonato revela-se ao preparar coxinhas, um sucesso que irá atrair a prostituta Íria (Fabiula Nascimento) e o restaurateur Giovanni (Carlo Briani). Esse outro escroque assume a tarefa de domesticar esse bom selvagem baiano/paraíba que dialoga tão bem com estômagos alheios. O tom de comédia italiana - que alguns colegas excêntricos confundiram com algo remotamente associado a Fellini - é aplicado ao todo via música, com resultados ainda mais sinistros.

Na verdade, a coisa piora. Paralelamente, vemos Nonato cumprindo pena na prisão. Algo de ruim aconteceu na sua trajetória de cozinheiro, talvez no seu relacionamento com Íria, ou com Giovanni. O roteiro de Jorge, Cláudia da Natividade, Fabrizio Donvito e Lusa Silvestre tem a funcionalidade e graça de um Uno Mille, mantendo as pontas amarradas até a grande revelação final, uma decepção, aliás, pois desde bem cedo que o espectador sabe exatamente para aonde estamos indo, canibalismo incluído.

Na prisão, Nonato também sobe hierarquicamente ao agradar a barriga do chefe do tráfico Bujiú (Babu Santana), e logo nosso homem simples irá dar a volta por cima no único espaço que um filme com olhar social tão raquítico poderia permitir para um Raimundo: nas cavernas sanitárias de qualquer sociedade que é o sistema penitenciário. É praticamente uma volta por baixo. Ajuda saber que Nonato revela-se ainda um assassino comedor de carne humana, prova do quão selvagem ele sempre foi, e sempre, ao que parece, será.

As formas de representação social são o grande tema do cinema brasileiro hoje, e um filme como Estômago revela aspectos importantes. Cineastas continuam filmando estereótipos sociais que só existem em clichês de larga grossura, o que explica olhares enviesados como os de Domésticas (1999), de Fernando Meirelles e Nando Olival, Tropa de Elite (2007), de José Padilha, ou este Estômago. Essencialmente, são realizadores que trabalham intimamente com universos que eles não conhecem. Os resultados são bonecos grotescos confundidos com personagens.

Ainda sobre representação, dois atores no filme ilustram isso. Se o excelente João Miguel ainda consegue humanizar Nonato com os olhos via contrabando, e sob os maus tratos imperativos do roteiro, é Santana via seu traficante encarcerado que ilustra esse olhar externo paralisante, de cima para baixo. Esse ator competente parece preso no inferno astral do mesmo papel sempre (criminoso, traficante de cara feia...) em praticamente todos os seus filmes, de Cidade de Deus a Uma Onda no Ar, Quase Dois Irmãos e Maré – Nossa História de Amor. Será irônico se Santana repetir, mais uma vez, a imagem imposta do mesmo bandido no 5 Vezes Favela – Agora Por Eles Mesmos, de Carlos Diegues.

Filme visto no Palácio 1, Festival do Rio, setembro 2007

Monday, September 15, 2008

Linha de Passe e o Oscar



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Desde que saiu a lista dos brasileiros inscritos por seus produtores para uma possível vaga brasileira no Oscar de Filme Estrangeiro (indicação), que a pergunta feita por todos é, "onde está o Linha de Passe?"

Eu havia ligado para Anna Luiza Muller (assessora de imprensa de Walter) no dia da divulgação dos inscritos, e ela me falou motivos pessoais "em off", o que me deixou, em termos jornalísticos, a ver navios, pois não poderia divulgá-los. Agora, ela me avisa que saiu esse texto, escrito pelo próprio Walter, postado no site do filme, http://www.paramountpictures.com.br/linhadepasse.

Reproduzo-o aqui, abaixo.

No mais, acho bom que Walter Salles faça o que acha melhor para ele mesmo em termos pessoais, o track record dele não é pequeno. Na verdade, sempre me interessa entender as movimentações pessoais que existem por trás do filme público que temos acesso, seja ver o meninão quarentão que é um Guillermo del Toro se esbaldando com suas criaturas, um Ben Stiller torrando toneladas de dinheiro numa gréia industrial como Tropic Thunder, ou um David Lynch vendendo café e transcendência, que me faz lembrar essa tomada de atitude de Salles e Daniela Thomas.

Sobre o Oscar de Filme Estrangeiro, por Walter Salles (14/9/08)

"Participar da campanha pelo Oscar de melhor filme estrangeiro é um processo mais complexo do que parece. Já percorri essa estrada e sei que sem uma dedicação de vários meses, as chances de um filme selecionado por um país chegar à final e possivelmente ganhar são escassas.

Fazer parte da Mostra Competitiva dos mais importantes festivais do mundo é um processo altamente seletivo, que oferece um retrato amplo do cinema independente mundial e se encerra em poucas semanas. A corrida para o Oscar, ao contrário, não se decide em um único evento e sim em etapas sucessivas. É como a diferença entre uma corrida de 400 metros e uma maratona - só que com barreiras...

Uma campanha realmente competitiva para o Oscar começa nos prêmios que são outorgados no final do segundo semestre pelo National Board of Review, a mais antiga associação de críticos dos Estados Unidos, e continua com os prêmios da crítica especializada das maiores cidades daquele país. Para cada um desses eventos, é necessário apresentar o filme, realizar debates, fazer dezenas de entrevistas desde meados do segundo semestre.

Em anos especialmente disputados, lançar o filme nos Estados Unidos até outubro ou novembro é um trunfo importante. Quando "Central do Brasil" ganhou o prêmio de melhor filme estrangeiro do National Board of Review em dezembro de 1998 e depois o Globo de Ouro, já tínhamos lançado o filme nos Estados Unidos e realizado dezenas de debates através do país. Roberto Begnini, que ganhou o Oscar em março de 1999, lançou o seu filme ainda mais cedo, mudou-se para Los Angeles e passou vários meses em campanha.

"Linha de passe" foi realizado sem incentivos fiscais, graças ao financiamento de uma companhia especializada em viabilizar filmes independentes e à pré-compra feita por vários distribuidores independentes europeus. Esses distribuidores que acreditaram no filme antes dele existir estão lançando o "Linha" nos próximos meses em seus países. Para ajudar esses lançamentos, me comprometi a estar presente de setembro a janeiro em festivais e debates na Inglaterra, Bélgica, Grécia, Dinamarca, França, Itália, etc. Para se ter uma idéia, só nessa semana, temos debates no National Film Theater em Londres, apresentações na London University e em outras universidades, projeções para membros do Bafta e mais de cem entrevistas com a mídia inglesa.

Não há possibilidade de se fazer um trabalho de fundo em duas frentes ao mesmo tempo. Daniela Thomas e eu conversamos longamente sobre isso e, como ela deverá estar filmando um novo projeto em outubro e novembro, não teremos como dividir as atenções até o final do ano.

Para fazer algo pela metade, é melhor não fazer. Se tivéssemos inscrito "Linha de passe" e ganhado a indicação do Brasil, não teríamos como representar o país com a responsabilidade que se faz necessária. Agradecemos a todos que torcem pelo filme e desejamos o melhor ao longa brasileiro que for escolhido pela comissão".

Walter Salles

Thursday, September 11, 2008

Breve Crônica da Aceitação



Fernando Meirelles apresenta Ensaio Sobre a Cegueira, José Saramago o aceita. Há uma intimidade nessas imagens que supera o constrangimento e chegam à beleza. Lisboa, maio 2008.

Ensaio Sobre a Cegueira



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
Livro dos Conselhos.

Esse pensamento introduz os escritos de José Saramago na sua obra Ensaio Sobre a Cegueira, e o mesmo pensamento não deixa de chamar a atenção voltando ao livro depois de ver a versão cinema adaptada por Fernando Meirelles. Sem necessariamente jogar juízo negativo de valor sobre o olhar de Meirelles, hábil realizador de formação moderna via TV e publicidade, a capacidade de reparar qualquer um dos quadros que ele compõe é frequentemente roubada pelo ritmo assoberbado das suas narrativas. Suspeita-se que seus filmes funcionem mais via acúmulo sensorial ditado do que pela pacata sugestão de uma imagem a ser vista, e reparada.

Com esse filme falado em inglês, numa produção internacional parcialmente rodada numa São Paulo travestida de lugar nenhum (a identidade da cidade literalmente apagada nas placas dos carros), Fernando Meirelles dá continuidade ao seu projeto de cinema que visa o planeta, não tanto o Brasil como sua base temática. A ponderação vem do lamento de ver suas habilidades voltadas para o genérico, e não tanto para a sua visão universal do país em si.

Meirelles teve a honra pesada de abrir o Festival de Cannes em maio último, onde o filme passou numa versão levemente diferente da que está sendo lançada nos cinemas. Foi tirado um off redundante na abertura, na voz de Danny Glover. Falado em inglês, filmado e interpretado por uma equipe muti-nacional, Meirelles trilha caminhos tomados por Hector Babenco, que em 1984 fez O Beijo da Mulher Aranha com levada também internacional, na mesma cidade.

Essa habilidade de fazer cinema para o mundo é restrita a poucos cineastas no Brasil, Babenco e Meirelles com certeza, Walter Salles seria o outro, seu Linha de Passe estreou semana passada com uma leitura totalmente diferente da capital paulista.

Curiosamente, ao almejar o genérico/universal, num filme que, como Babel, de Alejandro Gonzalez Iñaritu, parece um ensaio indireto sobre a globalização, tanto pelo que está na tela quanto pelo sistema de produção, Ensaio Sobre a Cegueira alinha-se a uma série de filmes recentes que mostram um mundo em colapso, como Eu Sou a Lenda, de Francis Lawrence, Fim dos Dias, de M Knight Shyamalan, ou Diário dos Mortos, de George Romero. A diferença é que ele não parece reparar que fez um filme de gênero. Revendo o filme, lembrei de O Nevoeiro, que abraça o cinema de gênero nos dando colapso humano semelhante na sua clausura.

Em Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, temos um exemplo curioso das constantes correlações entre as duas linguagens, e como o cinema tenta transformar em imagem aquilo que foi originalmente criado via letras. Sensação semelhante pode afligir o crítico de cinema que escreve um texto a partir de uma série de imagens que fazem um filme, por sua vez tirado de um livro. Como viabilizar essa tradução?

O tom híbrido do filme parece estar em cada momento, e não apenas relacionado às letras e às imagens. A montagem e enquadramentos são cinema, mas há algo de muito teatral no confinamento desses personagens e suas linguagens corporais de desorientação. Por fim, como produto de mercado, Ensaio Sobre a Cegueira fica entre o acessível (popular) e o restrito (alternativo).

Talvez existam dois tipos primordiais de cineastas que adaptam obras literárias para o terreno das imagens narradas. O primeiro, dominado pelo respeito à obra raiz, tenta honrar as letras com o seu cinema. O segundo, crente de que os dois meios são incompatíveis (ou de que seu filme será melhor do que o livro...), partem para filmar sem mostrar constrangimentos com eventuais distanciamentos da obra original.

Meirelles mostra-se claramente adepto da primeira postura, vide suas traduções coesas para Cidade de Deus, de Paulo Lins, e O Jardineiro Fiel, de John Le Carré.

Assistindo a Ensaio Sobre a Cegueira, percebe-se a tradução literal do que é física e visualmente possível no campo do cinema, e o filme poderá virar estudo de caso. Dos segundos de abertura num semáforo ao desenvolvimento de boa parte dos incidentes que estabelecem o eixo dramático do livro de José Saramago, percebemos que a palavra de ordem é mesmo fidelidade.

Aqui, a população de uma cidade (talvez do mundo) vai ficando cega. Eles só enxergam uma tonalidade branca, "um mar de leite", e o mal súbito afeta a todos, exceto uma mulher (Julianne Moore), a esposa do médico (Mark Ruffalo). Num grupo que se forma involuntariamente, há ainda "a rapariga de óculos escuros" (Alice Braga), o "ladrão de carro" (Don McKellar, também roterista), o velho da venda preta (Danny Glover)...

Eles terminam numa espécie de campo de concentração, sob regime de quarentena, e o tom apocalíptico é confirmado numa série de conflitos internos que, curiosamente, têm algo de muito teatral na composição enclausurada, ou mesmo na percepção de que os atores estão participando de numa oficina especial de cegueira no palco.

Os primeiros 30 minutos revelam virtudes e já seus problemas. A fidelidade amorosa de Meirelles pela obra de Saramago chega a ser tocante, mas logo vemos que há algo mais do que a fidelidade de tom e de imagem que faz um filme existir. Como traduzir, por exemplo, a tensão transmitida pelo texto corrido e sem pontuação clara de diálogos e narração, sentida no livro? Seria com o ritmo inclemente da montagem na primeira metade?

Meirelles e seu fotógrafo e parceiro César Charlone administram as imagens com grande domínio, mas já algo no design deles que parece querer nos dominar constantemente. Investem num cansativo efeito cegueira, como se estivéssemos com as pupilas constantemente dilatadas. Passa a sensação de tradução ao pé da letra que termina como problema.

Nesse sentido, voltamos à idéia de olhar, ver e reparar. Ensaio Sobre a Cegueira parece estar correndo em alta velocidade com a suspeita de que precisa fazer o serviço em duas horas pontuais. Essa duração, repleta de incidentes, sugere uma obra que se beneficiaria de ainda mais tempo para existir dentro do pânico desorientado da raça humana sugerido pelo livro.

Meirelles, hábil construtor de um cinema ágil e moderno, não parece buscar no tempo um aliado para a sua narração, mas apenas um inimigo, e sua pressa (contratual? Conceitual?) é reveladora disso.

Numa imagem memorável na sua eficácia e síntese, por exemplo, ele nos mostra uma criança (cega) tropeçando numa mesa (invisível), a mesa repentinamente materializando-se num afiado flash de efeito especial. Essa cena talvez sintetize a diferença primordial entre o ler e o ver, o olhar e o reparar.

Filme revisto no Kinoplex Plaza Shopping, Recife, setembro 2008

Fernando Meirelles: Entrevista



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Ensaio Sobre a Cegueira foi publicado em 1995. Três anos mais tarde, seu autor, o português José Saramago, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. 13 anos depois, o livro vira filme após uma divulgada relutância inicial do seu autor no sentido de liberá-lo para as imagens do cinema, e a adaptação chega pelo olhar do cineasta brasileiro Fernando Meirelles.

A carreira de Meirelles no cinema, depois de anos na TV e na publicidade, vem sendo pontuada por transformações enérgicas de livros em filmes. Reprocessou a narrativa multi-facetada de Paulo Lins sobre a comunidade carioca de Cidade de Deus na descarga de adrenalina hiperativa e ultra-violenta que é a sua versão filmada (2002), já um dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro e o principal diplomata desse cinema no exterior, nesta década.

