Saturday, February 20, 2010

Berlim (texto preliminar)


"Roman, by the way, thank you"

Esse filme é merecedor.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Ao anunciar o Urso de Ouro de Melhor Filme na 60a edição do Festival Internacional de Berlim, ontem à noite, no palco do Berlinale Palast, o cineasta alemão Werner Herzog disse “não temos nenhuma amargura nesse júri, as decisões foram todas muito rápidas”. O troféu foi para o filme turco Bal (mel), de Semih Kaplanoglu, com dois outros filmes saindo destacados, o romeno Eu Cand Vreau Sa Fluier, Fluier (Se Eu Quiser Assoviar, Eu Assovio) e o russo Kak Ya Provel Etim Letom (Como Terminei o Verão), cada um com dois ursos de prata.

Os resultados do júri comandado por Herzog, um dos maiores nomes do cinema autoral no mundo, podem ser considerados felizes, marcados pela lucidez. O filme turco é uma dessas obras delicadas, que conseguem transmitir em imagens de cinema o que seria o olhar de uma criança que perde o pai muito cedo, e que vê o mundo como pedaços de sonhos. É esperar que esse filme pequeno, muito bem composto, chegue aos cinemas do Brasil.

Escolha interessante, que tanto reconhece o talento, como também sugere uma defesa pública de Roman Polanski, foi o Urso de Prata de Melhor Diretor para o franco-polonês pelo seu trabalho no thriller The Ghost Writer. Aos 76 anos, Polanski está atualmente em prisão domiciliar na Suíça, esperando possível extradição para os EUA onde poderá cumprir sentença pendente para crime de sexo com menor de idade, em 1977.

Outra escolha com sabor ousado foi para a atriz japonesa Shinobu Yoshizawa, atuação corajosa no filme Caterpillar. Yoshizawa interpreta a esposa de um herói que volta da guerra sem braços e pernas, surdo e mudo.

O júri decidiu destacar dois filmes de jovens talentos do leste europeu. O prêmio Alfred Bauer, que estimula novas perspectivas para o cinema, foi dado ao romeno Eu Cand Vreau Sa Fluier, Fluier, de Florin Serban, que ainda levou o Grande Prêmio do Júri, urso de prata que agrega enorme prestígio. É o primeiro filme de Serban e conta a história de um delinqüente que tenta se comportar no reformatório, dias antes de ser solto.

Outro favorito dos jurados foi a impressionante aventura sobre isolamento Kak Ya Provel Etim Letom, de Alexei Popogrebsky. O Urso de Prata de Melhor Atuação Masculina foi dividido entre os dois atores Gregory Dobrygin e Sergei Puskepalis, que seguram sozinhos o filme, ambientado no círculo polar ártico. O filme levou ainda menção especial pela “conquista técnica extraordinária” pela fotografia (Pavel Kostomarov).

O prêmio da Critica, anunciado na noite de sexta-feira, foi para o drama dinamarquês En Familie (Uma Família), de Pernille Fischer Christensen, penúltimo filme exibido na competição. O Teddy Bear (o ursinho de pelúcia), prêmio anual dado ao filme mais destacado de temática gay, foi para o americano The Kids Are Alright, de Lisa Cholodenko.

A produção Brasil/Inglaterra Lixo Extraordinário (Waste Land), de Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley, exibido na mostra paralela Panorama, ganhou dois prêmios: Público e Anestia Internacional, esse último dividido com Son Of Babylon, de Mohamed Al-Daradji.

Premiação

(premiação em progresso)

Urso de Ouro - Bal (Mel) Turquia

Grande Prêmio do Júri
If I Want to Whistle, I Whistle (Romênia)

Roman Polanski levou Melhor Diretor por The Ghost Writer.

Atriz foi dado a Shinobu Yoshizawa, atuação corajosa no filme japonês pancada Caterpillar.

O PRÊMIO Alfred Bauer, que estimula novas perspectivas para o cinema, foi dado ao romeno If I Want to Whistle I Whistle (Se eu Quiser Assoviar, eu Assovio), de Florin Serban.

O bom drama chinês Tuan Yuan (Separados Juntos) ficou com melhor roteiro.

Prêmio Especial por Conquista Técnica, Pavel Kostomarov, por How I Ended My Summer.

Melhor Primeiro Filme, ganhou o sueco Sebbe, de (exibido na paralela Generation 14+, dedicado a filmes com temática jovem).

Long Live The New Flesh! (Berlinale Shorts)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Long Live the New Flesh é o novo filme do belga Nicolas Provost. É um dos realizadores que eu mais espero ver fazendo um longa. O filme passou em competição em Berlim. Provost usa o arquivo mais potente de imagens do horror no cinema para interferir nessas mesmas imagens. Parece sugerir que a própria essência da imagem moderna é orgânica através dos pixels defeituosos, como tumores digitais que afetam a carne e o sangue expostos pelo cinema.

Ele não poupou seu arquivo que, na verdade, é o nosso próprio arquivo de visões indeléveis cinematografadas. Das citações aqui apresentadas, não é de se estranhar que o realizador mais presente seja exatamente David Cronenberg, cujo Videodrome (1982) fornece não apenas carne e sangue retrabalhados por Provost, mas também o título 'Long Live the New Flesh'.

Eu lembro que no surgimento do digital, e ainda hoje, a tecnologia de captação e reprodução de imagens foi/é acusada de uma constância irritante, diferente do celulóide, repleto, por natureza, de pequenas imperfeições e instabilidades. Provost parece ilustrar de maneira espetacular (as imagens corrompidas do grotesco, montagem e som desse filme são extraordinárias) que há um mundo em polvorosa na certeza numérica das novas formas de ver e captar.

Filme visto no Cinemax 6, Berlim, Fev 2010

Berlim e a Berlinale


Jud Süß - Film ohne Gewissen. Alemão mal recebido.

Metroplis no Portão de Brandemburgo.

O Urso assaltado.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A Berlinale esse ano completou seus 60 anos, algumas sessões exibindo interessantíssimo material de arquivo dessa história, deixando claro que o festival foi instrumento importante nas décadas da guerra fria. Em algumas dessas imagens de arquivo, Oliver Stone espreita o lado comunista por um buraco no Muro de Berlim e Kirk Douglas lembra de ter passado pelo Check Point Charlie, a ligação oficial entre leste e oeste, entre 1962 e 1989.

Talvez seja esse histórico que ainda dê ao Festival Internacional de Cinema de Berlim um certo sabor de democracia (diferente de Cannes, é um festival de público e grandes salas lotadas pelos cinéfilos) e uma tentativa de programar filmes de teor social e político, com a habitual demonstração de respeito por autores do mundo.

Essas quase duas semanas de cinema, espalhadas em dezenas de salas grandes de Berlim, de certa forma refletem a sensação geral que essa cidade inspira. Se o mundo é repleto de cidades ricas em cultura e arte, poucas têm a capacidade de inspirar o pensamento livre para as artes (inclua aí o cinema) como Berlim, que durante tanto tempo viu-se dividida, e que agora parece agregar tudo.

É um festival de cinema encravado no meio de sítios históricos que nos lembram não apenas o que aconteceu aqui, mas que parece ainda guiar, através do passado, os caminhos para o futuro.

Com as principais salas localizadas entre o monumento em memória ao Holocausto e a antiga sede da Gestapo, a área é ainda cortada pelo fantasma desenhado no chão (em singelos paralelepípedos) do que uma vez foi o Muro, a Berlinale oferece certamente um grande dialogo entre as imagens do cinema e as imagens deixadas pelo passado.

Uma das imagens mais fortes da Berlinale esse ano, aliás, foi a do clássico Metropolis, de Fritz Lang, sendo projetado numa tela montada no Portão de Brandemburgo, outro marco da cidade. O filme foi restaurado a partir de uma copia que, acreditava-se perdida, achada na Cinemateca de Buenos Aires em 2008.

Nas suas sete mostras distintas – Competição, Berlinale Special, Panorama, Forum, Berlinale Shorts, Generation, Retrospektive e Perspektive Deutsches Kino (Perspectivas do Cinema Alemão), críticos, gente de mercado e público tentam dar algum sentido ao excesso de filmes de todos os lugares e estilos.

Curiosamente, vale observar que a produção alemã continua tímida como resultados na tela, embora a participação da Alemanha como espaço para produção esteja aumentando. O maior sucesso desse estímulo recente foi a fatia alemã em Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino, atualmente indicado a oito Oscars.

Co-financiado pelo fundo de incentivo ao cinema da cidade de Berlim (Berlin-Brandenburg GmbH), e filmado nos estúdios Babelsberg, nos arredores de Berlim, o sucesso mundial do filme, e o carisma de Tarantino, foram transformados em marketing para Berlim, com camisas, suéters, bonés e cartazes do filme vendidos no comercio da cidade.

Na quarta-feira passada, foi anunciado um acordo entre os estúdios Pinewood, em Londres, e os estúdios Hamburg e Adlershof numa joint venture chamada Pinewood Studios Berlin Film Services. A revista Variety de quinta-feira descreveu os fundos alemães para co-produções estrangeiras como “generosos”, nas esferas regional e federal, resultando “na mais dinâmica região da Europa para a produção de cinema”.

GOEBBELS - E os filmes alemães? Embora a questão dos fundos de incentivo e co-produções garanta nacionalidade alemã a pelo menos três outros filmes em competição, são três os filmes que puderam ser considerados alemães na competição esse ano. E foi uma mostra bem fraca de uma filmografia que já nos deu Fassbinder, Wenders e Herzog (esse ano, presidente do júri).

Não deixa de ser curioso para o observador externo ver que a única vaia ouvida nas sessões da Berlinale por esse observador foram para um drama histórico sobre o nazismo: Jud Suss – Film Ohne Gewissen (Judeu Suss – Ascensão e Queda), de Oskar Roehler, narra, como num assistível especial para a TV, a história real e terrível de Ferdinand Marian, ator ariano que foi obrigado por Joseph Goebbels, à frente do cinema no 3o Reich, a aceitar o papel do mais abominável estereotipo do judeu, numa super produção de propaganda nazista.

Ironicamente, Jud Suss – Film Ohne Gewissen tem inúmeros pontos de convergência com Bastardos Inglórios. De Goebbels à máquina nazista de imagens sendo revista, mas sem o reprocessamento interessantíssimo de Tarantino, ou uma idéia ousada de cinema. De qualquer forma, fica a dúvida: o público vaiou o filme ou o tema?

Se um segundo filme, Der Rauber (O Ladrão), de Benjamin Heisenberg, conquistou o respeito do público e da crítica, um terceiro foi um dos poucos vexames da seleção esse ano. Shahada, de Burhan Qurbani, crônica étnica sobre muçulmanos na Berlim contemporânea, lidando com um manual de problemas modernos, como aborto, homossexualismo e adultério. Esse sub-Crash berlinense é um projeto de jovem realizador, e ninguém sabe ao certo o que estava fazendo em espaço tão importante.

Vale dizer que, nas mostras paralelas, o cinema alemão pareceu relacionar-se bem com o seu passado. Alem do evento que foi a apresentação de Metropolis, Berlim apresentou a cópia restaurada de um documento essencial para entender não apenas o elemento humano, mas a história dolorida da Alemanha: Nuremberg: Its Lesson For Today, o documentário oficial do julgamento de 23 oficiais nazistas, exibido na Alemanha como parte do processo de desnazificação da Alemanha no pós-Guerra.

Por último, um relançamento pertinente, e não menos fascinante: a Fundação Fassbinder, dedicada a divulgar a obra de Rainer Werner Fassbinder, apresentou em duas sessões especiais a copia nova de um dos seus filmes menos conhecidos, Welt am Draht (1973), surpreendente por ser um filme de ficção científica sobre mundos virtuais criados por computador. É o presente.

Mammuth


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Não é possível ignorar os comentários da imprensa internacional em Berlim sobre a forma como o ator Gerard Depardieu aparece num dos seus dois novos filmes, ambos projetados na Berlinale. L’Autre Dumas, de Safy Nebbou, é sobre o escritor Alexandre Dumas, passou na Berlinale Special (e eu não vi), mas é em Mammuth (competição), filme de Benoit Delépine, que Depardieu parece ter chocado.

Ele é filmado como uma espécie de irmão gordo do Lutador, de Mickey Rourke, cabelos longos e loiros, redondo na forma, às vezes nu em cena, sem pudores, total entrega. Obelix também seria referência. A reação da platéia chega a ser interessante dada a rejeição efusiva ao corpo de Depardieu.

O filme em si é um LA-DI-DA francês e granulado, filmado não apenas em baixa resolução, mas no que aparenta ser a intenção de fazer o filme mais visualmente feio da era moderna. Granulado como uma câmera de segurança e verde escuro no tom, Mammuth é inicialmente curioso, com suas observações da vida nas classes mais baixas da França, nas movimentações naturais de um ogro nos obstáculos do dia a dia.

Mais tarde, a julgar pelas minhas caretas discretas no escuro, talvez não passe de uma besteira com vôos de poesia de má qualidade, e ar artsy-biruta. A base aparenta ser o sentimento de passagem do tempo na vida, e há, de fato, um tom agridoce promissor.

Depardieu é um açougueiro que chega à aposentadoria sem os papeis necessários para ganhar sua pensão. Visita lugares onde trabalhou, como cemitérios e boates, à procura de documentos. Isabelle Adjani, numa estranha participação que valoriza seu rosto, é sua musa da morte, e cada novo encontro desse road movie pretensamente experimental garante os risos típicos dos filmes excêntricos.

Mammuth é uma aposta no grão e na gordura, e chega para Depardieu como um registro não apenas de pequenas pretensões artísticas, mas também dele próprio como corpo físico. De certa maneira, o filme enfrenta padrões de beleza, seja na imagem suja ou na falta de vaidade do seu astro, ocupando curioso espaço. Encolhe ainda mais após a sessão.

Filme visto no Cinemax 9, Berlim, Fev 2010

The Killer Inside Me


As Imagens Americanas

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O realizador inglês Michael Winterbottom, cujas habilidades como cineasta espalham-se por todas as gamas, formatos e gêneros apresentou seu exercício em mitologia americana aplicada, The Killer Inside Me (O Assassino Dentro de Mim). Foi exibido hoje, no Festival de Berlim, o último filme apresentado em competição. A violência do filme gerou o tipo de reação comum em festivais de cinema, e que irá repetir-se nas salas, quando do seu lançamento. Espectadores levantando-se apressados em direção à saída de emergência.

Ambientado nos anos 50, no interior do Texas, é a história de um jovem xerife adjunto (Casey Affleck) que começa a despertar suspeitas sobre suas condutas depois que uma série de assassinatos passam a ocorrer na sua jurisdição, normalmente com pessoas com as quais ele esteve.

É uma história clássica de assassino por natureza na paisagem americana, e já há acusações de que The Killer Inside Me seja mais do mesmo. Talvez seja, considerando a freqüência desse sub-gênero nas imagens americanas.

De qualquer forma, essa história foi filmada por esse realizador inglês com certo fascínio, em em 35mm CinemaScope. Estão lá os enquadramentos clássicos da mitologia americana, o sotaque forte do Texas, a música, a violência.

O filme foi, em grande parte, mal recebido, talvez refletindo a natureza barata da literatura do autor Jim Thompson, cujo livro homônimo foi publicado em 1952. É um autor, e um livro da chamada ‘pulp fiction’, e o tratamento de Winterbottom nos pareceu totalmente adequado.

A carga mais pesada das imagens agressivas de The Killer Inside Me (com distribuição já garantida no Brasil) existe na violência contra mulheres, resultado de um personagem que, em parte, as adora, e, de outra maneira, quer destruí-las em arroubos assustadores de agressão e extermínio. E o faz com as mãos e os pés, para máximo contato físico. Curiosamente, com os homens, os atos de brutalidade são bem mais rápidos e certeiros, o que não deixa de ser um aspecto curioso da construção desse personagem.

Na coletiva de imprensa, uma jornalista levantou a questão sempre presente da sexualização do crime e da brutalidade, uma vez que as duas personagens femininas são interpretadas por estrelas sensuais como Jéssica Alba e Kate Hudson. Winterbottom também enfrentou a fúria básica dos mais sensíveis, e sua resposta foi a resposta padrão.

“A violência no cinema deve ser chocante. Acho questionável quando filmes mostram a violência como algo divertido, engraçado. Sobre misoginismo, é uma questão sempre complicada, já que a violência contra as mulheres é algo que faz parte da sociedade, e certamente faz parte da história desse personagem. Alem disso, meu filme deixa claro que este é um homem com sérios problemas, ele não é um modelo a seguir”.

Winterbottom, que já fez filmes tão díspares como A Festa Nunca Termina (2000), sobre a cena musical de Manchester, Nesse Mundo (2002, Urso de Ouro em Berlim) e Caminho Para Guantanamo, lembrou que seu primeiro longa metragem, O Beijo da Borboleta (1995) já marcava território temático semelhante, mas ambientado no norte da Inglaterra.

Em Berlim, ele quis deixar clara sua intenção de fazer um filme que fosse totalmente fiel ao livro, algo que beirasse o exercício de linguagem. “Isso não significa que tenha partido para procurar a imagem do cinema noir, mesmo que o livro tenha essa carga noir.

Um aspecto também levantado na coletiva foi a ausência de todo o elenco, em Berlim. Isso foi somado aos boatos, divulgados na première mundial do filme no Festival de Sundance de que Jéssica Alba teria abandonado a sessão na cena em que é vitimada.

“Isso não é verdade, Jessica havia visto o filme antes, foi a Sundance para apresenta-lo e não ficou para ver a sessão. Sobre a ausência dos outros, é uma pena, quando aceitamos o convite para vir a Berlim, prometemos que todos estariam aqui, portanto, podem imaginar como estamos chateados. De qualquer forma, Casey tem preferido não trabalhar em filmes, e já me considero sortudo de tê-lo tido no filme”.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, Fev 2010

Thursday, February 18, 2010

Menos Frio Hoje


foto KMF

Kak Ya Provel Etim Letom (Como Terminei Meu Verão)


Depois de uma semana inteira com máximas de dois graus negativos, o termômetro passou hoje dos três positivos, começando a derreter o verdadeiro rinque de patinação no gelo no qual Berlim se transformou. Este é ido como um dos invernos mais fortes dos últimos 10 anos. E já chegando ao fim, persiste a sensação de que esta 60a edição da Berlinale tem qualidade geral respeitável, mas num todo sem filmes que desencadeiem reações de grande alegria.

Combinando o desconforto físico trazido pelo frio do lado de fora dos cinemas com o frio sentido na tela, há um destaque claro e evidente na competição que é o filme russo Kak Ya Provel Etim Letom (Como Terminei Meu Verão), do diretor Alexei Popogrebsky. Todo filmado no círculo polar ártico, na ponta extremo-leste do território russo, é a história de dois homens numa base de monitoração meteorológica isolada.

O mais velho (Grigory Dobrygin) é pai de família, e comunica-se com esposa e filho através de mensagens de celular enviadas por terceiros, na base de rádio, a centenas de quilômetros de distancia. O mais jovem é um estagiário (Sergei Puskepalis) que pegou o serviço para escrever uma monografia nesse exílio exótico. O filme se passa no verão do Círculo Polar Ártico, mas as temperaturas não parecem passar de zero grau.

A sensação de isolamento é espetacular, deixando o filme a alguns metros do cinema fantástico, onde lembranças de O Enigma do Outro Mundo (The Thing, 1982), de John Carpenter, são constantes. Trabalhos de fotografia (com a câmera digital Red) e som incríveis, provam que Popogrebsky é um nome a se observar.

O filme transforma-se em drama enervante num momento de ausência do homem mais velho. O estagiário recebe uma mensagem importante via rádio que, de forma não explicada via formas convencionais, ele não quer, ou não consegue passar para seu chefe, assumindo comportamento cada vez mais inusitado, como uma criança assustada. Seria a loucura do isolamento? Ou o peso da natureza sobre o homem, aspecto tão visto nas imagens russas de cinema?

Como Terminei Meu Verão tem a cotação mais alta no quadro da crítica, atualizado diariamente na revista inglesa Screen International, distribuída no festival. Uma leitura possível colocaria o filme bem próximo dos territórios distantes filmados no cinema de Werner Herzog, presidente do júri em Berlim.

Rompecabezas


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Dois filmes com ponto de vista feminino passaram na competição, o melhor deles o argentino Rompecabezas (Quebra-cabeças), de Natalia Smirnoff. Muito envolvente, utiliza estrutura minimalista com resultados consideráveis. Maria Onetto, a mesma atriz tão bem utilizada por Lucrecia Martel em A Mulher Sem Cabeça, volta com um ar e uma postura não tão diferente. Interpreta uma dona de casa de Buenos Aires que descobre-se exímia montadora de quebra-cabeças.

Mãe de filhos homem crescidos, marido delicadamente machista, ela descobre na resolução peça a peça de imagens da cultura universal (Egito antigo e clássicos da pintura) uma energia que talvez estivesse faltando na sua vida. Isso aumenta depois que responde a um anúncio para que treine suas habilidades com um homem de meia idade rumo a um campeonato internacional. Uma das imagens do festival: ver essa mulher, sempre serena, não necessariamente infeliz, abrir um verdadeiro sorriso pelo simples fato de sentir-se bem consigo mesma.

É um filme de mulher sobre as conquistas necessárias de pequenas liberdades, cuidadosamente modulado pelas atuações super naturais e por um roteiro bem escrito. Salta aos olhos a capacidade que os argentinos têm de gerar filmes a partir do que parece ser pouca coisa, com grande confiança nos dramas humanos de boa qualidade e tom obviamente pessoal. Salta também aos olhos a influência de Martel não só em tentativas recentes do cinema brasileiro de curta e longa metragem, mas também nesse produto da própria Argentina.

Filme visto no Cinemax 9, Berlim, Fev 2010

Na Putu (No Caminho)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O outro filme dirigido por cineasta mulher é da Bósnia e Herzegovina. Na Putu (No Caminho), de Jasmila Zbanic (ganhadora do Urso de Ouro 2006 por Em Segredo). Como no argentino, há uma libertação por parte de uma mulher, mas aqui de fantasmas da história recente e sangrenta do país, tema também visitado no filme anterior.

A aeromoça Luna (Zrinka Cvitesic) vê seu companheiro desempregado se converter a uma forma radical de islamismo, levando-o a mudar completamente como pessoa. É o choque entre a Bósnia européia globalizada pós-conflitos dos anos 90 e as raízes dessa mesma cultura, que não parece ir embora. Nos dois filmes, ações afirmativas políticas de mulheres que decidem seus próprios caminhos. No filme de Zbanic, tudo me parece tão cansado e auto-afirmativo.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, Fev 2010

Smoke Gets in Your Eyes

O bom título internacional de É Proibido Fumar, filme de Anna Muylaert, é Smoke Gets in Your Eyes, nome do clássico pop do The Platters, nos anos 60. Foi anunciado em Berlim que o filme terá comercialização administrada para o mercado estrangeiro pela Figa Films, de Los Angeles. O filme foi lançado no Brasil em dezembro último, e agora está no mercado de Berlim.

