Friday, August 15, 2008

O novo Domingos



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


E na noite de quinta-feira, chegou em Gramado um dos autores mais peculiares do cinema brasileiro, o carioca com afetuosa voz de uísque Domingos Oliveira. Mostrou seu novo filme, Juventude, apresentado no Festival de Gramado na mostra competitiva. Subiu ao palco com Paulo José, seu parceiro de mais de 40 anos, fizeram juntos Todas as Mulheres do Mundo (1966), e voltam a trabalhar nessa espécie de réquiem de homens maduros que olham para a vida com compreensão e bom humor. Já na apresentação, os dois deixaram claro que trata-se de uma obra pessoal que se debruça sobre a vida, feita com poucos recursos e grande afeição.

Um filme como Juventude revela-se uma curiosidade na atual produção nacional. Rodado com câmeras digitais (e projetado em digital) que exclamam a cada imagem o aspecto “VIDEO!!”, o filme tem o look mais radical dos filmes exibidos até agora em Gramado dessa safra, numa seleção marcada pela imagem digital de alta definição (Vingança, de Paulo Pons, Pachamama, de Eryk Rocha, Nome Próprio, de Murilo Salles). O filme de Oliveira contenta-se em manter um look “baixa resolução” que gerou comentários negativos de membros da platéia, finda a sessão. Esteticamente, esse visual, que é, certamente, ‘feio’, agrega algo de significativo para um autor brasileiro que não pára quieto, filmando o que quer da maneira que quer.

De qualquer forma, a câmera circula pelo filme nas mãos de Dib Lutfi, o lendário cameraman do cinema brasileiro que filmou para Glauber Rocha (Terra em Transe) e Nelson Pereira dos Santos (Como Era Gostoso o Meu Francês). A presença de Lutfi fecha os personagens num quarteto, uma vez que na frente da câmera são três os protagonistas.

Oliveira interpreta, mais uma vez, ele mesmo, o cineasta/teatrólogo bon vivant já chegando aos 70, admirador das mulheres, cardíaco, fumante e sempre com uísque ou bebidas de teor alcoólico na mão. Ele visita um grande amigo, judeu riquíssimo (Paulo José) que mora num palacete em Petrópolis, Rio de Janeiro. Chega um terceiro amigo, cardiologista (Aderbal Freire Filho) um pouco mais jovem.

E os três passam a noite numa deliciosa conversa de bêbado, três homens vivendo os proverbiais ‘outonos de suas vidas’ num lero que, quase sempre, corre fluente como água. A adesão ao filme pelo espectador deverá vir da capacidade de cada um de embarcar nessa noite de lembranças e revelações de homens que já foram viris, e que hoje entendem a passagem do tempo sem grandes arrependimentos ou rios de lamúrias.

Oliveira filma como se estivesse à frente de um delicioso vídeo caseiro feito com seus amigos, e o filme traz um somatório de verdades pessoais que dão ao filme um aspecto de autenticidade, mesmo que o tom geral lembre muito As Invasões Bárbaras, de Denys Arcand, onde os últimos dias de um personagem tomam o rumo do humor e do sarcasmo para com a vida. Não é exatamente um filme revolucionário, mas sua coerência com a obra do autor Oliveira e com um lado desesperadamente otimista da vida revelam-se pontos fortes.

Com Juventude, Oliveira oferece um filme diferente de qualquer outro na produção brasileira. Radicalmente pessoal no fazer e também no falar, funciona tanto pelas habituais tiradas faladas por Oliveira com seu humor romântico, e ao mesmo tempo ligeiramente atônito, como pela habilidade de se comunicar com o público. Foi claramente o filme mais bem recebido pela platéia, gerando inclusive uma ovação para Oliveira e José ao final da sessão.