Sua obra seguinte, O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener, Inglaterra/EUA, 2005), fez Meirelles mergulhar no universo do thriller internacional com tintas conspiratórias, a partir do livro do britânico John Le Carré. O resultado foi um produto de mercado surpreendentemente humano sobre a espetacular divisão que existe entre o mundo rico e o mundo pobre.

Ensaio Sobre a Cegueira (Blindness, Brasil/Canadá/Japão, 2008), o filme, estréia esse mês no país depois de abrir o Festival de Cannes, em maio, com uma recepção que dividiu a crítica internacional. Foi em Cannes que eu conversei com Meirelles, dias depois da primeira projeção do filme. Aspecto curioso desse realizador é a sua transparência na conversa com jornalistas, e nessa entrevista ele admitiu uma certa decepção com as primeiras reações ao filme. Falou também sobre adaptar o livro e sobre o papel de São Paulo nas imagens apresentadas de uma história originalmente localizada em lugar nenhum.

Kleber Mendonça Filho - Adaptar uma obra literária sobre cegueira para a mídia cinema. O que lhe levou a crer que isso daria certo?

Fernando Meirelles – Eu não achei que daria certo, é verdade. Eu li o livro há dez ou 11 anos atrás, fiquei muito impressionado e imediatamente fui atrás dos direitos para adquirí-lo através da editora de Saramago no Brasil. Saramago, no entanto, não quis vender, ele me falou que "o cinema destrói a imaginação". Eu simplesmente encerrei o caso. Seis anos depois, Niv Fichman, o produtor, comprou os direitos e, de repente, o projeto voltou para mim. De quatro mil diretores no mundo hoje, porquê eu? Entrei no projeto e voltei aos aspectos que me atraíram ao livro. A fragilidade da civilização, que finge ser sólida e sofisticada, mas que, se algo dá errado, tudo entra em colapso. Basta ler os jornais hoje em dia e vemos que estamos indo nessa direção, o alerta contra Sars, o Tsunami na Ásia, o furacão Katrina, em Nova Orleans. Ao voltar para o livro, percebi no processo de adaptação as muitas camadas da história, que eu tentei explorar no filme.

KMF – Historicamente, produções internacionais como esta mostraram que representam a morte artística de um projeto. Como foi a combinação de tantas nacionalidades (brasileiros, japoneses, canadenses, americanos, mexicanos) para chegar a um consenso?

FM – Pura sorte de ter achado uma química. Não tivemos uma briga ou nenhum problema, foi tudo tão tranqüilo. É por isso que nos créditos de abertura, colocamos "esta é uma produção bem independente". Espero adotar esse modelo para sempre, daqui para frente.

KMF – Como observador do seu trabalho, percebe-se que você tem levado sua carreira cada vez mais longe do Brasil, O Jardineiro Fiel já apontou isso, Ensaio Sobre a Cegueira confirma esse lado. Nós podemos contar com o seu talento para narrar histórias brasileiras, feitas no Brasil?

FM – Esse filme foi filmado em São Paulo, com técnicos brasileiros: o fotografo, o montador, os técnicos de som, os efeitos especiais digitais... São todos brasileiros. Na verdade, eu acho o filme muito brasileiro. A história é universal, sem uma localização exata, mas trata-se de uma história sobre a humanidade, e o Brasil faz parte dela. O filme é falado em inglês pelo fato de eu ter sido convidado para fazer um filme falado em inglês. Há também o fator orçamento, Ensaio Sobre a Cegueira não poderia ter sido feito em português. Quando você faz um filme em português, ele não pode custar mais de quatro ou cinco milhões de dólares, caso contrário ele não irá se pagar. Pela estrutura do filme, ele é um projeto caro, e isso exige o inglês. De qualquer forma, eu estou trabalhando numa mini-série para a Globo que chama-se Som e Fúria, e estarei filmando até o mês de outubro, toda filmada no Brasil. Para falar a verdade, eu acho que para trabalhar em português, a melhor coisa atualmente é fazer televisão. Tanta gente vê, e no cinema, não tanto. Ainda por cima, é tão bom poder trabalhar com U$ 20 milhões, ao invés de ter que brigar com dois ou três milhões de dólares. Filmar no Brasil significa estar trancado nas limitações, é uma questão prática.


KMF – Seu inglês é muito bom, mas você teve reservas sobre trabalhar o texto em inglês? É diferente o tom?

FM – É claro que eu prefiro o português. Eu falo inglês e conheço o significado das palavras, mas para cada palavra há um significado obscuro ali por trás que eu conheço muito bem na minha língua mãe, mas não no inglês. Se eu falo "mangueira" em português que, em inglês, traduz-se como 'mango tree', para o estrangeiro é apenas a imagem fria de um tipo específico de árvore. Para mim, lembro do meu avô, do sabor, do aroma, vai além da palavra. Quando filmo em português, troco o uso das palavras o tempo todo, enquanto no inglês, me falta a poesia da língua, algo que lamento muito não ter.

KMF – Você falou sobre o colapso da civilização. Algum conflito interno lhe levou a enxergar Ensaio Sobre a Cegueira como um projeto pessoal?

FM – (pensativo) Talvez não deveria compartilhar isso aqui, mas a verdade é que em 2005, por algum motivo inexplicável, eu me vi em depressão. Vale saber que aquele havia sido um excelente ano, minha família é sólida, saudável, sou casado há 22 anos e bem, eu estava divulgando O Jardineiro Fiel, tudo ia bem, indicações ao Oscar, etc. Mesmo assim, chegou o final do ano e me vi devastado e pensei em nunca mais fazer cinema, me vi de cara para a parede. Decidi parar durante 2006, olhar para dentro de mim mesmo e achar o problema. Não vou dizer o que achei, claro, mas voltei, fiz esse filme e percebi que ele é um pouco isso. Ensaio Sobre a Cegueira faz a indagação, "quanto teremos que sofrer para poder enxergar?". Esse processo pessoal me pareceu semelhante ao processo da zona de quarentena, porque depois dali as pessoas são capazes de reconstruir.

KMF – Essa zona de quarentena não deixa de lembrar um pouco o próprio Festival de Cannes, que lhe convidou para assumir um das posições mais radicais de auto-exposição do mundo do cinema, que é abrir o festival com um filme. Como lida com tanta exposição?

FM – A exposição, ou a quantidade de exposição faz parte do trabalho, e acho que parte desses meus problemas que relatei aqui vieram exatamente dessa questão, "a exposição", algo que, obviamente, eu não aprecio. Por outro lado, por fazer o tipo de cinema autoral que faço, faz parte acompanhar os filmes, para o bem e para o mal. Aqui em Cannes, por exemplo, eu tenho tido que lidar com as piores criticas que já tive na minha carreira. Não é uma experiência agradável, mas, mesmo assim, estou confiante de que o filme terá o seu público. Para levantar meu astral, os produtores me enviaram críticas do The Guardian, Corriere della Sera, Daily Telegraph, Los Angeles Times, um clipping de críticas positivas de jornais diários que é o que o grande público lê, diferente das publicações voltadas para a indústria, que foram negativas. Acho que esse filme precisa de um certo tempo para decantar, você assiste, talvez não gosta muito, mas depois ele volta à sua cabeça e você passa a enxergá-lo de maneira diferente. Sinto isso um pouco com os filmes de Wong Kar Wai, que inicialmente me aborrecem um pouco. Depois, eles ficam na minha cabeça e não vão embora.

