Sunday, September 21, 2008

Estômago


Raimundo Nonato descobre a existência do vidro, em Estômago.


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Saiu quarta-feira o resultado do edital do BNDeS. O título de um dos projetos premiados me chamou a atenção: 5 Vezes Favela – Agora Por Eles Mesmos, de Carlos Diegues, o "agora por eles mesmos" o fator curioso. Informa que o 5 Vezes Favela dos anos 60, filme patrono do fascínio do cine brasileiro com o universo da pobreza, terá, desta vez, o olhar do favelado, ainda que o projeto seja assinado por Diegues. De alguma forma, isso me leva a Estômago (Brasil, 2007), filme que reflete questões de cine-representação em imagens que vêm de cima para baixo (da pior forma possível). O elemento em questão é a figura do "nordestino".

Essa produção do Paraná tem a carpintaria relativamente segura do seu diretor, o curitibano Marcos Jorge, que usa como personagem principal Raimundo Nonato (João Miguel, de Cinema Aspirinas e Urubus), mais uma variação borrada do Didi Mocó/João Grilo reconfigurado para um ambiente urbano contemporâneo no sul do Brasil. O espectador poderá perceber para onde o filme quer ir a partir do exato momento em que Nonato desce do ônibus, elemento simbólico da cultura brasileira, ligação entre o norte e o sul.

Nonato, que Marcos Jorge compõe como uma 'pessoa simples' (fala 'engraçado', não sabe o que é gorgonzola) tem talento para a gastronomia. Sempre de cabeça baixa e grato por estar respirando, se deixa explorar por Zulmiro (Zeca Cenovicz), o dono de um bar, que exige longas horas de trabalho escravo. Dá a Nonato não um salário, mas um lugar para dormir e uma série de pequenas humilhações inspiradas pelo preconceito sul>norte.

Feliz com o pouco que tem, Raimundo Nonato revela-se ao preparar coxinhas, um sucesso que irá atrair a prostituta Íria (Fabiula Nascimento) e o restaurateur Giovanni (Carlo Briani). Esse outro escroque assume a tarefa de domesticar esse bom selvagem baiano/paraíba que dialoga tão bem com estômagos alheios. O tom de comédia italiana - que alguns colegas excêntricos confundiram com algo remotamente associado a Fellini - é aplicado ao todo via música, com resultados ainda mais sinistros.

Na verdade, a coisa piora. Paralelamente, vemos Nonato cumprindo pena na prisão. Algo de ruim aconteceu na sua trajetória de cozinheiro, talvez no seu relacionamento com Íria, ou com Giovanni. O roteiro de Jorge, Cláudia da Natividade, Fabrizio Donvito e Lusa Silvestre tem a funcionalidade e graça de um Uno Mille, mantendo as pontas amarradas até a grande revelação final, uma decepção, aliás, pois desde bem cedo que o espectador sabe exatamente para aonde estamos indo, canibalismo incluído.

Na prisão, Nonato também sobe hierarquicamente ao agradar a barriga do chefe do tráfico Bujiú (Babu Santana), e logo nosso homem simples irá dar a volta por cima no único espaço que um filme com olhar social tão raquítico poderia permitir para um Raimundo: nas cavernas sanitárias de qualquer sociedade que é o sistema penitenciário. É praticamente uma volta por baixo. Ajuda saber que Nonato revela-se ainda um assassino comedor de carne humana, prova do quão selvagem ele sempre foi, e sempre, ao que parece, será.

As formas de representação social são o grande tema do cinema brasileiro hoje, e um filme como Estômago revela aspectos importantes. Cineastas continuam filmando estereótipos sociais que só existem em clichês de larga grossura, o que explica olhares enviesados como os de Domésticas (1999), de Fernando Meirelles e Nando Olival, Tropa de Elite (2007), de José Padilha, ou este Estômago. Essencialmente, são realizadores que trabalham intimamente com universos que eles não conhecem. Os resultados são bonecos grotescos confundidos com personagens.

Ainda sobre representação, dois atores no filme ilustram isso. Se o excelente João Miguel ainda consegue humanizar Nonato com os olhos via contrabando, e sob os maus tratos imperativos do roteiro, é Santana via seu traficante encarcerado que ilustra esse olhar externo paralisante, de cima para baixo. Esse ator competente parece preso no inferno astral do mesmo papel sempre (criminoso, traficante de cara feia...) em praticamente todos os seus filmes, de Cidade de Deus a Uma Onda no Ar, Quase Dois Irmãos e Maré – Nossa História de Amor. Será irônico se Santana repetir, mais uma vez, a imagem imposta do mesmo bandido no 5 Vezes Favela – Agora Por Eles Mesmos, de Carlos Diegues.

Filme visto no Palácio 1, Festival do Rio, setembro 2007

No comments: