Saturday, May 22, 2010

5X Favela (exibição Especial)



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Passou em sessão especial 5X Favela – Por Nós Mesmos, uma combinação em longa metragem de cinco histórias curtas, realizadas por jovens diretores que têm origem social em comunidades cariocas, ou favelas. Considerando que Berlim exibiu em primeira mão o paulistano Bróder, de Jéferson D, também dotado de um olhar de dentro, 2010 mostra sinal interessante de que a imagem do cinema no Brasil está chegando às classes menos favorecidas, que sempre foram retratadas passivamente pelas classes mais favorecidas. Se isso será uma realidade natural a partir de agora, veremos.

O projeto pertence a Renata De Almeida Magalhães e Carlos Diegues. 48 anos atrás, ele juntou-se a colegas de sua geração, “todos burgueses engajados”, nas suas próprias palavras, ao me falar em Cannes, para fazer 5X Favela. Eram cinco histórias, cada uma dirigida por Diegues, Leon Hirzman (idealizador desse filme originalmente, já falecido), Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade e Marcos Farias.

Na nova versão do filme, há também cinco episódios, que são os seguintes: Fonte de Renda, de Manaíra Carneiro e Wagner Novais. Feijão e Arroz, de Rodrigo Felha e Cacau Amaral Wesley, Concerto Para Violino, de Luciano Vidigal, Deixa Voar, de Cadu Barcelos, e Acende a Luz, de Luciana Bezerra.

No encontro com a imprensa, num píer da praia privada do Hotel Majestic, em Cannes, eles mencionaram uma questão interessante já no titulo original do projeto, recentemente corrigida.

O filme teria se chamado 5X Favela – Agora Por Eles Mesmos, ato falho ao, mais uma vez, tratar a classe observada como terceira pessoa. Luciana Bezerra lembrou que foi o cineasta Ruy Guerra, um dos mentores do grupo através de oficinas de roteiro e direção, que chamou a atenção e sugeriu o titulo final, 5X Favela – Agora Por Nós Mesmos.

O filme tem um resultado dos mais felizes, começando pela honestidade sentida no todo e passando pela competência de contar as histórias, todas aparentemente pequenas, mas que ilustram perfeitamente o panorama geral de ser pobre no Brasil, de estar, de alguma forma, por fora, no Brasil. Chega a ser tocante em vários momentos.

No primeiro episódio, Fonte de Renda, um rapaz passa em direito e descobre as dificuldades de entrar numa bolha social que não é a sua. Amigos ricos simpáticos acham que ele será um novo canal para trazer ‘paradas’ da favela e os livros técnicos não são baratos. Silvio Guindane interpreta o rapaz com inteligência, num personagem que tem respeito por si mesmo. Há uma participação de fato emotiva no filme de Hugo Carvana, e é muito bom imaginar os ecos de Valdomiro Pena (de Plantão de Polícia, clássica série da Globo) nesse curto papel.

Feijão e Arroz tem o encanto de ter uma trama pequenina, sobre um garoto que ouve do pai que não agüenta mais levar a mesma marmita do titulo para trabalhar, todo dia. O filho junta-se a um amigo para produzir uma galinha, nos levando a um desfecho tocante sobre memórias de infância e comida.

O segmento contem ainda uma cena maravilhosa, onde os dois meninos de comunidade são virtualmente assaltados por crianças ricas saindo de uma escola, num momento que mistura sabiamente algo que pode ser bullying, mas é claramente um roubo. A reversão de papéis interessantíssima.

Detalhes como esse põem o filme lado a lado com Bróder, e percebemos uma mudanã de discurso e ponto de vista. Em Bróder, me impressionou a visão benvinda e caricata de gente rica, que, no filme de Jeferson D, passa como uma sátira social.

Concerto Para Violino, editado no meio do programa, dando um certo peso necessário ao todo, é a única história que fala abertamente sobre o tráfico, ainda que ancorada na amizade de três amigos, esfacelados pela violência. A trama e seu desfecho são surpreendentemente brutais, mas sempre com uma segurança notável.

Deixa Voar nos mostra amigos soltando papagaio (ou pipa), quando a pequena estrutura de bambu e papel cai numa área proibida, dominada por outro grupo. O que poderia terminar em tiro, acaba com apertos de mão motivados por interesses mútuos e saudáveis por meninas/mulheres, o que não deixa de impressionar pelo clima romântico gente boa.

Essa delicadeza encerra o filme com Acende a Luz, da cineasta mais conhecida do grupo, oriunda do Nós do Morro e responsável pelo premiado curta Mina de Fé. Luciana Bezerra filma um natal quente no Vidigal, e sem eletricidade.

O técnico da companhia elétrica é gentilmente seqüestrado pelos moradores até que a luz volte, num tom de bom humor carioca com comedia italiana clássica. A imagem que encerra o filme é não apenas linda, mas sugere a promessa de que uma área antes escura da cinematografia brasileira talvez esteja acendendo aos poucos.

O que mais chama a atenção nesse projeto é como cada idéia foi bem dimensionada, a partir de roteiros inteligentes. Duas observações válidas: o visual constante de todos os filmes poderia ter sido repensado, talvez com uma equipe de fotógrafos diferentes, e a contextualização geográfica do Rio, cidade dividida, não é muito apresentada.

No encontro com a imprensa, os realizadores deixaram claro que Diegues os convidou e lhes deu total controle sobre o filme. Manaíra Carneiro se pergunta “se o filme não dará início a um movimento no cinema brasileiro, formado por realizadores com um outro olhar sobre a sociedade”.

No entanto, o assunto mais abordado era o da representação: “Queria que meu filme fosse alegre, que mostrasse uma alegria e um bom humor que são tão particulares na favela”, disse Bezerra.

Sobre o personagem universitário do seu segmento, Novais diz que “queria tratar com respeito, sendo igual a qualquer pessoa, nunca da maneira depreciativa que alguém da favela é normalmente tratado”.

Uma palavra que ouvi mais de três vezes de alguns colegas brasileiros, mas de nenhum dos estrangeiros que viram o filme: "ingênuo". De forma alguma achei o filme ingênuo, na verdade, me impressionou exatamente a forma como as histórias são pequenas, algo que pode levar alguns a confundir senso adequado de escala com total falta de pretensão.

Normalmente, nossos filmes grandes, sobre favela ou sertão, são, em geral, tomados por temas gigantescos em letras garrafais, e o resultado é o conceito claro do 'elefante branco', sem vida ou habitação. Esse 5X Favela é um filme pequeno que tem coração.

Filme visto na Buñuel, Cannes, Maio 2010

Poetry (competição)



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Passou também em competição mais um exemplar de evidentes qualidades do cinema coreano, Poetry (Poesia), filme de Lee Chang-dong. É um melodrama maravilhoso que não seria uma escolha torta para a Palma de Ouro, caso o júri não tenha ‘los cojones’ para reconhecer My Joy, de Sergei Losnitza, ou Uncle Boomee Who Can Recall His Past Lives, de Joe.

É a história de uma senhora de 66 anos que mora com o neto, adolescente recluso, e decide entrar numa oficina de poesia. O professor avisa a turma que até o fim do curso, cada um terá que compor um poema. É difícil ver um filme que propõe uma obra artística dentro da sua narrativa (uma musica, uma pintura, um poema) e consegue nos surpreender com algo realmente bom, em cena, como alguns dos poemas criados nessa oficina.

Poetry, na verdade, é bem mais complexo, começando com o corpo de uma garota boiando num rio e a suspeita de que a personagem principal está perdendo a sua memória lenta e dolorosamente. A atriz Kim Hira, conhecida na Coréia por papeis secundários na TV, deve ser a escolha mais óbvia para a Palma de Atriz. Ela é incrível.

Filme visto na Lumiere, Cannes, 2010

Fair Game (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A única presença americana esse ano na competição passou ontem e se chama Fair Game, do cineasta Doug Liman. Ele fez um filme bom que deverá ser pouco popular nos EUA. Faz uma lavagem realista de roupa suja sobre as verdades por trás do ímpeto de Bush em derrubar Saddam Hussein, fabricando mentiras sobre as tais armas de destruição em massa. Deverá ser o companheiro de prateleira do recente Zona Verde, de Paul Greengrass, embora o filme de Liman invista na força de personagens, aqui defendidos por Sean Penn e Naomi Watts.

Só nesse primeiro semestre, são três filmes de destaque que usam o termo "zona verde" (a área considerada segura pelas forças que ocupam o Iraque). Além do filme de Greengrass, Fair Game e o último de Ken Loach, Route Irish, também em competição em Cannes, lidam com aspectos periféricos importantes da Guerra. E há ainda um quarto, Armadillo, relato muito interessante sobre a guerra na geografia do Afeganistão.

Watts interpreta Valerie Plane, uma mãe de dois filhos, casada com um diplomata escanteado (Penn), e moram em Washington. Seus amigos e vizinhos não sabem que essa mulher, que todos acreditam ser uma empresaria é, na verdade, agente da CIA.

O filme abre em outubro de 2001, um mês depois dos ataques aos EUA, e o serviço de inteligência americano está fervilhando. O principal projeto deles é levantar provas para que uma ação militar contra Hussein faça sentido.