Taxi Driver - The Script



Carpete, Cine Star, Berlim.

Apostas Para Cannes 2010

Deu hoje na Screen International essa lista de especulações sobre possíveis filmes atualmente "em pós-produção" e que poderão ser considerados por Cannes. Mera especulação. Não há menção a títulos do cinema brasileiro. K.M.F

Chantrapas (Otar Iosseliani, que luxo ver filme novo dele)
Aurora, de Cristi Puiu (de A Morte do Sr. Lazarescu, um dos meus top 10 da década)
Film Socialism (Jean Luc Godard)
You Will Meet a Tall Dark Stranger (Woody Allen)
Rabbit Hole (John Cameron Mitchel)
The Tree of Life (Terrence Malick)
Somewhere (Sofia Coppola)
The Fighter (David O. Russel)
The Turin Horse (Bela Tarr)
Tamara Drewe (Stephen Frears)
Untitled (Mike Leigh)
Certified Copy (Kiarostami)
Death of a Hostage (Johnnie To)
Carancho (Pablo Trapero)
Machete (Robert Rodriguez)
The Expendables (Sylvester Stallone)
Black Swann (Darren Aronofsky)
Miral (Julian Schnabel).

Wednesday, February 17, 2010

Bróder





por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Surpresa boa na participação brasileira Bróder, de Jeferson D, exibido agora há pouco na seleção Panorama, em estréia mundial no Festival de Berlim via sessão de imprensa. É uma crônica muito bem observada sobre três amigos da periferia de São Paulo, faixa etária 23 anos, numa breve reunião para comemorar o aniversário de um deles. Possibilidades de o filme cair em clichês são, quase todas, anuladas por uma honestidade tocante, claramente fruto de um universo social bem observado.

O perigo do clichê está bem mais presente na sinopse do que no que vemos projetado. A ambientação é a classe média baixa de São Paulo na já muito filmada topografia urbana vernacular das periferias brasileiras dos becos e vielas. É um ambiente repleto de possibilidades, uma delas o crime.

É também um espaço essencialmente familiar, algo muito bem estabelecido na primeira meia hora, onde uma feijoada de aniversário junta os amigos Macu (Caio Blat), Jaiminho (Jonathan Haagensen) e Pibe (Silvio Guindane).

Pibe saiu do bairro para criar filho com a esposa, Jaiminho joga futebol na Espanha, é milionário, e Macu, ainda na comunidade, lida com gente que pertence claramente ao lado sombrio da força.

É claro que a matriz para esse tipo de narrativa é o Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973), de Martin Scorsese, ou o Os Donos da Rua (Boyz’n’D’Hood, 1991), do John Singleton, mas Jeferson D dá ao cinema brasileiro um ponto de vista importante para esse tipo de material.

O trio de amigos divide não apenas a amizade, mas também (ex)namoradas, irmãs, primas, madrinhas e padrinhos. O catolicismo é abandonado para o protestantismo (numa cena muito bem ilustrada) e é quase possível sentir o cheiro do feijão no fogo. Aos poucos, os personagens são desenvolvidos de forma muito acima da media, com perfeita integração de Blat, Haagensen e Guindane, alem de uma participação muito boa de Cássia Kiss, na casa.

Curiosamente, a única nota (espetacularmente) falsa de Bróder é exatamente uma cena onde um personagem branco, da classe alta, é visto no seu ambiente, do outro lado de um telefonema. Esse empresario bebe champanhe com sua esposa loira de olhos azuis, num verde campo de golfe. A cena me chamou muito a atenção, pois normalmente a nota falsa está na representação das classes mais baixas, no exotismo dos becos e das vielas. Ou seja, muito interessante.

A segunda metade de Bróder cai em rendimento, uma vez que Jefferson D parece precisar levar adiante a tese de que os caminhos para os jovens da periferia são, de fato, perigosos, algo arrematado num letreiro final que deveria ter sido arquivado como idéia.

De qualquer forma, os desdobramentos são bem articulados, com os dois pés no chão de São Paulo e arrabaldes, muito antes de Bróder revelar-se “um filme com uma mensagem”. Bem filmado e atuado, o que mais destaca-se para mim é o simples fato de Bróder ter coração.

Filme visto no Cine Star 3, Berlim, Fev 2010

The Kids are Alright


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Um dos filmes mais simpáticos que vi em Berlim nesta edição chama-se The Kids Are Alright, da diretora Lisa Chodolenko, com distribuição no Brasil já definida (Imagem Filmes). É uma comédia americana de costumes e corte liberal, o tipo de coisa que os estúdios dificilmente fariam. É sobre um casal de mulheres (Annette Bening e Julianne Moore) que gerou um casal de filhos (Mia Wasikowska e Josh Hutcherson) via banco de esperma. Chegando aos 18 anos de idade, eles descobrem a identidade do pai/doador, um dono de restaurante e bon vivant (Mark Ruffalo).

O pai de família da casa é a médica de Annette Bening, controladora, dominadora e que mantém o menino de 15 anos, a garota de 18 (Wasikowska será vista em breve como a Alice no País das Maravilhas de Tim Burton) e também sua companheira na coleira curta.

Quando o homem se aproxima, é ela quem sente o peso do ciúme. Pequenas tensões surgem, todas administradas com surpreendente maturidade pelo filme, que usa vocabulário (verbal e visual) generoso para a sexualidade.