KMF – Você aprendeu alguma coisa com essas criticas?

FM – Eu não as li, apenas fui informado. Ler críticas tira o meu foco. Eu já li criticas, e o que ocorre é que durante dois dias você fica respondendo, ponto por ponto, dentro da sua cabeça. É destrutivo.

KMF – Você disse certa vez que tinha medo de fazer um filme de 'zumbi', e o filme, de fato, tem uma estrutura semelhante.

FM – Eu não gosto desse gênero e meu medo vinha do fato de a primeira imagem ser a de um grupo de pessoas andando por ruas desertas. Creio que o filme não vai nessa direção.

KMF – Isso não deveria ser visto como algo negativo, há grandes 'filmes de zumbi', como os de George Romero. Há uma cena no supermercado que lembra muito Dawn of the Dead.

FM – Eu não conheço esse filme.

KMF – Qual a maior dificuldade na adaptação?

FM – Estabelecer a história. Apresentamos os personagens como no livro, a partir do momento em que eles já estão ficando cegos. Se fosse um filme hollywoodiano, tenho certeza que seriam criados mecanismos para aliviar isso, talvez dois dos personagens teria um passado, nós nos envolveríamos com eles e aí sim, eles ficariam cegos. É claro que cogitamos criar um primeiro ato só para apresentar os personagens, mas fugiríamos da história. No livro, eles não têm nomes ou passado, e isso terminou sendo uma decisão arriscada. Outro aspecto que vai contra a cartilha é não termos personagens agradáveis, os principais não despertam muita simpatia. Temos uma prostituta, um ladrão, o médico que é arrogante, a esposa boba.

KMF – Você fala da "esposa boba", mas no livro, ela não é uma "esposa boba".

FM – Talvez ela não seja, quero dizer, no livro ela é um tanto constante, creio que no filme tentamos construir um arco maior para ela no sentido do que ela era e no que ela se transformou.

KMF – Qual foi a participação de Saramago no filme?

FM – Inicialmente, achei que ele não estava muito interessado no projeto. Depois começamos a trocar inúmeros emails e senti que ele estava dentro, mostrando ter expectativas enormes em relação ao filme. Chegou até a dizer que a única peça que estava faltando numa grande exposição dedicada a Saramago em Lisboa era o filme, "com o filme, minha vida estará completa", o que, claro, me fez entrar em desespero.

KMF – Na coletiva de imprensa logo após a primeira exibição de Ensaio Sobre a Cegueira, você mencionou a existência de dois filmes, um no sentido da imagem, outro no sentido do som.

FM – Usamos artifícios para trazer a noção de cegueira para a platéia, como as imagens saturadas de branco, imagens multiplicadas para passar desorientação de espaço nos personagens. Em relação ao som, há uma construção no sentido de diálogos cobrirem imagens não relacionadas. Tenta passar a idéia de desconectar o som da imagem, reforçando a ilusão de cegueira.

KMF – Há um bom momento onde o garoto esbarra numa mesa, mas a mesa só se materializa no quadro com o esbarrão. Que tipo de pesquisa vocês fizeram no sentido de expressar em imagens a cegueira?

FM – Criamos uma oficina para atores e figurantes, composta por três sessões de quatro horas cada, todos vendados. Grupos de até 25 pessoas saíam com o responsável pela oficina, Chris de Voort, pelas ruas, treinando os sentidos, muitas vezes seguindo sons. Tínhamos jogos como, por exemplo, achar comida através do olfato, às vezes lutar pela comida como na própria obra. Eu aprendi muito com essas oficinas. Às vezes, depois de duas horas com os olhos vendados, alguns começavam a ficar tristes, deprimidos, paravam e começavam a chorar como criança. Outros ficavam agressivos. Nas cenas mais fortes, emotivas, alguns atores pediram para usar lentes de contato especiais que bloqueiam a visão, pois era demais pedir para atuar e ainda processar a atuação especial de estar, ou agir, cego.

KMF – Sua parceria com César Charlone na fotografia é duradoura, como é dirigi-lo?

FM – Não se dirige César, você compartilha com ele, ou você mesmo é dirigido. O eixo do trabalho foi desconstruir imagens, muita coisa no processo de pós-produção. Sobre a imagem do filme, eu estou muito orgulhoso do trabalho de efeitos especiais realizado na O2, no Brasil, efeitos 3D, 300 ao todo, nunca antes feitos, mas agora sabemos como fazer.

KMF – Sobre essa questão, seu filme traz para o espectador brasileiro um sentido de imagem incomum dentro de uma idéia de cinema nacional, uma vez que vemos São Paulo, cidade tão fotografada dentro do próprio Brasil, travestida com tintas de um cinema fantástico. Algo comum para os americanos, mas não para o brasileiro.

FM – É verdade.

KMF – De qualquer forma, para um livro que se passa em "qualquer lugar", São Paulo mostra-se muito claramente reconhecível como São Paulo, com imagens do Minhocão, particularmente, bem presentes.

FM – Eu tentei resistir, filmamos bem mais do que está no filme. Pensei que para os brasileiros, paulistanos particularmente, seria um clichê bem grande. Por outro lado, pensei que, por ser uma produção internacional que será vista em todo o mundo, o clichê vale para apenas 5% desse público, o brasileiro.

Perigo em Bangkok



Nicolas Cage e peruca estranha em duas cenas do filme.

Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Às vezes a gente fica observando decisões feitas por alguns artistas, algumas delas de botar a mão na cabeça. Um deles é o ator Nicolas Cage, que saiu dos filmes pequenos e autorais nos anos 80 e 90 (Arizona Nunca Mais, dos Irmãos Coen, Coração Selvagem, de David Lynch) para ganhar um Oscar de ator por outro filme de pequeno porte, Despedida em Las Vegas (1996). Depois disso, virou astro em filmes caros tipo The Rock e 8mm. Recentemente, fez o Motoqueiro Fantasma e O Homem de Palha, dois filmes bem ruins, e agora aparece com um cabelo estranho em Perigo em Bangkok (Bangkok Dangerous, EUA/Tailândia, 2008), dos irmãos Pang, diretores chineses.

Esse thriller escuro não é tão ruim quanto a crítica americana nos levou a acreditar que seria (estreou lá há uma semana), embora contribua pouco para elevar a qualidade dos filmes recentes que têm como personagens principais assassinos profissionais (Hitman, O Procurado). O filme também chama a atenção por tratar-se de uma produção internacional feita na Tailândia por uma equipe tailandesa, curiosidade na mesma semana que vê o também multinacional Ensaio Sobre a Cegueira chegar às salas.

Perigo em Bangkok é uma refilmagem de um thriller de mesmo título dirigido pelos mesmos irmãos Pang em 1999, muito visto no mercado asiático. É mais um desses filmes onde o personagem principal não ri, mata laconicamente e movimenta-se na calada da noite como um ninja. E, claro, esse vistoso corte de Barbie morena assanhada, o mais estranho mini-carpete visto desde o gerente de boate de Tom Hanks em Da Vinci Code (o de Barden em No Country For Old Men não conta, pois de propósito).