O filme, claramente de esquerda, gerou comentários amargos de dois colegas americanos, saindo da sessão: “o único americano em Cannes e é anti-americano!” É curiosa a reação.
Liman mantém os conflitos bem próximos da realidade, que talvez tenha sido o toque decisivo dado por esse diretor (Swingers, Vamos Nessa) no primeiro filme que dirigiu da série Identidade Bourne, onde o gênero ‘espião’ ganhou levada mais realista.

Há um tom semelhante ao de filmes clássicos americanos do passado, e o espectador não tem tempo para piscar os olhos acompanhando o jogo de poder. Num momento muito curioso, a guerra é declarada em rede nacional de TV, e vemos o personagem de Sean Penn num saguão de aeroporto, todos ao seu redor dormindo.

Por ser verdadeira, a história soa ainda mais enervante. Plane foi exposta (identidade revelada para alguém que era agente da CIA) num artigo enfurecido da vice-presidência americana, publicado no Washington Post, tiro no pé do próprio governo.

O motivo da raiva foi um outro artigo do marido de Plane (Penn) que questionava as ações da Casa Branca, que já fabricava razões para começar a Guerra do Iraque, frustrado com as informações bem pesquisadas da CIA de que Saddam não tinha as tais armas de destruição, e que nada levava a crer que eles teriam acesso a essas armas.

Fica a desconfiança de que Fair Game (Jogo Justo) venha aumentar a lista de filmes questionadores sobre o atual conflito dos EUA no oriente médio, a exemplo de Redacted, de Brian de Palma, o oscarizado Guerra ao Terror (um fracasso comercial, de qualquer forma) e Zona Verde, filme de Paul Greengrass que não aconteceu.

Filme visto na Lumiere, Cannes, Maio 2010

Prêmios Un Certain Regard


Fui ver agora há pouco a entrega de prêmios da mostra Un Certain Regard, que tem um cerimonial dentro da mostra oficial muito tranquilo. Thierry Fremaux chama todo o pessoal de apoio e seguranças, e sua equipe de seleção da mostra, para o palco. É uma celebração, e de repente o peso de todo o festival, e os dias aqui desfrutados, caem nos ombros dessas pessoas. É muito bom.

A presidente do Júri, Cliare Denis, começou dizendo que o filme do Manoel de Oliveira, O Estranho Caso de Angélica, escolhido como filme de abertura, "iluminou toda a seleção com sua poesia". Foi isso mesmo. K.M.F

Os prêmios:

Prêmio Un Certain Regard (Fondation Groupama Gan)
Hahaha, de Hong Sangsoo (Coréia do Sul)

Prêmio do Júri
Octubre (Peru), de Daniel Vega e Diego Vega.

Prêmio de Interpretação Para as Três Atrizes de Los Labios
Adela Sanchez, Eva Bianco, Victoria Raposo

Friday, May 21, 2010

2 Cortes Secos

2 Cortes Secos me chamaram a atenção em Cannes, de dois filmes que colam ficção com realidade. Em 'Fair Game', de Doug Liman, as palavras da personagem interpretadas por Naomi Watts são completadas pela personagem real que ela interpreta, a partir de imagens de arquivo.

No dinamarquês Armadillo, filme punk rock sobre destacamento dinamarquês enfrentando o Talibã no Afeganistão, uma explosão num videogame de combate vira uma explosão de estrada que estilhaça as pernas de um soldado.

Psicose 50 Anos


Você está na 1a fila da Sala 60eme, de frente para a tela que ameaça desabar sobre você. As cordas de Bernard Hermann fazem seu peito vibrar. É PSICOSE de Hitchcock. (foto de Marcelo Miranda, eu estou à direita, afundado na cadeira, já temendo o filme) K.M.F

Thursday, May 20, 2010

'My Joy'


'My Joy', de Sergei Losnitza.

Obs: Esse texto é uma revisão geral acrescida do texto anterior sobre 'My Joy' publicado anteriormente.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A Palma de Ouro clara e evidente, a primeira desse Festival de Cannes, é a produção Alemanha/Ucrânia Schastye Moe (My Joy – Minha Alegria), do cineasta russo Sergei Losnitza, que não apenas estréia no longa metragem, mas o faz já na competição. Além da Palma, ele ainda arrisca ganhar a Câmera de Ouro, para estreantes. Poderosíssimo, como só o cinema russo parece conseguir ser, esse filme passa como uma parábola de proporções bíblicas sobre a Rússia atual, cultura fascinante marcada por uma história brutal que sugere pesado karma.

Losnitza apresenta uma pintura sofisticada do estado de espírito de toda essa cultura, pelo jeito marcada pela palavra “documentos...”, falada inúmeras vezes de maneira ameaçadora por homens fardados exercendo as piores formas de poder, oprimindo os mais fracos.