Wednesday, August 13, 2008

Gramado 2


Em Netto e o Domador de Cavalos, Werner como o alter ego da filmografia gaúcha. Tarcísio Meira Filho faz um índio guarani.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A noite de terça-feira foi um tanto dura na mostra competitiva de longas, com destaque para mais um exemplar de um certo cinema gaúcho muito dedicado ao resgate de folguedos e folclores dos pampas. Abrindo com o documentário de Cabo Verde, sobre Cabo Verde, Mindelo – Atrás de Horizonte, filme caleidoscópio do cineasta Alexis Tsafas, a noite trouxe na seqüência o drama de época com tinta de western sulista Neto e o Domador de Cavalos, de Tabajara Ruas. Entre um filme e outro, o ator Walmor Chagas recebeu a principal homenagem do Festival de Gramado esse ano.

No palco do Palácio dos Festivais para receber o prêmio Oscarito, Chagas, gaúcho que foi para São Paulo aos 22 anos investir na profissão de ator, é um dos rostos mais conhecidos da dramaturgia brasileira, tanto no teatro, cinema e TV. No cinema, estreou no excelente São Pulo S.A (1965), filme de Luis Sérgio Person. Esteve também em Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, para citar dois dos seus papeis memoráveis. Num discurso conciso, Chagas disse que “é uma situação muito estranha e emocionante. A sensação de ter apostado em alguma coisa que deu certo, trabalhar em cinema”.

No primeiro filme da noite, Mindelo – Atrás de Horizonte, apresentado em vídeo, o espectador embarca numa espécie de mostruário de imagens e sons de Cabo Verde, a fascinante ilha no meio do Atlântico, terra de Cesaria Évora, e onde vemos um mundo muito familiar em tratando-se da nossa própria imagem do Brasil, acrescida ainda de toques claramente europeus (via Portugal) e também africanos.

Sem entrevistas e obedecendo apenas ao que mais parece a lógica do vento, Mindelo – Atrás de Horizonte passa à nossa frente sem ritmo ou senso de estrutura, problemas que são momentaneamente compensados pela paixão dos realizadores por aquele lugar. Isso não redime o filme de um certo tom disperso.

Mindelo – Atrás de Horizonte passa na parte dedicada a filmes latinos, e nos faz pensar na abundância de filmes mais expressivos do que esse que integram a safra atual de cinema no mundo, apresentada em festivais internacionais, Cannes vem à mente. Poderiam ter em Gramado expressiva porta de entrada no Brasil. Curiosamente, não estão tendo.

OS FILMES GAÚCHOS - Algumas questões sobre a sempre infindável discussão em torno das escolhas de um festival no sentido de uma seleção, ou curadoria, foi estimulada pela projeção de Neto e o Domador de Cavalos. A chave para entender a presença do filme na seleção 2008 é relativamente simples: o filme representa a produção gaúcha, em grande parte estimulada pelo Banco do Estado do Rio Grande do Sul – Banrisul, o principal patrocinador do Festival de Gramado, ou no liguajar de captação usado pela organização via vinhetas e microfone, o "patrocinador master", o que lembra o quarto de luxo num hotel.

No início de cada sessão, um spot publicitário presta contas de duas dezenas de filmes incentivados ao longo dos últimos 13 anos pelo banco, e Neto e o Domador de Cavalos é mais um para a lista.

Portanto, parte da função de um festival é divulgar a produção regional, muito embora isso não esteja direta ou necessariamente relacionado a questões artísticas. No caso do filme de Tabajara Ruas, que em 2002 lançou Neto Perde a Sua Alma, um filme melhor, mas outra aventura histórica pelos pampas, o novo título dá continuidade à sensação de espanto em tratando-se do cinema que é feito no Rio Grande do Sul.

A própria publicidade exibida diariamente - com exceções claras dos filmes de Jorge Furtado, o Wood & Stock de Otto Guerra e o doc O Cárcere e a Rua, de Liliana Sulzbach - passa como uma espécie de mausoléu que é o moderno cinema gaúcho, uma produção regional peculiar que chama a atenção por, de fato, existir, tanto financeiramente como pelo seu isolamento.