Obviamente que, nesse tipo de “cinema independente americano” (ou filmes americanos realizados fora dos estúdios), os 15 minutos finais tendem a virar decepção. De qualquer forma, The Kids are Alright revela-se uma peculiaridade, já que há aqui a defesa a ferro e fogo do ideal de família (não muito diferente de um filme da Disney), muito embora essa família seja efetivamente gay.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim Fev 2010

Besouro


Além do documentário anglo-americano Lixo Extraordinário, a outra participação brasileira na Panorama foi Besouro, exibido terça-feira, filme de artes marciais já lançado nos cinemas do Brasil. A revista Hollywood Repórter publicou critica muito positiva do filme de Daniel Tikhomiroff assinada por Deborah Young. “O divertido Besouro é um tipo raro de filme de artes marciais com história envolvente e idéias sociais sendo expressas”.

Lars & Martin

Há um boato tão interessante quanto inusitado correndo em Berlim sobre uma possível parceria entre Martin Scorsese, na cidade para divulgar A Ilha do Medo, e o dinamarquês Lars Von Trier. Segundo a revista inglesa Screen International, os dois teriam se encontrado na cidade no final de semana para discutir uma refilmagem de Taxi Driver, o clássico de Scorsese. O projeto seria parte de uma série proposta por Von Trier com base nos “filmes que me fizeram querer fazer filmes”. O produtor de Von Trier, Peter Aalbaek, não confirmou nem negou, e disse que um anuncio oficial será feito em breve. Rumores também apontam para a participação de Robert de Niro...

A Film Unfinished


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Abandonando um pouco a seleção oficial, dois documentários poderosos, de realizadoras independentes, foram apresentados na seção Panorama. Ilustram linhas de tempo totalmente distintas para a história do povo de Israel, agregando novos valores aos arquivos de imagem dessa história, e também reprocessando-os.

Em A Film Unfinished (Um Filme Inacabado), de Yael Hersonski, a copia de trabalho de um filme nazista de propaganda rodado no Gueto de Varsóvia é revista, depois de décadas perdida nos arquivos. Em Budrus, a brasileira Julia Bacha (radicada nos EUA) registra o conflito entre moradores de uma vila nos territórios ocupados por Israel, que reagem pacificamente à construção injusta de um muro de segurança nas suas terras.

A peculiaridade dessa descoberta é investigar a natureza do cinema de registro como uma farsa, uma vez que as equipes de reportagem do 3o Reich foram enviadas para armar um relato parcialmente ficcional sobre a propagada natureza avarenta dos judeus.

Cerca de 500 mil judeus foram segregados no gueto, que a história revelou ter sido a última parada da grande maioria antes das deportações para campos de extermínio como Treblinka e Auschwitz.

Com farto material de takes “1”, “2” e “3”, cenas eram ensaiadas e repetidas para ilustrar o contraste entre os ricos e os pobres, a equipe trazia carne para frigoríficos vazios e dramatizava uma vida burguesa onde muitos morriam de fome.

A idéia de propaganda filmada é uma constante na produção de imagens desde o início do cinema, há mais de 100 anos, com destaque para o acervo de imagens da 2a. Guerra Mundial via americanos, soviéticos, ingleses e alemães.

O filme é inferior a um relato russo chamado Blockade (2005), de Sergei Loznitsa, montado com imagens recusadas na época pela máquina de propaganda da URSS, sobre a vida em São Petersburgo durante o cerco nazista. A jovem Hersonski, por exemplo, usa música dramática e reconstitui uma entrevista importante em cristalino formato de alta definição, criando choque indesejável com o material em película encontrado.

De qualquer forma, há no seu filme algo de verdadeiro e particularmente grotesco nessa análise de imagens encontradas proposta. Especialmente quando a realidade histórica é quebrada pela repetição imposta por um sentido ainda mais grotesco de ficção, a equipe nazista vista acidentalmente nas cenas que foram cortadas.

Budrus


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.co
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Em Budrus, Julia Bacha filma em Mini-DV e com a câmera trêmula na mão uma rara instância onde um enfrentamento entre judeus e palestinos é guiado por uma idéia inicial de paz. O conflito surge do muro erguido por Israel para garantir mais segurança para o país, isolando-o dos territórios palestinos. O problema é que o muro não começa na linha fronteiriça de Israel, mas quilômetros dentro das terras palestinas, desenhado com aparente arrogancia.

Uma das localidades afetadas é a vila de Budrus, onde surge uma resistência pacífica, que usa a energia das mulheres e crianças para enfrentar a chegada de tratores que irão por abaixo oliveiras importantes culturalmente para a comunidade. Numa passagem extremamente significativa, a comunidade também mostra preocupação de que as crianças não enxerguem o muro da escola que os ensina noções de cidadania.

Não há qualquer dúvida sobre onde está o ponto de vista de Bacha. Ela consegue duas entrevistas importantes com membros do exército de Israel, que acreditam num tom sempre polido na força e na necessidade de limpar a área. Há uma escalada de tensões e, depois de ações prolongadas de mulheres e crianças, rapazes começam a jogar pedras. O filme cria uma situação tensa e não é difícil lembrar de Avatar, de James Cameron, onde o lado fraco enfrenta a estupidez bem equipada dos menos justos...

Informações indicam que as batalhas (com feridos, mas sem mortos) levaram Israel a redesenhar o mapa dos seus muros e cercas, uma vitória para os moradores, reinterpretada pelo comandante israelense como uma vitória de Israel, que assim quis que as coisas fossem. Budrus é mais uma janela para entendermos de perto conflitos ancestrais normalmente descritos de longe pela mídia, com o tipo de “imparcialidade” que gera ainda mais confusão.

Shekarchi


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


É sempre muito bom sair de um filme coçando a cabeça, acompanhado escada abaixo por um ponto de interrogação. Havia ocorrido um dia antes com o japonês Caterpillar, ontem foi a vez de Shekarchi (Caçador), filme iraniano (feito com dinheiro alemão) diferente de qualquer coisa já vista na filmografia do país. Também fica a pergunta do como um filme desse foi feito no país de Mahmoud Ahmadinejad.

