Friday, January 29, 2010




O Festival de Roterdã está com uma mostra especial chamada 'Back to The Future', com filmes que, de certa forma, mostraram caminhos para o futuro. Videodrome (1982), do Cronenberg, é um deles, mas hoje eu fui ver 'Disque M Para Matar' (Dial M For Murder, 1953), de Hitchcock, projetado em 35mm 3D! Um projecionista, que acompanha a cópia, foi trazido de Hamburgo.

A sessão põe um pouco as coisas em perspectiva. 57 anos antes de Avatar, o 3D já era uma realidade intrigante. Foi oportunidade rara de ver o filme projetado no formato, com os óculos 'roots' originais (leve tontura durante a projeção, com interrupção de 3 minutos).

'Disque M Para Matar', antes mesmo de ser lançado nos cinemas em 1954, amargou o fim da 'onda' do 3D nos anos 50, fazendo a Warner optar pela versão 2D.

Eu nunca tinha visto o nome 'Alfred Hitchcock' flutuando na minha frente, mais destacado do que o filme, ali atrás. Ele merece a deferência.

Foi muito interessante tentar entender os critérios para destacar elementos específicos de cada cena, sendo o campeão de aparições em alto relevo, um diabo de um abajour na sala/palco.

De qualquer forma, o filme me deu a mão desesperada de Grace Kelly, sendo estrangulada, estendida em nossa direção. Uma idéia tão simples. Nunca vi nada tão dramático como imagem dentro do formato. Dava vontade de pegar naquela mão, simplesmente. K.M.F

Thursday, January 28, 2010

Invictus


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Clint Eastwood, 80 anos incompletos, continua sendo o extraordinário carpinteiro. Sua madeira de lei bem trabalhada faz toda a diferença. Invictus (2009), seu novo filme, é outro exemplar de cinema americano clássico lindamente deslocado no panorama atual. Numa época em que valoriza-se tanto a imagem 3D, eis um filme tridimensional em outros níveis.

Invictus é essencialmente um “filme esportivo” - atletas desacreditados irão conquistar a vitória importante antes do fim, sob música triunfal. A julgar pelos seus últimos filmes, suspeita-se que Eastwood esteja num processo de regressão nostálgica que o leva a fazer os filmes que ele talvez tenha visto quando jovem.

É o cinema do refluxo de sensações clássicas, como sua impressionante produção recente pode ilustrar tão bem (Menina de Ouro, A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, A Troca e Gran Torino). Foram todos realizados depois do seu 70o aniversário.

Em Invictus, Eastwood faz um filme sobre visão política e liderança. Como a própria arte é inevitavelmente política, temos aqui o esporte como projeção de idéias e poder, fruto da experiência de vida, outra constante na obra de Eastwood.

O personagem central é Nelson Mandela, o pacifista sul africano que, depois de 24 anos preso sob a repressão do apartheid, foi eleito presidente. O período histórico é o da dura transição democrática na África do Sul, em 1994.

O roteiro de Anthony Peckham adapta o livro Playing the Enemy: Nelson Mandela and the Game That Made a Nation (Jogando com o Inimigo: Nelson Mandela e o Jogo que Formou uma Nação), escrito por John Carlin.

Como de costume, a narrativa clássica de Eastwood é cristalina, sem qualquer vestígio de frescura. Vejam, por exemplo, a seqüência de abertura, que apresenta o apartheid em alguns belos segundos: garotos brancos jogam rugby num gramado viçoso. Lá longe, garotos negros jogam futebol na poeira. Uma estrada separa os dois campos, e nessa via passa um comboio de veículos levando Nelson Mandela.

Na África do Sul, o rugby, esporte popular nas colônias inglesas, tem a identidade cultural do apartheid por ser “jogo de branco”, dos afrikaners. Mandela irá usar o rugby como objeto de união e cicatrização social. Obviamente, um conceito cinematográfico que não sana os problemas sociais enormes do pais, mas, sem dúvida, um belo pensamento social que pode ter feito um grande bem na vida real.

Mandela chama o capitão da seleção nacional, Pierre Pienaar (Matt Damon), branco, família racista, para uma conversa. Pienaar sai do encontro impactado. Ele energiza sua equipe rumo à Copa do Mundo de rugby de 1995, realizada na própria África do Sul, sob o olhar de Mandela, motor do processo.

Ele também nos alimenta sabiamente com informação sobre um panorama histórico-racial a partir de cenas intimistas. Uma empregada doméstica não é apenas uma figurante muda (ou sorridente) ali no fundo, mas alguém que tem opinião, que se faz ouvir, que marca sua presença.