É composta por filmes que não acontecem artística ou comercialmente. E essa produção acontece de forma praticamente separatista no sentido geográfico e gaúcho do termo, pois é incentivada, em grande parte, por dinheiro local, como o muito divulgado em Gramado apoio do Banrisul.

Neto e o Domador de Cavalos deverá juntar-se à longa lista de filmes (Nossa Senhora de Caravaggio, de Fábio Barreto, Lua de Outubro e Concerto Campestre, de Henrique de Freitas, Noite de São João, de Sérgio Silva...) que tiveram dificuldade de encontrar espaço longe das telas gaúchas, e que integram um fenômeno que, do ponto de vista estético, do cinema, deve ser estudado com mais afinco.

No novo filme, Ruas nos apresenta uma estética que lembra Escrava Isaura sem o benefício da tela da TV. O aspecto empalhado do filme encontra eco nesse cinema gaúcho apaixonado pela história da região, um cinema capaz de convencer Tarcísio Meira Filho a interpretar um índio guarani e onde o ator local (com reconhecimento nacional) Werner Schunnemann é uma espécie de alter-ego dessa cinematografia.

Ele interpreta Netto, envolvido na história do “negrinho do pastoreio”, adolescente escravo de tintas messiânicas que representa a luta contra a crueldade opressora e escravagista da região, no século 19. Se os valores da produção são escassos, é o cinema em si que choca.

Mais uma vez, volta a noção de cinema radiofônico, num filme que poderia passar muito bem numa transmissão FM. Há uma narração para cegos realmente impressionante no seu didatismo e intromissão, com informações tipo "o enterro foi no pôr do sol...", e corta para um alaranjado ... er... pôr do sol. Um espelho é meticulosamente quebrado em câmera lenta e um segundo depois, ouvimos um personagem exclamando "sete anos de azar!".

Os atores são deixados ao relento pelos enquadramentos fechados, ou pior, abertos, onde um grupo de personagens sugere adesão total a "Xs" no chão. A montagem prova que o filme e seu senso narrativo estão em apuros quando cenas destoantes são montadas paralelamente, e o que dizer do uso assustador e enigmático de atabaques na trilha sonora, em surtos de cinco segundos? Uso da 'noite americana' também débil.

É claramente o filme modelo sobre a conquista do incentivo e da captação, e a falta de domínio da visão de cinema pelo que ele deveria ser como expressão, seja ela como arte ou mesmo comércio. Incentivos estaduais devem ser sustados? De forma alguma, o cinema precisa ser incentivado, sempre, como ato de resistência cultural. Isso, no entanto, não significa que devamos fechar os olhos para os caminhos tomados por toda uma filmografia, e pelos modelos estéticos que ela mesma toma para si.

Monday, August 11, 2008

Em Gramado / Segunda-Feira



Primata promove Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro, na entrada do Palais des Festivals na serra gaúcha. O longa estréia em 29 de agosto.
(foto: KMF)

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Dois rebentos da nova cinematografia digital passaram no primeiro dia da competição do Festival de Gramado, segunda à noite, sendo um argentino (mostra latina), outro brasileiro (competitiva brasileira). Por Sus Próprios Ojos, filme de Liliana Paolinelli, e Vingança, de Paulo Pons, enfocam, respectivamete, o universo das mulheres de presidiários na cidade de Córdoba, Argentina, e o segundo uma história de vingança situada entre o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro. Além de frutos do novo cinema digital, ambos também passam a impressão de serem filmes jovens tanto no bom, quanto no mau sentido.

Por Sus Proprios Ojos estréia na Argentina daqui a dois meses e deverá juntar-se ao muito superior Leonera, filme de Pablo Trapero que esteve no Festival de Cannes, esse ano, já lançado os cinemas argentinos com sucesso. Leonera, filme de um homem, investiga com olhar duro e também delicado a trajetória de uma presidiária que também é mãe.