Uma narração dele próprio explica seu modus operandi, composto por regras como associar-se a algum apoio local que seja descartável (pequenos criminosos, viciados em heroína), nunca deixar pistas (não parece conhecer investigação forense) e dar o fora o mais rápido possível. Cage murmura no microfone algo sobre o trabalho oferecer boa grana e levá-lo não importa aonde, o que termina soando como um depoimento sincero do próprio ator sobre suas escolhas recentes no cinema.

Esse matador chega a Bangkok para executar serviços, todos seguidos de gordos depósitos na sua conta corrente. Associa-se a um pequeno marginal chamado Kong, portador de maletas que trazem armas especiais para cada serviço e informações sobre a próxima vítima. Tudo isso você já viu antes, e todos nós entendemos que o sisudo matador irá mudar da água para o vinho, não tanto porque sentimos a mudança, mas pelo fato de filmes do tipo gostarem desse tipo de coisa.

Uma guinada interessante é um inesperado fator Luzes da Cidade, onde nosso amigo interessa-se por uma surda-muda, funcionária de uma farmácia. É ela quem irá dar um pouco de delicadeza a essa alma solitária. Uma cena curiosa onde os dois vão jantar de repente parece fazer parte de um outro filme, talvez uma comédia romântica, claramente a melhor cena do todo. O tema principal é comida picante.

No mais, é tudo muito escuro e rotineiro. A mudança de caráter é absurda, o cabelo permanece esquisito, as mortes dos vilões sem graça (vilão descartável No. 7 leva tiro e cai), mas, mesmo assim, permanece no filme a impressão de que estamos vendo um thriller estranho, com alguma personalidade, marcada por um final não muito hollywoodiano que deixa a sensação de ser um produto algo de alienígena na sua previsbilidade.

Filme visto no UCI Ribeiro Boa Viagem, Recife, Setembro 2008

O Mistério do Samba



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Lançado há duas semanas no Rio de Janeiro e em outras capitais, alguns críticos afirmaram que O Mistério do Samba seria a resposta brasileira a Buena Vista Social Club (1999), o filme do alemão Wim Wenders que explorou factual e comercialmente o tesouro musical de uma certa geração de artistas cubanos. Curioso que, de fato, há semelhanças. O documentário de Carol Jabor e Lula Buarque de Holanda também nos dá um guia na pessoa da estrela brasileira da MPB Marisa Monte, que, como o músico americano Ry Cooder no filme de Wenders, nos apresenta nomes importantes da chamada Velha Guarda da Portela. O resultado é agradável, e o som do filme excelente.

O Mistério do Samba, composto por imagens cristalinas em película e também material mais cru em vídeo e de arquivo, é claramente o fruto de anos de trabalho. A relação de Monte com o material funde-se com o seu próprio esforço de pesquisa, utilizado ao longo da sua trajetória e, em especial, no seu álbum de 1998, Tudo Azul. Ver Monte abrindo uma fita cassette cheia de papéizinhos que sugerem segredos da MPB ainda desconhecidos revela o tipo de riqueza de artistas - em grande parte, negros - que compuseram músicas que o filme celebra, e que já fazem parte da trajetória desta cantora branca, popular e brasileira.

A presença de Monte, aliás, aparenta certo desconforto inicialmente. De óculos escuros e um tanto ciente demais da presença da câmera, misto incerto de entrevistadora, apresentadora e/ou admiradora, ela ameaça transformar-se no elefante na sala de estar do filme. Essa sensação diminui frequentemente, mas pode ser exemplificada numa sequência talvez questionável rumo ao final, onde ela não apenas junta-se a toda a velha guarda, mas parece ficar com o melhor e mais potente microfone, sua voz soberana sobre a de todas as outras estrelas. Se por um lado, é selada a união do clássico com o moderno, por outro nossa guia vira rainha nu lugar já repleto de realeza.

O filme cresce quando são os personagens descobertos que ganham voz, seja falada ou, especialmente, cantada. Zeca Pagodinho e Paulinho da Viola falam, esse último responsável pelo LP de 1970 Portela Passado de Glória; mas são os compositores desconhecidos, já idosos, homens e mulheres, que viveram suas vidas como artistas iluminados na Portela, mas que na rotina diária ganharam a vida como pintores, operários da construção civil e especialistas em refrigeração.

O filme alinha-se com pelo menos três outros, todos 'samba movies' cariocas, frutos de cineastas jovens, realizados ao longo dos últimos dez anos: os curtas Nelson Sargento (1998), de Estevão Ciavatta, Coruja (2001), de Márcia Derraik e Simplício Neto, sobre os colaboradores de Bezerra da Silva, e o longa Cartola (2007), dos pernambucanos Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Outros dois curtas vêm à mente: Meu Cumpade Zé Ketty, de Nelson Pereira dos Santos, e Batuque da Cozinha, de Ana Azevedo.

A percepção de que boa parte desses artistas teve vida operária, distante dos royalties e do luxos das gravadoras, parece unir esses filmes, em especial os colaboradores de Bezerra da Silva que Coruja revelou com enorme carinho. Em O Mistério do Samba, um sentido bonito de passado domina o filme, pois todos lembram e lembram, aspecto de um documentário que, de certa forma, é também sobre ser velho e viver com as glórias do passado. O papel das mulheres (tias Doca, Surica e Eunice) ganha interessante observação, numa época em que elas tinham a permissão de, basicamente, cozinhar e serem musas.

Bom falar um pouco sobre som. Nessa era do 'som digital' vendido como acessório de ostentação do cinema, ouvir filmes raramente resulta em prazer, ou cafuné para a cabeça e as orelhas. Com a tecnologia e o já conhecido som de seis canais (o já famoso 5.1), os filmes muitas vezes soam como demonstrações de resistência para tímpanos e alto falantes. No entanto, é bom poder ouvir um filme brasileiro pequeno como esse onde a incrível qualidade de gravação e mixagem sonora não está a serviço de explosões, mas de uma música que faz a sala vibrar com a força concreta do surdo, e que vozes, cuícas e cavaquinhos lhe cercam de todos os lados numa sinfonia brasileira. E, como o filme em si, tudo flui de maneira tranquila, prosaica.

Filme visto no Cinema da Fundação, Recife, Setembro 2008

Wednesday, September 10, 2008

11/9



The Revolution Will Not Be Televised.



Física, deslocamento e evaporação. Infelizmente, sem legendas em português.


9/11 Conspiracy Theories 'Ridiculous,' Al Qaeda Says

O humor do 11/9 é assunto delicado nos EUA, mas esse é um dos exemplos de humor auto-reflexivo (por americanos) mais inteligentes que eu já vi, ataca diretamente os que acreditam que tudo não passou de uma conspiração do próprio governo Bush. Infelizmente, sem legendas em português.

Monday, September 8, 2008

Vinheta #3 Janela Internacional de Cinema / Fim das Inscrições



E a deadline para as inscrições vai até sexta-feira, 12 de Setembro.

Thursday, September 4, 2008

Para os Jovens Críticos (Pernambuco)


A Janela Internacional de Cinema do Recife promoverá entre 8 e 20 de novembro a Janela Crítica, iniciativa que busca incentivar o pensamento crítico de jovens universitários e cinéfilos pernambucanos.

Para participar, envie um e-mail para press@janeladecinema.com.br com os seguintes dados no corpo do texto:

Nome, idade, cidade (restrito a Pernambuco), universidade, período, línguas que domina, endereço do seu blog – caso possua um - e nomes de três filmes que considera importantes. Em anexo, nos envie uma crítica de 15 linhas sobre um curta-metragem. O prazo para inscrição vai até 30 de outubro.