Os seguranças de Mandela poderiam existir num filme só para eles, personagens essenciais para ilustrar diferenças, ressentimentos e revisões históricas. Misturados racialmente por imposição inteligente de Mandela, são homens (policiais truculentos de formação, dos dois lados do apartheid) cujas expressões de surpresa constante ilustram os caminhos corajosos tomados por um político ganhador do Nobel da Paz. Melhor ainda quando algumas dessas surpresas são nosssas, como espectadores, num filme que ainda arranja espaço para uma cena estranhíssima (no melhor sentido) como a que utiliza um Jumbo 747. De onde veio aquilo?

Com cenário tão bem anunciado, Eastwood nos leva ao tradicional embate final, onde a África do Sul enfrenta a Nova Zelândia. Não é um problema para o espectador não saber nada de rugby, pois é tudo muito bem registrado, em imagem larga organizada com fusões e elipses em brilhante Panavision.

É curioso observar esse cinema de coração enorme feito por Eastwood, sua beleza quase sempre comovente, sua honestidade estética um prazer constante. É a história de uma vitória triunfal que realmente ocorreu na história real, algo que normalmente seria bom demais para ter sido verdade, transformada num filme à altura dessa história.

Filme visto no Plaza Casa Forte, Recife, Janeiro 2010

Nine



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


É sempre algo de triste arranjar o que dizer, seja verbalmente ou em escrita, sobre um filme como Nine (EUA, 2009), o musical de Rob Marshall que estréia hoje. Não é exatamente ruim, mas também não é bom, nem memorável. Há todo um esmero na tela, mas fica a sensação de desperdício.

Para conhecedores da obra de Federico Fellini, especialmente um dos seus filmes mais admirados – 8 ½ (1962) -, o filme abre possibilidades não mais do que frívolas. Da curiosidade mórbida de desvendar o que um produto hollywoodiano do século 21 estaria fazendo com tamanho clássico, à tentativa de enxergar uma homenagem emotiva ao cinema do passado, Nine termina, de fato, inspirando desagradável sensação de “e daí?

8 ½ é uma espécie de tempestade criativa sobre um artista (um cineasta) em crise com ele mesmo, com sua arte e seu mundo. A riqueza do filme vem exatamente das muitas camadas imprevisíveis dessa crise, representação de toda a carga que temos na cabeça quando a vida está confusa. 8 ½ é um filme essencial, sua liberdade interna inspiradora de uma centena de outros filmes desde então.

Em Nine (o número nove em inglês), temos Guido (Daniel Day Lewis, sempre com força), um artista (um cineasta) em crise com ele mesmo. Os limites do filme vêm exatamente da pobreza de espírito da proposta, pois o problema do personagem casado parece resumir-se à sua natureza namoradeira. Não é difícil puxar o cordão e ver que a ponta vai dar no conservadorismo do olhar americano.

Uma outra coisa: o fato de Guido não ter mais nada a dizer como artista permanece apenas uma afirmação vaga, uma linha solta na sinopse.

É um filme americano atual que dá-se o luxo de ter um herói adúltero que fuma muito, e logo suspeitamos que isso só é possível pelo fato de homens italianos terem licença cultural (o clichê) permanente para esse tipo de coisa, e que os cigarros em cena são coisa de europeu. O filme, aliás, foi lançado no mesmo mês de Avatar nos EUA, que gerou celeuma pelo simples fato de a personagem de Sigourney Weaver fumar em cena.

Marshall havia mostrado em Chicago (2002), seu musical anterior (também bancado pelo bom gosto berrante dos irmãos Weinstein), que seus números de dança e cantoria surgem mesmo é na sala de montagem, e não como os grandes clássicos nos mostravam: no estúdio, na frente da câmera, em ângulos abertos, generosos, capazes de deixar o espectador boquiaberto com o balé de corpos soltos.

Talvez o fato de Nine contar com uma coleção formidável de puros sangues femininos para garantir o glamour proposto explique isso. Não é fácil encontrar atrizes classe A hoje que se movimentam como Leslie Caron, Cyd Charisse ou Ginger Rogers se movimentavam no passado. Vejam como em Chicago e em Nine a montagem ajuda bastante a idéia de movimentação. Uma perna grossa levantada aqui, uma rodopiada ali, e o espectador é enganado via cortes e ângulos favoráveis. Muito frustrante para quem conhece o gênero musical.