Por Sus Próprios Ojos, por sua vez, investiga tema recorrente no cinema de olhar dito feminino: as mulheres (mães, esposas, companheiras) de presos. Dois filmes brasileiros vêm à mente nesse sentido, Visita Íntima, de Joana Nin (curta-metragem feito no Paraná) e O Cárcere e a Rua, de Liliana Sulzbach (longa feito no Rio Grande do Sul).

O filme de Paolinelli, apresentado na noite de segunda-feira, é claramente um filme verde, fruto de uma realizadora que ainda traz ranços universitários para o espaço da tela grande de cinema. O clichê do filme dentro do filme é mais uma vez abordado via figura de uma também jovem realizadora que tenta fazer um documentário sobre as mulheres de presos em Córdoba, cidade que fica a 800 kms de Buenos Aires.

À certa altura, a personagem pondera que talvez as verdadeiras presas sejam essas mulheres, idéia intrigante que não ganha maior investigação. Apaixonada de forma dèja vu pelo uso de uma câmera de vídeo dentro da cena, Por Sus Próprios Ojos resulta num filme de tese, do tipo “projeto experimental” de faculdade, e isso não é nada bom.

GAUCHÊS – Já Vingança aponta mais uma vez para a tendência inevitável (e rica em possibilidades) de uma digitalização do moderno cinema brasileiro, e isso muda não apenas o que emos em termos de imagem, como também a maneira que filmes são feitos. Embora sejam bem diferentes, Vingança compartilha do mesmo tipo de estrutura pequena (e câmera utilizada, a HVX-200 da Panasonic) do Nome Próprio, filme de Murilo Salles que passou domingo, também em competição.

Paulo Pons é da Pax Filmes, produtora que fez acordo de produção e distribuição com a Rio Filme. Através de verba oriunda do Prêmio Adicional de Renda da Ancine, levantaram R$ 320 mil para a realização de quatro filmes, R$ 80 mil cada, sendo Vingança o primeiro do lote. “Acredito que em três meses teremos o próximo pronto, que chama-se Espiral”, disse Pons na coletiva do filme, ontem.

Projetado em digital via Rain, o filme é tecnicamente muito bom, e as atuações de Erom Cordeiro e Branca Messina são eficazes, naturalistas. Ele é um rapaz gaúcho no Rio de Janeiro com planos de finalizar um plano de vingança para ato violento ocorrido seis meses antes, no sul.

O filme parece fadado a sofrer um racha entre a historinha de amor relativamente assistível com o personagem dele e o dela, e a obrigação de honrar o título com desdobramentos transplantados via guindaste pelo roteiro. Há também uso intrusivo de música (Dado Villa Lobos).

Pons (também roteirista) parece crer que bem mais do que um sub-produto da natureza humana, a vingança é uma exclusividade da cultura gaúcha, e dois personagens do sul elevam o nível de gauchez no sangue do filme a níveis inaceitáveis, provocando gargalhadas na platéia. José Mayer, em especial, termina incorporando para si a inexperiência do realizador no sentido de tratar um tema duro com afetações superficiais confundidas com traços inequívocos de identidade cultural.

Pons, 34 anos, mostrou-se ávido por fazer um cinema comercial de qualidade onde a reação do público poderá levar a mudar seu filme para adequar-se ao gosto médio popular, algo realmente perigoso. Finda a sessão (e também o debate), mais uma vez no cinema brasileiro tem-se a sensação de que conquista-se a técnica, mas não os conflitos humanos que são, de fato, o ouro de qualquer narrativa.

'Crítico' passa em Gramado.



Meu filme Crítico passa hors concours nesta sexta-feira, 15 de agosto, no Festival de Gramado, que acontece de 10 a 16 de agosto. A projeção do filme será seguida de um debate.

Sunday, August 10, 2008

Janela Internacional de Cinema do Recife

Inscrições abertas até 12 de Setembro.

