Thursday, September 25, 2008

A Última Amante



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Os filmes da cineasta francesa Catherine Breillat são capazes de despertar discussões acirradas no pós-sessão, seja pela voz psico-internalizada do sexo, ou pelo uso incomum de uma pedra ou de um cabo de enxada num outro momento mais duro. Filmes seus como Romance (1999), Para Minha Irmã (Á Ma Soeur, 2001) ou Anatomia do Inferno (Anatomie de l'enfer, 2004, inédito no Brasil) passam como versões radicais do modelo francês de verbalizar a sensualidade, despertando a repulsa e o sono em muitos, ou o interesse em outros. A Última Amante (Une Vieille Maîtresse, França, 2007) representa o toque Breillat numa embalagem mais acessível do que a norma. O filme é não apenas inteligente e humano, mas também divertido.

Exibido em competição ano passado no Festival de Cannes, A Última Amante é uma adaptação literária de um romance de 1851 escrito por Jules Barbey d'Aurevilly. Investiga com enorme efeito o mito da amante, « a outra », a terceira peça (in)desejável de um casal, prazer para uma das partes (nesse caso, o homem), pesadelo para a sua mulher escolhida perante a sociedade. Essa semana, aliás, foi noticiado que uma amante no centro-oeste terá de indenizar uma esposa no valor de 31 mil reais não tanto por adultério, mas por perseguir obsessivamente a mulher oficial, ao ponto de ameaçar sua relação com os filhos e levá-la a perder o emprego.

A amante no filme de Breillat, a franco-espanhola Vellini (Asia Argento), não sugere ações do tipo, muito embora ela tenha qualidades particulares. Sabe-se que é filha de uma nobre mulher francesa com um toreador, relação ilícita que definiu sua posição na sociedade francesa (o filme se passa em 1835).

Seu caso de amor com o muito bem nascido Rino de Marigny (Fu'ad Ait Aatou) já tem mais de dez anos e é público e notório. Essa relação será testada com o anúncio de que Rino irá casar-se com a virtuosa boneca de porcelana Hermangarde (Roxane Mesquida), da alta roda.

Como em outras obras literárias do mesmo século (Les Liaisons Dangereuses/As Ligações Perigosas, de Choderlos de Laclos, ou The Age of Innocence/A Época da Inocência, de Edith Wharton), bem adaptadas para o cinema por gente como Stephen Frears e Martin Scorsese, temos dois cínicos manipuladores: o visconde de Prony (Michael Lonsdale, que presença!) e a condessa d'Artelles (Yolande Moureau), que discutem, tomando chá e comendo bem, sobre os impulsos romântico-carnais das peças de tabuleiro que manipulam.

Informada por Prony sobre os planos de casamento do seu amante, Vellini não mostra-se vencida, pois ninguém, segundo ela, tem idéia da força que existe entre ela e Rino. Mais tarde, ele chega para uma despedida apaixonada, a conclusão de um romance libertino e instável, mas que sempre resultou nos dois juntos, na cama.

O filme é inegavelmente de Breillat, que o realizou como prova da sua força pessoal, pois recuperava-se, aos 56 anos, de um derrame que a deixou parcialmente paralisada, meses antes de filmar. O cinema francês de época, sem grandes orçamentos, traz uma elegância no filmar que chama a atenção.

A sorte focada de Breillat, no entanto, está nos seus atores, que encarnam humana e visualmente os arquétipos clássicos de quem representam. Rino parece representar à perfeição o cavalheiro que simboliza o desejo feminino projetado de um ser masculino. Sua noiva é a perfeição virginal e nobre.

No entanto, é Ásia Argento que sai com o filme embaixo do braço. Essa atriz interessantíssima tem algo de inegavelmente punk, aspecto que tem sido utilizado com paixão por outros diretores em filmes ambientados hoje em dia (Terra dos Mortos, Transilvânia), mas que parece criar uma tensão muito interessante num filme de época como esse, e isso vai até mesmo para a sua tatuagem visível que Breillat parece ter deixado de pensar em maquiar.

Sua beleza que muitos confundem com feiúra tem algo de desafiador, seja de charuto na boca ou lambendo a ferida do seu amado. A composição de Argento para Vellini é talvez seu melhor papel no cinema, até agora.

Filme visto no Estação Botafogo 1, Rio, Setembro 2007

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