Os e-mails serão lidos e analisados pelo crítico e jornalista Luiz Joaquim*, que escolherá sete jovens para integrar o Janela Crítica. Luiz, que é jornalista, critico, professor de cinema e coordenador do Cinema da Fundação, será o responsável por ministrar os encontros, introduzindo idéias e conceitos relativos ao universo da crítica cinematográfica.

Além de participar dos encontros, os escolhidos ganham passe livre nas sessões de cinema do festival para produzir críticas que serão veiculadas no site da Janela Internacional de Cinema, diariamente. Também marcarão presença nos debates com os realizadores.

A iniciativa culminará com a formação do júri especial Janela Crítica, elegendo, ao fim do festival, os melhores nas categorias de curtas nacionais e internacionais.

Entrevista Walter Salles & Daniela Thomas



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Com a estréia de Linha de Passe, Walter Salles, 52 anos, mantém-se como o cineasta brasileiro mais influente no país. Filmes seus como Central do Brasil, Abril Despedaçado e Diários de Motocicleta são capazes de atrair uma parcela fiel do público no Brasil, e despertam o mesmo tipo de atenção no exterior, onde sua carreira é reconhecida por festivais como Veneza, Berlim e Cannes. Um dos raros cineastas brasileiros que fala com a propriedade de um cinéfilo crítico e bem informado, Salles não apenas dirige como também catalisa o cinema através da sua produtora, Videofilmes, criada com seu irmão, João Moreira Salles. Os dois devolveram ao veterano Eduardo Coutinho, mestre do doc brasileiro, a capacidade de filmar, e aposta da mesma forma em nomes jovens como o crítico carioca Eduardo Valente, que acaba de finalizar seu primeiro longa, No Meu Lugar.

Em Cannes, Salles apresentou não apenas seu próprio filme, Linha de Passe (Brasil, 2008), como também um outro título na competição que ajudou a produzir, Leonera, do argentino Pablo Trapero. "Tem um movimento de cinema no Brasil chamado Videofilmes", brincou Daniela Thomas, durante esta entrevista feita ainda em Cannes, sua amiga e colaboradora em Linha de Passe.

O filme é o mais recente esforço da parceria afetuosa entre os dois. Fizeram juntos Terra Estrangeira (1995), um dos filmes mais expressivos da retomada da produção brasileira nos anos 90, era pós-Collor (um dos sub-textos do próprio filme). Dirigiram também O Primeiro Dia (1999), longa feito originalmente para um projeto intitulado 2000 Visto Por... da rede de TV franco-alemã Arte, e ainda dois curtas: o ótimo comentário sobre identidade cultural e mercado Castanha e Cajú Contra o Encouraçado Titanic (2002), e Longe do 16ème (para o longa em episódios Paris Eu Te Amo), tocante retrato materno cujo eixo temático é a imigração na Europa.

Em Linha de Passe (ganhou o prêmio de Melhor Atriz para Sandra Corveloni), Salles e Thomas trazem um retrato da vida na periferia paulistana ao enfocar uma família formada por uma mãe forte e sozinha, à frente dos seus quatro filhos.

Kleber Mendonça Filho – Vocês tiveram acesso a todo um grupo de jovens atores na realização desse filme.

Walter Salles – Eu fiquei muito impressionado com a quantidade de jovens talentosos que ainda não tiveram uma chance. Para cada personagem, tínhamos duas ou três ótimas opções. Quando cinema repete sempre os mesmos rostos, perde-se a oportunidade de explorar a diversidade que existe hoje no Brasil. E eu quero destacar o trabalho da preparadora de elenco, Fátima Toledo, que unificou o elenco durante quatro meses e os transformou numa família. O resultado disso é que, mesmo andando na rua, aqui, eles parecem uma família. Vinícius (Oliveira), dez anos depois, me impressiona por trabalhar com dois chips, um com sotaque paulistano (para o filme) e o outro, o carioca, que é o dele. Ator é uma coisa inexplicável.

KMF – E Sandra, no papel da mãe? Como chegaram a ela?

Daniela Thomas – Ela trabalhava com o grupo Tapa e estreou uma peça há pouco como diretora, de Pirandello. Os testes foram feitos pela Fátima Toledo.

KMF – A visão que vocês passam de São Paulo impressiona, vocês acham que ela bate de maneira diferente para o realizador não-paulistano, como vocês dois cariocas?

DT – Quando nos juntamos em 2003 para trabalhar no roteiro, eu e George Moura, que é pernambucano e mora no Rio, fizemos m primeiro mapeamento de "onde essa família moraria?". Foi aí que descobrimos Cidade Líder, e deu-se uma combinação do nome com o lugar, esse eufemismo aplicado num bairro sem fim e sem horizonte chamado Cidade Líder. Foi nessa primeira ida que encontramos lugares que ficaram até o fim, como aquele conjunto habitacional onde Bianca, a namorada do Denis, o campinho de Arandicaduva. Fizemos a cidade de cabo a rabo.

WS – Conhecemos todos os estádios de futebol.

DT – Era muito importante fotografar a cidade dessa maneira. Não seria nunca um filme de favela.

WS – Também não é um filme de Avenida Paulista. Tem uma afirmação de Fernando Pessoa que diz "você só conhece uma cidade quando se perde nela", e São Paulo é uma cidade que te dá essa liberdade de se perder. Tantas vezes que falamos para as pessoas sobre onde estávamos filmando, e elas não sabiam onde fica Cidade Líder.

KMF – Aspecto muito comentado do filme é a câmera nas ruas de São Paulo, especialmente no personagem do motoboy.

WS – Nessas cenas, era importante que a câmera pudesse expressar o ponto de vista do personagem. A câmera, na verdade, está a serviço de cada personagem. Testamos várias possibilidades, uma delas Mauro Pinheiro, o fotógrafo, com a câmera na mão, tivemos outras soluções mirabolantes, inclusive um negócio que parecia um cabide. Daí que um dos maquinistas, José Gomes, um português com quem trabalhei no Central do Brasil, um gênio das soluções simples, construiu uma traquitana na traseira de uma moto, permitindo que Mauro pudesse pilotar a câmera no bagageiro, a moto sendo guiada por um motoqueiro. Isso aliada a uma câmera muito leve que é a Aaton Minima. Essa câmera foi também muito usada em cenas nas ruas que não entregasse a nossa presença, e que pudéssemos nos integrar à rua.

Kleber Mendonça Filho – Você tem trafegado livremente entre os cinemas do Brasil, América Latina como um todo e Europa. Qual sua percepção hoje dos filmes brasileiros?