De qualquer forma, estão lá Kate Hudson, Nicole Kidman, Penélope Cruz, Marion Cotillard e Sophia Loren, com auxílio luxuoso de Judi Dench. É quase sempre interessante anotar suas presenças glamourosas durante o filme, o que nos leva a crer que os Irmãos Weinstein representam uma das últimas centelhas de um modelo de produção que lembra o "studio system" do passado. Investem na realeza tradicional da imagem com um cinema de mercado à moda antiga. Filmaram inclusive nos míticos estúdios romanos da Cinecitta, onde Fellini filmou.

Sobre as mulheres de Nine, vale destacar que Cotillard é a esposa sofrida de Guido, e essa atriz francesa sempre ameaça roubar a atenção dos filmes onde atua. Kidman e Cruz interpretam amantes que representam culturas distintas, ou clichês físico-raciais (Kidman a estrela fria, Cruz a amante latina de sangue quente). Registram como meras caricaturas.

A personagem de Hudson, no entanto, repórter da revista americana Vogue, parece definir Nine como um todo. Linda, toda bem vestida e totalmente oca, aparece à frente de um número musical (picotado) chamado Cinema Italiano. Ela nos dá a chave para o clima geral de ensaio fotográfico de moda retrô que permeia a sessão.

Filme visto na Sala 8 UCI Boa Viagem, Recife, Janeiro 2010

À Procura de Eric


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Assim como em Invictus, de Clint Eastwood, que também estréia hoje, À Procura de Eric (Looking For Eric, Inglaterra/França, 2009), filme de Ken Loach, tenta conciliar a vida a partir da filosofia do esporte, nesse caso o futebol. A pauta de Loach, no entanto, veterano cineasta inglês que sempre voltou-se para um olhar realista e humano, sugere uma fantasia prazerosa que dá um olhar bem humorado à idéia de fanatismo. É narrada com enorme simpatia e um senso de romantismo surpreendente.

A ficha corrida de serviços prestados ao cinema inglês por Loach é longa. Seu primeiro filme foi o grande Kes (1969), lançado em DVD recentemente no país, e há quatro anos ganhou a Palma de Ouro por Ventos da Liberdade (The Wind That Shakes the Barley). Loach também adora futebol.

O esporte sempre se infiltra nos seus filmes, normalmente com muito senso de humor. É de Loach um dos melhores curtas da compilação Cada Um Com Seu Cinema (2007), organizada pelo Festival de Cannes. Ali, um pai leva o filho ao multiplex para ver um filme. Na fila, percebem que só tem porcaria passando e decidem felizes trocar o programa por uma pelada.

Em A Procura de Eric (que esteve na seleção oficial de Cannes ano passado, onde foi aplaudido em cena aberta), o personagem principal (Steve Evets, caba simpático) é um carteiro, homem doce. Seu fanatismo, do tipo mais estridente, é pelo futebol (torce pelo Manchester United). No nível mais íntimo, exerce um outro tipo de fanatismo, do tipo amoroso, com um saudosismo paralisante pelo seu primeiro grande amor, Lily (Stephanie Bishop).

Eric abandonou Lily durante uma crise existencial da juventude, relacionada ao choque de ser pai tão jovem. Flashbacks nos mostram o jovem Eric para entendermos o quarentão gente finíssima que não está nada bem com os caminhos da sua vida, refletida na sua própria casa, uma bagunça de filhos e enteados desocupados, jogando videogame.

Talvez do puro desespero, entra na história um mentor espiritual para Eric, o ídolo já aposentado do Manchester United e craque francês Eric Cantona (ele mesmo, numa atuação tranquilíssima). A aparição de Cantona é o provável fruto de uma mente masculina carente de auto estima e de um norte emocional, estimulada por referências projetadas e nuvens de maconha queimada.

A partir daí, o título À Procura de Eric ganha interpretação dúbia, uma vez que os dois Erics passam a ser necessários, especialmente o Eric carteiro, que precisa se achar. Ele passará por processo de recuperação gradual de Lily, uma mulher doce como ele, enquanto administra o trabalho e as tensões (muito engraçadas) na torcida.

Vendo Eric e seus amigos exercendo sua doença pelo Manchester, lembramos de uma passagem de Invictus, onde alguém afirma que “futebol é um jogo de cavalheiros assistido por hooligans, enquanto o rugby é um jogo de hooligans assistido por cavalheiros”.

Loach é claramente o cavalheiro nessa história. Filma Londres com sol e claridade (a exemplo de Simplesmente Feliz, de Mike Leigh, o que está acontecendo com os cinzentos ingleses?) e passa a impressão de que ele está de bem com a vida. À Procura de Eric é generoso.

Filme visto na sala Lumiere, Cannes, Maio 2010