O Cinema de Madonna? (Ela faz 50 essa semana)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Tem-se idéia do quão poderosa Madonna é como entidade pop quando entendemos naturalmente a importância de sua carreira insuperável na música, mas fazemos esforço intelectual de inclusão para lembrar seu legado no cinema. Foi em fevereiro desse ano, no Festival de Berlim, que voltou tal sensação melancólica quando o assunto é essa coisa pop formidável chamada Madonna. Ela, que, em termos práticos e objetivos, não dá ponto sem nó na esfera da música, sempre teve uma relação de amor não muito bem correspondido com os filmes. Isso se confirmou em Berlim, pois lá estava ela apresentando sua primeira obra como diretora, Filth and Wisdom.

Vê-la apresentando seu longa com a postura de uma curta metragista iniciante e ansiosa tanto encantou alguns, como fez os mais cínicos achar que aquela foi a primeira boa atuação da diva. Ela parecia estar realmente incorporando a artista humilde (H*U*M*I*L*D*E*???!!!), ciente das suas deficiências e diante de uma imprensa internacional que já conhecia seu currículo no cinema.

Curiosamente, ela não aparece em Filth and Wisdom ('lixo e sabedoria', livremente traduzido), um filme barato, feito em vídeo, e que, caso não fosse de Madonna, seria mais uma fuzarca sem nexo como as milhares que a tecnologia digital permite que sejam feitas no mundo inteiro hoje em dia por jovens cineastas sem talento, e que nunca serão vistos por mais do que 100 pessoas, amigos e familiares inclusos.

E porquê Madonna nunca foi muito bem no cinema? O tamanho da sua famosa ambição loira bate com a idéia de que os diamantes são os melhores amigos de uma garota. Mesmo assim, suas atuações passam a sensação de que estamos vendo uma asa delta de duas toneladas tentando voar. Vale lembrar que ela inverteu posições com uma das suas maiores inspirações, Marilyn Monroe, lembrada como atriz, às vezes como chanteuse. Madonna será lembrada como estrela pop, e com o já citado esforço, atriz.




Mais curioso ainda é observar uma artista que soube utilizar o videoclipe tão bem para definir sua imagem, e o formato tem uma boa dezena de clássicos por Madonna que pertencem ao imaginário da cultura pop. A homenagem a Monroe em Material Girl (1984), a citação a Metropolis, de Fritz Lang, em Express Yourself (1989), a montagem de corpos, braços e caras de Vogue (1990), o tom sadomasô de Justify My Love (1991). Mostram presença de imagem que apenas sugeriam o mesmo tipo de sucesso nos filmes. Não exatamente.

Nos anos 80, Madonna surgiu com uma coisa independente chamada A Certain Sacrifice (1984), foi vista cantando Crazy For You ali no fundo em Em Busca da Vitória (Vision Quest, 1985) e teve destaque num filme baratinho e simpático, Procura-se Susan Desesperadamente (Desperately Seeking Susan, 1985), cuja estréia nos cinemas foi segurada pelos produtores quando percebeu-se que Madonna, coadjuvante no filme (Rosana Arquette era a personagem principal), estouraria. Ela ainda teve Into the Groove, um dos seus clássicos do dancing, na trilha.


Depois de casar-se com Sean Penn em 1985, os dois embarcaram num delírio de lua de mel chamado Shanghai Surprise (1986), produção inglesa do Beatle George Harrison, um desses filmes onde tudo deu errado, um mico para o casal. Ela não desistiu. Quem é Essa Garota? (Who's That Girl?, 1987) é um filme estranho e interessante, mas não sei se entendi até hoje o que Madonna estava fazendo ali com personagem tão irritantemente peralta (usava boné ao contrário). A música tema é simpática.

Pulando Doce inocência (Bloodhounds of Broadway, 1989), chegamos ao muito divulgado Dick Tracy (1990), onde nem a atmosfera cartunesca ajudou a presença pesada de Madonna, na época namorada do diretor e ator Warren Beatty. Porquê tão pesada toda vez que está no quadro?