Walter Salles – O cinema argentino manteve um foco que, de certa forma, nós perdemos. É uma produção que tem uma latitude relativamente grande e que vai do olhar realista de alguém como Pablo Trapero até um olhar mais impressionista, como é o caso de Lucrecia Martel. E ainda temos um Lisandro Alonso, que faz um cinema mais desdramatizado, mais seco, que captura o momento. Os roteiros de Alonso não têm mais de 20 páginas, e esse último filme dele, Liverpool, é o primeiro caso de ficionalização, primeira vez que ele trabalha com diretor de arte, etc. Esses cineastas, mesmo trabalhando de formas diferentes, eles são muito próximos, eles configuram um movimento. Não há uma quebra aí por parte de um cinema comercial predominante. Isso vem de um trabalho de base feito nas escolas e universidades, há 14 mil estudantes de cinema na Argentina, hoje em dia, e por sorte, eles tem também um grande número de psicanalistas, não dando certo, há uma carreira garantida... Nós no Brasil tínhamos uma unidade que foi perdida pouco a pouco. Esse foco veio do choque gerado pelo governo Collor no sentido do nosso próprio entendimento como nação que leva esse cinema a falar basicamente sobre um tema, que é a busca pela identidade brasileira. Quem somos nós, de onde estamos vindo, e aí temos o filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, o primeiro filme da retomada, entra o pernambucano Baile Perfumado, que também fala disso. Tivemos outros filmes que tentavam responder naquele exato momento a essas questões, como o Terra Estrangeira, que fizemos. Mesmo outros tipos de filmes, comedias que foram feitas, tinham uma ligação com aquilo que estava acontecendo no país, de uma maneira ou de outra. Essa especificidade foi perdida, ao longo do caminho esse cinema que tentava responder às perguntas sobre quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo deu lugar a um cinema menos comprometido e mais comercial. Vale dizer que nada tenho contra o cinema comercial, eu mesmo já fiz filmes comerciais, mas a distancia entre esses dois cinemas tornou-se abissal e ela permanece hoje em dia, abissal. Há um numero de projetos que não respondem mais a essas perguntas, como remakes de comedias chilenas que nenhuma ligação tem com as questões urgentes do país. Dito isso, é preciso que seja lembrada uma certa vitalidade do cinema brasileiro. O Festa da Menina Morta, do Matheus Nachtergaele (ed: exibido em Cannes, esse ano), o Feliz Natal, de Selton Mello, um filme cassaveteano que eu espero ver numa série de festivais daqui para frente, com todo o perfil de um cinema autoral que faz todas as perguntas. Na própria Videofilmes, fizemos agora o primeiro longa de Eduardo Valente e vamos agora para o do Eryck Rocha. Enfim, um cinema dos que tentam gerar memória. O cinema no qual eu acredito é aquele que testemunha o nosso tempo.

'Linha de Passe' e os Meninos do Brasil


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Com Linha de Passe (Brasil, 2008), o cinema de Walter Salles fica claramente dividido em dois: o dos filmes que ele dirigiu sozinho, e os que fez em afetuosa parceria com Daniela Thomas. Todo filmado em locações numa São Paulo cidade-monstro, essa crônica sobre uma mãe e seus quatro filhos estreou no último Festival de Cannes, de onde saiu com a Palma de Melhor Atriz para Sandra Corveloni. Linha de Passe, cinema de interesses humanos e sociais, mostra respeito por um grupo de pessoas que, findo o filme, soam tristemente inviabilizadas pela corrida da vida na grande banda pobre da América Latina.

Sobre essa divisão no cinema de Salles, ao lado de Thomas os enfoques sugerem personagens do hoje, da classe média e da classe pobre, imprensados por acontecimentos maiores. A falta de perspectivas da era Collor e a busca pelo externo em Terra Estrangeira (1995), a instabilidade emocional na virada do milênio em Copacabana, de O Primeiro Dia (1999), ser imigrante e pobre num país rico no belo curta Loin du 16ème, de Paris, Eu Te Amo (2005). De alguma forma, tudo soa muito palpável e imediato.

Sozinho, Salles revela-se um explorador de formatos e temáticas, e seus filmes soam mais distantes de nós, de certa forma. Do thriller de corte americano do seu primeiro A Grande Arte (1991) ao moderno melodrama latino de Central do Brasil, ele usou dinheiro estrangeiro em projetos distintos como a investigação de um personagem e de seu continente, filme de prestígio 'world cinema' que é Diários de Motocicleta (2005), e ainda arriscou-se corajosamente num produto hollywoodiano no suspense Água Negra (Dark Water, 2005), não muito bem sucedido. Abril Despedaçado (2002) talvez traduza o tipo de impasse que surge quando se espera muito de um cineasta, artística e contratualmente.

Em Linha de Passe, há uma sensação de alívio pela visão de mundo transmitida, e o nível do filme é alto, especialmente se visto dentro da produção brasileira. Nesse âmbito atual, a visão de mundo tem como norma o fascínio que não sai de moda de os ricos filmarem os muito pobres, perversão capaz de gerar coisas abomináveis como Tropa de Elite ou Estômago. Há pouco mais de um mês, Era Uma Vez (que continua bem nos cinemas, com interesse renovado a cada semana), filme de Breno Silveira, uma obra digna, mostra que a idéia básica de tensão social nos nossos filmes é um moreno da favela apaixonar-se por uma loirinha (da beira-mar) de Ipanema.

Bem mais sóbrio e ciente, Linha de Passe nos dá cinco personagens num tom de investigação auxiliada por um certo pesar. Há um tom talvez claro de que Salles e Thomas querem cuidar dessas pessoas, uma compaixão que ameaça enfraquecer o filme, mas eles bem sabem que mostrá-los contra o ambiente paulistano já seria respeitoso e grande o suficiente.

Será que essa compaixão manifesta-se em momentos como a festa onde Dario (Vinicius de Oliveira, dez anos depois de Central do Brasil) parece estar sendo corrompido com drogas por novas amizades da classe média? Ou pela sensação de teleguia que marca o envolvimento de um dos irmãos com o crime? São aproximações breves e preocupantes de um filme normalmente tão natural, mas que ameaça resvalar para o clichê social.

Em grande parte, no entanto, Salles e Thomas conseguem manter o nível alto. A câmera fluente (Mauro Pinheiro Jr.) traduz a agressividade de São Paulo como pouca coisa vista, especialmente no trânsito e no caos arquitetônico. É muito interessante para o espectador ver a cidade tão realista uma semana antes da estréia de Ensaio Sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles, que dá a São Paulo uma leitura próxima do cinema fantástico.

A figura materna forte (Corveloni), presente com freqüência na filmografia de Walter, tenta administrar seus pintinhos, cada um deles (bela idéia do roteiro de Bráulio Mantovani, Daniela Thomas e George Moura) com pais, biotipos e mesmo cores diferentes, são os meninos-Brasil, a imagem deles é cheia de naturalidade.

Todos procuram se dar bem no susto, seja trabalhando como motoboy, sonhando com o difícil sucesso no futebol, agarrando-se desesperadamente ao modelo nacional de protestantismo ou, no caso do menino-Brasil por excelência, o único negro da casa, querendo saber quem ele é. No processo, desenvolve fascínio por ônibus urbanos. Curioso que dos cinco, três unem-se a elementos que se movimentam constantemente (motos, bolas, ônibus), ficando a mãe atônita e o filho crente os dois praticantes da constância (nunca, aliás, plenamente conquistada).

Acompanhar cada um deles, em núcleos, resulta numa experiência ora instigante, ora problemática. São precisas as observações do filme para com a forma bem brasileira (freyreana, porquê não?) de um racismo 'carinhoso' entre os da mesma família, por exemplo. Essas brincadeiras entre or irmãos, e onde o caçula é a maior vítima, nos dizem algumas verdades sobre a cultura brasileira, e são ricas.