Pois bem, temos um segurança, homem de família. Uma tragédia, resultado dos protestos de rua de um ano atrás, o deixa só. Ele pega um rifle e, como um caçador na natureza selvagem, mata, à distancia, dois policiais. É um filme cheio de raiva e desobediência civil, com uma visão humana e pessimista das instituições iranianas. A violência e mais próxima de um filme ocidental, mas ainda há uma economia à vista que esperamos sempre dos iranianos. Bom.

Monday, February 15, 2010

Caterpillar


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Já chegando à metade da competição esse ano, e a gelada Berlim (temperaturas sub-zero há quase uma semana) revela-se uma das seleções mais felizes das últimas edições. Um destaque de hoje, por exemplo, foi o muito estranho filme japonês Caterpillar, de Koji Wakamatsu, típica sessão das gargalhadas isoladas, sinal de incômodo no recinto e obrigatórias em todo festival que se preze. É um ensaio sobre os efeitos da 2a. Guerra Mundial sobre a sociedade japonesa, feito com, aparentemente, muito pouco dinheiro, mas com idéias fortes de como expressa-las poeticamente.

É a história de um soldado que volta da guerra um herói condecorado, mas desfigurado, surdo, mudo, sem braços nem pernas. Obviamente que lembranças de Johnny Vai à Guerra (Johnny Got His Gun, 1972), de Dalton Trumbo, vêm à mente, mas Caterpillar desdobra o conceito.

Essa sobra machucada de um ser humano passa a ser conhecida na sua pequena comunidade agrícola como “O Deus da Guerra”, levado em passeios semi-oficiais num carrinho de mão, de chapéu e uniformizado, pela sua mulher, de quem a sociedade espera que exerça suas funções heróicas de esposa, ao lado do marido herói.

Além do impacto desse “Deus da Guerra” na sociedade japonesa (a máquina patriótica o torna um orgulho famoso), Caterpillar nos mostra para máximo efeito a intimidade dessa vida a dois. As únicas formas de comunicação entre o soldado e sua mulher são o sexo e a alimentação, uma vez que, descontadas as condições físicas desse homem, ele continua saudável para comer e copular, com voracidade.

Rodado em vídeo, com uma estética curiosa de produto eletrônico já quase retrô, com inserções momentâneas de imagens de arquivo da Guerra transmitindo uma sensação palpável dos efeitos do conflito sobre os japoneses, Caterpillar é uma sessão difícil.

É possível que o sexo nunca tenha sido filmado nesses termos no cinema, agregando ainda um mal estar formidável sobre as lembranças sórdidas desse soldado no conflito, assim como o estado de espírito fragilizado da esposa, presa entre ser serviçal, cozinheira e objeto sexual. Não seria uma surpresa se Caterpillar sair de Berlim com algum prêmio importante.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, Fev 2010

San Qiang Pai An Jing Qi


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Depois dos filmes novos de Polanski e Scorsese, percebe-se que os cineastas mais experientes estão exercendo o poder de fazer, basicamente, o que lhes der na telha, sensação também presente no novo do realizador chinês Zhang Yimou, San Qiang Pai An Jing Qi (Uma Mulher, Um Revólver e um Restaurante de Macarrão), exibido em competição. Esta refilmagem bastante colorida de Gosto de Sangue, dos Irmãos Coen, é um filme curioso de Yimou, narrado, durante boa parte da projeção, sem diálogos.

Yimou já ganhou três ursos de ouro em Berlim e adapta para a China do século 18 o primeiro longa dos Coens, história de traição ambientada no Texas de 1984. Inicialmente o tom é de comédia, com a visita de um vendedor de armas persa, que vende uma novidade tecnológica para a infeliz esposa: um revólver de três tiros. Ela e o amante pretendem usar a arma no marido, dono de um restaurante cuja especialidade é macarrão. Uma cena engraçada onde cozinheiros preparam massas foi aplaudida em cena aberta.

A descoberta do marido de que é traído irá mudar totalmente o tom do filme, que deixa de lado os diálogos para apostar numa série de seqüências onde as imagens falam mais alto. Ele contrata um policial corrupto para dar cabo da esposa e amante, e logo as traições tomam rumos delirantes de violência coreografada. No filme dos Coens, o tom era de um envolvente filme de horror, mas aqui Yimou parte para uma espécie de comedia teatral de erros, cujo efeito geral é de uma inconseqüência.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, Fev 2010

En Cand Vreau Sa Fluier, Fluier



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O filme que eu vi depois de Submarino também era sobre adultos lidando com um passado de abandono.O filme romeno En Cand Vreau Sa Fluier, Fluier (Se Eu Quiser Assoviar, Assovio), de Florin Serban, chama a atenção pelo tratamento totalmente diferente. Consegue ater-se à idéia de qualidade realista que tem destacado a produção romena recente, sem o brilho dos seus melhores filmes (A Morte do Sr. Lazarescu, 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias, Policial Adjetivo, para citar três).

Estamos no território da câmera na mão (em grande parte, calma), dos planos que observam, de um naturalismo interessado em acompanhar o personagem central, jovem de 18 anos, preso num reformatório. Ele está a duas semanas da liberdade, e precisa evitar encrenca com outros presos, sempre prontos para medir forças e marcar territórios. Apaixona-se ainda sobre uma estagiária de serviços sociais e a história transforma-se numa espécie de ensaio bem observado sobre a frustração, o medo e a sensação de abandono.

É o tipo de conflito de qualidade que sempre chama a atenção nesse cinema romeno, filmografia que parece ter como base um sentido muito forte de boa literatura. Extraem muito do que aparenta ser pouco. Mas nunca é pouco.

Filme visto no Berlinale Palast, Berlim, Fev 2010

Sunday, February 14, 2010

Exit Through the Gift Shop


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Por uma coincidência de programação, Exit Through the Gift Shop (Saída Pela Loja de Presentes, tradução literal), que vi a seguir, veio como um tipo de resposta para Lixo Extraordinário.