O peso ruim é veneno para qualquer aspirante às artes dramáticas, e foi revertido ao ser ela mesma no proto-reality show Na Cama Com Madonna (Truth or Dare, 1991), um freak show da auto-exposição numa época em que esse tipo de coisa ainda não fazia parte da programação diária na TV.

Teve participações inexpressivamente (Neblina e Sombras, de Woody Allen) simpáticas (Uma Equipe Muito Especial), mas voltou a pagar mico leão dourado com o sub-sub-sub Instinto Selvagem (lançado um ano antes), Corpo em Evidência (Body of Evidence, 1993). Esse é aquele thriller incompreensível onde Madonna queima o pobre do Willem Dafoe com pingos de vela. Comparações com a performance de Sharon Stone no filme anterior não ajudaram em nada.

Desistir, jamais, e essa perseverança a levou a Evita (1996), a adaptação de Alan Parker para a cafonália de Andrew Lloyd Webber, um musical CinemaScope à moda antiga, sem diálogos, onde ela interpreta Eva Peron, inicialmente para a fúria dos argentinos mais conservadores. "Evita no era puta, non!" É talvez o seu papel mais lembrado, junto com Susan, e ela não fez feio, mesmo que o filme seja intragável.

Evita parece ter acalmado Madonna. Desde então, tem feito pequenas participações, e isso inclui o mico-sagui de 007 Um Novo Dia Para Morrer (Die Another Day, 2002), onde ela faz uma instrutora de esgrima, se bem lembro. É verdade que ela repetiu a dose do vexame a dois com seu novo e atual companheiro, o cineasta inglês Guy Ritchie, para quem atuou no desastre Destino Insólito (Swept Away, 2002), e o destino do filme foi mesmo insólito, direto para DVD.

Ritchie, aliás, sugere a falta de olho de Madonna para o cinema. O diretor de filmes espetacularmente afetados como Snatch deve ser mesmo um bom marido e pai dedicado, mas seus talentos para el cine são, de fato, lamentáveis. Quero ver seu próximo clipe.

Estamos Bem Mesmo Sem Você



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Alguns dos melhores filmes são os que parecem pequenos, mas escondem bem suas grandezas. Olhem de perto esse italiano Estamos Bem Mesmo Sem Você (Anche libero va bene, 2006), de Kim Rossi Stuart. Por baixo de uma estrutura que poderia ser televisiva via "drama familiar" está um belo relato sobre as pessoas e sobre o amor que une e separa uma família formada pelos eixos tradicionais, pai e mãe, irmão e irmã. Deixando-se levar por esses quatro, o espectador poderá acessar uma situação humana narrada com grande empatia e delicadeza através da visão de mundo generosa de Stuart, o diretor, co-roteirista e ator do todo.

É ele mesmo quem interpreta o pai que vive bem com o filho Tommi e a filha Viola, um pouco mais velha. Técnico de cinema, ele opera Steadicam como profissional free lance para comerciais. A ironia de ele operar um equipamento desenhado para evitar trepidação na filmagem de cenas é valiosa no filme, uma vez que ele mesmo, como pai solteiro, administra a realidade de cuidar e amar os filhos sem a presença da mulher e mãe que os deixou há algum tempo.

Esse trio finalmente atinge a fluidez da rotina e Stuart nos apresenta o mundo com os três. A chegada da mãe só ocorre bem mais tarde, depois que já nos acostumamos com a família como um triângulo equilibrado.

Seu retorno é dramaticamente violento, o marido a julga da pior maneira, os filhos a recebem sem saber se estão inteiramente felizes, e logo o filme, com seu belo título brasileiro, revela-se ainda maior do que a segurança das suas situações bem obervadas, que só podem ter saído de experiências pessoais vividas e sentidas, fruto essencial da melhor expressão artística.

Com o pai perdendo o controle em explosões de temperamento e descarregando frustrações suas no filho através de uma responsabilidade imperativa de sair-se bem num campeonato de natação, Estamos Bem Mesmo Sem Você termina revelando-se, aos poucos, um filme sobre a mãe (Barbora Bobulova).