Por outro lado, a proposta estabelece um corta-corta entre cada núcleo, algo estabelecido já na abertura de ritmos urbanos e futebolísticos que Linha de Passe segue à risca como projeto arquitetônico durante toda a projeção. Isso torna-se previsível e mesmo manipulador, como se alguém estivesse a mudar de canal sempre. Cinema é manipulação, mas apenas algumas soam mais livres do que outras.

A conclusão, em especial, sugere um virtuosismo de montagem que, se olharmos com atenção, não parece casar com o que de fato se passa na tela, uma vez que desdobramentos de cada personagem resultam sóbrios e até mesmo discretamente pessimistas. A sensação de organização milimétrica de destinos fotogênicos (o chute que irá decidir toda uma vida, um feito e tanto nas ruas, uma imagem místico-religiosa de purificação, a redenção do arrependimento...) trai um filme que enfoca vidas que, como tantas, entre ricos e pobres, encontram-se em constante desordem. Além de Corveloni, os meninos João Baldasserini, Vinícius, José Geraldo Rodrigues e Kaique Jesus Santos (o caçula Reginaldo) são incentivados pela escola Fátima Toledo com resultados excelentes.

Filme visto no Lumiere, Cannes, Maio 2008

Hellboy II

Tem ou não tem cara de uma saudosa matinê?


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Cineasta curioso esse mexicano Guillermo del Toro. É claramente o caso de uma criança à solta na enorme loja de doces que o cinema pode ser, e sua gula por criaturas fantasiosas é intrigante. O chamado "cinema do real" não parece lhe tocar, a constância da fantasia em filmes seus como Cronos (1993), o muito bem sucedido Labirinto do Fauno (2006) e esse Hellboy II – O Exército Dourado (Hellboy II – The Golden Army, EUA, 2008), apontam para isso.

A continuação do primeiro Hellboy, que ele também dirigiu, confirma essa intimidade com a fantasia que já aproximou Del Toro de outro lunático talentoso, o neo-zelandês Peter Jackson (de O Senhor dos Anéis). Os dois embarcam atualmente em mais uma aventura baseada nos escritos de JRR Tolkien, O Hobit (em pré-produção), que deverão dirigir juntos.

Estofado de efeitos especiais a torto e à direita, Hellboy revela-se incomum num mercado tão amostrado, já que os efeitos funcionam não para chamar a atenção, mas como uma escrita fluente. Esse faz de conta nunca realmente perde o interesse, há algo de uma matinê antiga, ou talvez uma série de TV saudosa, e isso é um elogio.

Hellboy (Ron Perlman), a estranha criatura humanóide que é demônio, tem pele vermelha, chifres cortados, e ainda uma mão-marreta, é construída com simpatia e naturalidade, e desta vez ele será até pai. Bacana também a abertura, onde o vemos como uma criança faminta por ouvir histórias fantásticas.

Trabalhando para um braço secreto do governo que lembra a sede de Homens de Preto, Hellboy tem a ajuda da sua companheira Liz (Selma Blair), que parece integrante desgarrada de O Quarteto Fantástico ou X-Men (ela pega fogo quando quer), e do colaborador homem-peixe Abe Sapien (Doug Jones), que lembra uma versão com guelras (e hetero) de C3P0, de Guerra Nas Estrelas. Há ainda um engraçado alemão afetado com uniforme químico retrô-fascista estilo anos 30 que já virou um tipo de marca registrada do design que Del Toro parece adorar, vide o primeiro Hellboy e também O Labirinto do Fauno.

Hellboy e seus amigos serão obrigados a enfrentar um derrame de criaturas fantásticas que saíram de um outro plano para chegar no nosso. Já vimos mais ou menos tudo isso antes, e essa de uma outra dimensão invadir a nossa realidade é velha, de Bandidos do Tempo (1981) a Labirinto (1986) e mesmo O Nevoeiro, lançado semana passada.

No entanto, aqui isso não importa. Del Toro faz tudo com graça e humor. Elfos, trolls e pequenas criaturas aladas não são apenas efeitos especiais, mas elementos significativos. No submundo fantástico de Nova York proposto pelo filme, há espaço para a dor de cotovelo ao som de Barry Manilow (Can't Smile Without You) e, no melhor riso do filme, um bebê gracinha é, na verdade, um tumor agigantado no corpo de um troll.

Hellboy parece ganhar menos tempo no seu próprio filme, embora o personagem seja tão divertido, um demônio simpático, vaidoso, defensor dos gatos e bebês, sem paciência para gente ruim e sempre pronto para mesclar dureza com delicadeza. O perfeito personagem infantil, ético e calculadamente assustador, para terceiros. Divertido.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, Setembro 2008

A Banda



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O muito simpático A Banda (Bikur Ha-Tizmoret, Israel, 2007), filme de Eran Kolirin, chama a atenção por propor uma interação não-militar, ou explosiva, entre judeus e árabes, numa narrativa que demonstra a curiosidade, de ambas as partes, para elucidar não tanto questões políticas e históricas, mas aspectos humanos como "quem é você e o que estás fazendo aqui?". Se a língua que os une no filme é quase sempre o inglês, Kolirin parece utilizar os créditos finais com a equipe técnica como delicada mensagem: os créditos passam em árabe e hebreu, simultaneamente.

Vale esclarecer que, de fato, ao citar o binômio indissociável "judeus e árabes", o filme não estará falando sobre Israel e Palestina, mas sobre um grupo de músicos egípcios - a Banda Cerimonial da Polícia de Alexandria - convidada para tocar no interior de Israel. Com uniforme azul piscina, chapéus e cada músico carregando curiosas malas que revelam seus instrumentos, eles mostram-se um grupo difícil de não ser enxergado à distância, principalmente depois de tomarem um ônibus errado e irem parar no meio do nada.

Essa narrativa tem claramente o tom, pejorativo talvez, de um inofensivo "world movie", o equivalente cinematográfico da world music. De qualquer forma, revela-se melhor do que isso, e ergue-se com discreta naturalidade. Os conflitos, um a um, vão se aproximando da verdade em pequenos sopros de humor que o espectador deverá, sozinho, captar, sem o auxílio de música ou claque de riso.

Alguns dos músicos são delicadamente desenvolvidos com personalidades bem sugeridas (outros permanecem figurantes), com destaque para o enorme sucesso junto às mulheres, Khaled (Saleh Bakri), que se transforma num professor de naturalidade e delicadeza com o sexo oposto para um angustiado nativo.

Liderados pelo conservador Tawfiq Zacharaya (Sasson Gabai), o grupo ganha interlocução com a interessante dona de uma lanchonete, Dina (Ronit Elkabetz), questionadora, curiosa sobre esse grupo (em particular, Tawfiq), e que parte para não só dar-lhes abrigo na sua casa, mas também, e esta é a melhor coisa do filme, mostrar-lhe um pouco da vida normal num lugar distante que é o pequeno mundo onde vive. Na verdade, tem-se a sensação de que a visita inesperada desta banda foi a melhor coisa que aconteceu no lugarejo em tempos recentes.

A Banda traduz muito bem a estranhíssima sensação de estar num lugar onde você, na verdade, não deveria estar. Estadias acidentais em certas viagens, no fim das contas, podem ser experiências ricas, pois a interação vem da naturalidade instintiva. Essa crônica capta bem o clima de uma viagem, esse deslocamento físico para um outro lugar que, frequentemente, te deixa mudado ao final, ou pelo menos capaz de enxergar novas possibilidades.

Filme visto no Jean Eustache, Bordeaux, França, Janeiro 2008