Para quem não conhece, Banksy é um artista e quase lenda urbana inglesa, originalmente de Bristol, um provocador que usa as ruas como espaço. Seu trabalho é claramente fruto de um sarcasmo brutal para com a sociedade, gerando excelente tensão não apenas pelo que as obras em si dizem, mas também pelo formato delas.

Bansky, entre dezenas de ações amplamente registradas, agregou ao muro erguido por Israel, na Palestina, o ícone comercial do “corte aqui com uma tesoura”, instalou um prisioneiro da base de Guantanamo (macacão laranja e capuz preto numa boneca inflável) no trenzinho da Disneylândia e conseguiu pendurar obra sua numa exposição da Tate Gallery, ao lado de grandes mestres da pintura.

A sessão de Exit Through the Gift Shop foi precedida de vídeo especial gravado por Banksy, na penumbra, com capuz e voz distorcida. “Espero que esse filme faça pela street art o que Karate Kid fez pelo... er... karatê. Auf Wiedersehen”. Sua presença não é esperada em Berlim, mas há rumores de que sua marca apareça na cidade, deixada por ele em ações realizadas na calada da noite.

Inicialmente, o filme registra a ‘street art’ a partir do material obsessivamente registrado em vídeo pelo francês radicado em Los Angeles Terry Guetta, que ganhou dinheiro revendendo roupa para fashionistas da cidade, o público cool que aprecia uma idéia difundida de originalidade. “Quando a roupa vinha com defeito, eu cobrava 500 dólares a mais”.

Por causa do seu primo francês, que passou a assinar obras afixadas nas ruas de Paris como Space Invader (figuras dos jogos Atari onipresentes na paisagem urbana), Guetta virou guerrilheiro da câmera, acompanhando outros nomes importantes da street art, como o americano Shepard Fairey. Saia nas rondas noturnas, sempre evitando policiais e seguranças, e filmando.

Alem de registrar o trabalho e ações dessa cena (alguns deles com identidade mantida em sigilo), Getta passa a registrar Banksy. Aos poucos, o cineasta amador revela-se o principal foco de Exit Through the Gift Shop, e o gancho de esquerda do filme.

Tão fascinado pelo mundo de artistas natos, à frente de obras impactantes, Getta decide que ele mesmo se lançará como artista, assumindo a alcunha de Mr. Brainwasher e investindo farta verba pessoal para contratar uma equipe que seja capaz de produzir uma salada-pop-art bem divulgada. Apresenta uma repetição de todos os clichês possíveis (Andy Warhol é o mais roubado) do mercado, em embalagem bem cuidada por terceiros.

A vernissage de lançamento, divulgada com frases de efeito para a imprensa de Banksy e Fairey, ambos reticentes sobre a produção do amigo, a arte de Mr. Brainwasher é um sucesso absoluto. Isso nos leva à questão ancestral: o que é arte? Talvez no mercado, assim como também no cinema, seja, em grande parte, a repetição do que todos já estão fazendo, sob pesada divulgação e marketing. Felizmente, há sempre os artistas verdadeiros, e suas obras que andam sozinhas, como esse filme, de Banksy.

Filme visto no Cinemax 6, Berlim, Fev 2010

Lixo Extraordinário

Artsy Eye For The Trash Guy

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


As artes plásticas apareceram em dois filmes que não poderiam ser mais distantes um do outro, este final de semana, em Berlim. No doc brasileiro Lixo Extraordinário (Waste Land, exibido na Panorama), da inglesa Lucy Walker (co-dirigido por João Jardim e Karen Harley), temos um testemunho involuntário sobre a auto-importância da arte e do artista pela visão de mundo de Vik Muniz, o sol do filme. Em Exit Through The Gift Shop (seleção oficial fora de competição), primeiro filme do ‘street artist’ inglês Banksy, há uma reflexão rica sobre expressão artística e os valores a ela aplicados, sem auto-importância.

Lixo Extraordinário é uma produção da O2 Filmes, de Fernando Meirelles, e passa como um vídeo institucional sobre Vik Muniz. A trilha é de Moby. Nas suas próprias palavras, “sou, possivelmente... o artista brasileiro que mais vende no exterior”, Muniz parte para usar a sua importância, iludida por uma filosofia novo-rico marcante (Muniz afirma ter sido pobre e já ter conquistado tudo na vida), para ajudar um seleto grupo de catadores de lixo no aterro sanitário de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro.

A idéia de Muniz, aqui registrada, é fotografar cada personagem interagindo artisticamente com o lixo, retrabalhar cada imagem com pedaços artísticos de lixo e fazer obras de arte que sejam vendidas em Londres por uma baba. O dinheiro é revertido para a comunidade, aqui representada por lindos personagens que o filme usa de maneira estarrecedora.

É um filme absolutamente essencial para discutir questões já antigas na representação problemática das classes no Brasil, pelo cinema. Há ainda o bônus de Lixo Extraordinário ser um híbrido de olhar brasileiro com o olhar estrangeiro, ganhando esse último numa quebra de braços entre a displicência e a simples cegueira.

De fato, o aspecto “for gringos only” é notável não só nas imagens apaixonadas de dezenas de pessoas lutando por toneladas de lixo, os pés encharcados em espesso chorume, mas ao acompanharmos Muniz (que mora e trabalha nos EUA) e seus colaboradores brasileiros falando inglês em reuniões conceituais do projeto, aparentemente numa encenação incômoda para a câmera.

À frente de computadores, como num estranho reality show, tomam decisões imbuídas de bruto poder, tanto sobre seus personagens carentes de tudo na vida, como sobre o próprio lixo. Ou seja, a matéria prima é tão importante quanto as pessoas. O filme ganhou o prêmio do público em Sundance e foi aplaudido de pé em Berlim por parte da platéia.

Filme visto no International, Berlim, Fev 2010