Mulher jovem e bela, é acusada de cachorra pelo marido pela sua incapacidade de concentrar-se na família, e fraca ao embarcar em aventuras impulsivas. Lentamente, observamos que existe ali uma pessoa com uma psicologia quase infantil que não parece funcionar muito bem no corpo de uma adulta. E são detalhes valiosos (a visita dela à escola, o bilhete, a caligrafia) que vão dando ao filme o teor emotivo que honra cada lágrima do espectador.

Louis Garrel e o 'Nascimento do Amor'



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Esse trabalho de formação de público nos cinemas do Parque e Apolo, no Recife, via trabalho de Ernesto Barros, apresentou O Nascimento do Amor (La Naissance de L'amour, França, 1993), filme de um dos nomes mais discutidos do atual cinema francês, Philippe Garrel. O filme passa numa cópia (muito boa) da Cinemateca da Embaixada da França, com entrada franca, na tela do Apolo. O título não existe em DVD no Brasil.

Garrel recuperou recentemente um reconhecimento que há muito lhe fugia com Os Amantes Constantes (Les Amants Réguliers, 2005), prêmio de Melhor Diretor em Veneza, embora a sua trajetória tenha começado ainda nos anos 60. No Festival de Cannes desse ano, esteve pela primeira vez na competição com seu filme mais recente, La Frontière de L'aube, cujo ator é seu filho, Louis Garrel, também em Os Amantes Constantes.

Aos 60 anos de idade, Garrel é certamente um artista curioso. Seu cinema tem o tom de uma visita a um museu, mas um museu vivo de memórias afetivas de uma época, do cinema de uma época. Vendo seus filmes, percebe-se um sério caso de obsessão com os anos formadores da sua pessoa artística, na década de 60.

Todos os clichês que curtas metragens estudantis usam para transformar o cinema da Nouvelle Vague em fetiche (o preto e branco, a fumaça do tabaco, som mono, as presenças espirituais de Godard e Truffaut), Garrel usa na mais expressiva seriedade romântica. Se visto com cinismo, seu cinema pode ser encarado como um móvel pesado e antigo, o que talvez explique o achincalhe que foi a sessão de imprensa de La Frontière de L'aube em Cannes, em maio, filme que, mesmo assim, foi muito defendido por parcela expressiva da crítica, em grande parte, francesa.

O cinismo de platéias pós-modernas não perdoaram as elipses muito em voga em 1962, a fotografia de tom e composição típicas da mesma época e um romantismo literário mais comum no final do século 19. E para não discordar totalmente de quem riu, talvez seja realmente gracioso ver autor tão radical no seu saudosismo por uma imagem do passado. Quem viu Os Amantes Constantes deve lembrar que o filme parecia ter sido feito em maio de 1968, a começar pelo uso impressionante do preto e branco. Na verdade, o preto e branco de Garrel aparenta ser mais preto e mais branco do que o dos outros cineastas.

Por outro lado, o cinema de Garrel é orgânico, tem sentimento, não consiste apenas de tiques. Seria, na verdade, improvável que um cineasta insistisse tanto em volta tão curiosa ao passado se não perseguisse verdade pessoal própria.

Sabe-se que já muito jovem, Garrel definiu-se "afilhado" de Jean Luc Godard, e seus primeiros filmes tinham perfil radical e experimental. Nos anos 70, chamados de "os anos Nico", associou-se artística e amorosamente à ex-chanteuse alemã do Velvet Underground, chegando cada vez mais perto de um cinema narrativo. No entanto, sua versão de "cinema narrativo" talvez seja ainda bem difícil face à noção muito divulgada de narração via cinema comercial.

O Nascimento do Amor não é diferente. Para começar, o filme tem Jean Pierre Léaud, já cinquentão, o ator que associamos naturalmente à obra de Truffaut via personagem Antoine Doinel (Os Incompreendidos, Beijos Proibidos), e também a alguns Godards (A Chinesa). O fotógrafo responsável pelas belas imagens é Raoul Coutard, colaborador de Truffaut e Godard. O eixo dramático: o amor, através de dois homens maduros, um é escritor (Léaud), o outro diretor (Lou Castel).

O filme vai nos levando aos poucos em pequenos momentos de intimidade entre esses homens e as mulheres que eles amam. De companheiras fixas a amantes, da vida em família ao surgimento de um novo amor na imagem de uma belíssima garota jovem, síntese da imagem romântica que associamos com facilidade ao cinema francês e ao seu legado, e o plano final desse aqui uma prova disso.

Acompanhando a obra de Garrel, é possível lembrar da discussão sem fim sobre o peso de estéticas passadas em algumas cinematografias. Na França, a Nouvelle Vague, também evocada por cineastas jovens como Christophe Honoré em filmes como Em Paris (também com Louis Garrel incorporando o que mais parece um jovem Léaud, de Truffaut). No Brasil, todo o legado/peso de Glauber sobre o moderno cinema brasileiro, quase sempre medido com a régua do Cinema Novo.

No caso de Garrel, ele talvez mostre que seus filmes são modernos na sua nostalgia sem fim.

Filme visto no Cine Apolo, Recife, agosto 2008

O Grande Dave


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A indústria fabrica muita porcaria ao longo do ano, mas poucas como O Grande Dave (Meet Dave, EUA, 2008), uma tentativa triste de comédia com Eddie Murphy. O maior mérito do filme é estar sendo lançado nos cinemas, feito e tanto para lixo com cara de lançamento direto em DVD. O único fator que explica essa estréia, que ainda pede que alguém pague para vê-la, é a presença de Murphy, astro que já viu dias melhores.

Eddie Murphy já chegou a ser uma das grandes faces da comédia americana, nos palcos e nas telas, considerado sucessor de Richard Pryor a partir dos anos 80 com filmes, pelo menos na época, muito engraçados, como 48 Horas (1983) e Um Tira da Pesada (1985). Ao longo dos últimos 10 anos, salvo uma indicação ao Oscar por Dreamgirls (2006), tem investido em comédias para famílias esquisitas, interpretando múltiplos personagens que lutam contra seus próprios corpos obesos e emissores dos mais variados gases.

Essa fascinação desordenada de Murphy pelo corpo deve explicar sua participação em O Grande Dave. Murphy interpreta uma espaçonave que tem a forma do próprio Murphy, operada por uma tripulação interna capitaneada por, mais uma vez, Murphy. Ou seja, dentro da cabeça do Murphy grande tem pequenos humanóides.

À solta em Nova York, Dave acostuma-se a lidar com o corpo humano (piadas com a dificuldade de andar e sorrir) e procura um meteorito que foi parar no quarto de um garoto de cabelo esquisito (péssimo ator o guri, só faz rir). A aventura envolve também sua mãe (Elizabeth Banks, disfarçando o constrangimento).

Sem vilões à vista, o filme espera que achemos engraçadas cenas como um atropelamento brutal, ou um exame de ressonância magnética, numa demonstração rara de algo filmado com dinheiro hollywoodiano que não tem qualquer vestígio de roteiro. Murphy fica a mercê de um filme especialmente mal fotografado, e onde ele não parece estar sabendo o que faz.

Essa idéia do corpo grande controlado por um pequenino foi vista em Homens de Preto (1997), embora a imagem de uma tripulação ativando órgãos internos do ser humano (para garantir o humor aqui almejado, o intestino e o reto estão incluídos) lembra um filme realmente engraçado, Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo..., de Woody Allen. Ali, um pobre espermatozóide desenvolve tensão pré-ejaculação. Em O Grande Dave, a cena mais significativa apresenta Eddie Murphy, de pernas abertas, defecando dólares.

OS: Para acrescentar insultos ao machucão, a coisa ainda é dublada, dando ao todo um aspecto nefasto de DVD pirata.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, Agosto 2008