O filme parece tirar todo o ar da sala. O espectador pode sentir-se intimidado pelas imagens de Losnitza, num filme que abre com um trator passando literalmente por cima do espectador. No entanto, há sempre a certeza de que ele sabe bem o que está fazendo.

A força descomunal do filme poderá ser discutida e/ou questionada pelos que não têm intimidade com o país e sua história recente, ou seu panorama atual, algo que um outro realizador jovem, Ilya Khrjanovsky, fez no seu primeiro longa, 4 (2005), inédito comercialmente no Brasil. Tudo pode parecer agressivo demais, sombrio demais.

Losnitza tem uma carreira brilhante no documentário em curta e média metragem. Fez um outro filme impressionante chamado Blockade (2006) a partir dos arquivos do orgão de propaganda soviético sobre o cerco nazista a São Petersburgo (Leningrado, na época), recriando sons para as imagens mudas que mostram uma cidade asfixiada tentando viver.

Em Schastye Moe, o espectador é colocado num estado de tensão suspensa constante, e entra na casa das duas dezenas as imagens potentes da força bruta esmagando sinais inconfundíveis de delicadeza. Quando existe a suspeita de nihilismo por parte do realizador, ele nos dá uma sinfonia de rostos humanos numa feira de cidade pequena, um homem que só quer passar amor para seu filho pequeno, um outro que quer voltar para casa com um vestido para sua mulher.

O personagem principal é um motorista de caminhão (Viktor Nemets) que, como um garoto num conto de fadas, tenta manter-se na estrada principal, mas aos poucos toma caminhos cada vez menores e perdidos na floresta, aqui filmada em dois tons: no verde do verão e no branco gelado do inverno, onde Schastye Moe confirma suas tendências fabulares.

O fotógrafo moldavo Oleg Mutu (A Morte do Senhor Lazarescu, 4 Meses 3 Semanas 2 Dias) usa a tela larga scope de maneira orgânica, cada espaço ciente de sua importância, unindo estética e informação narrativa.

Losnitza nos leva a uma estrutura fabular perfeitamente cortada pelo clima de modernidade, vez ou outra nos contando episódios isolados no passado russo de uma memória afetiva traumatizada pela guerra.

Com a bússola moral quebrada, Losnitza desconstrói nossa segurança de espectador treinado, nos deixando sozinhos com os elementos. É ainda mais impressionante a sequência final, um apocalipse perfeitamente integrado à história, claramente fruto de um russo que lamenta muito o estado atual da cultura política e herança histórica que parece prender o seu país num estado constante de trauma.

MIKHALKOV - A participação de Schastye Moe na competição de Cannes terá um aspecto interessantíssimo pois baterá de frente com um outro filme, O Sol Enganador 2, produção russa dirigida pelo veterano Mikhail Mikhalkov. O choque será não apenas estético, mas político.

Conversando com colegas russos, soubemos que, diferente de Losnitza, que abandonou a Rússia por não saber mais lidar com o país, especialmente sua política ufanista de cinema, Mikhalkov é próximo do poder e de Vladimir Putin, que muitos na Rússia vêem como herdeiro da mentalidade stalinista de autoridade e propaganda.

Mikhalkov esteve também responsável pela política de cinema na Rússia, que praticamente deixou de apoiar filmes independentes para canalizar verba para esse seu filme novo, o mais caro da história cinematográfica russa (custou 40 milhões de dólares). Mikhalkov seria ainda uma continuação das reduzidíssimas classes abastadas que prosperavam favorecidas pelo antigo regime, seu filme uma promessa de propaganda.

O Sol Enganador 2, segunda parte do filme que ganhou o Oscar de Filme Estrangeiro (1993) passa sexta-feira, em Cannes.

Wednesday, May 19, 2010

Video #3: Realizadores '5X Favela'

Cannes Video #3 - '5X Favela' from Kleber Mendonça Filho on Vimeo.

Des Hommes e des Dieux (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A França tem quatro filmes em competição (Tournée, de Mathieu Almaric, La Princesse de Montpensier, de Bertrand Tavernier, e Hors la Loi), e destacamos o muito bom Des Hommes e des Dieux (Dos Homens e de Deus), de Xavier Beauvois. É muito sóbrio e bem filmado esse relato sobre fé, vocação e amor ao próximo como projeto de vida, num monastério nas montanhas de Maghreb, norte da África, anos 90.

É a histórica verídica de como um grupo de oito monges franceses envolvem-se com extremistas do islã, que passaram a discordar até mesmo do apoio que o monastério dava aos seus vizinhos, uma comunidade pobre. O elenco inclui Lambert Wilson, mais confortável aqui do que no filme do Tavernier, e o impagável Michael Lonsdale, que segue sendo grande presença no cinema francês, desde Beijos Roubados, de Truffaut.

No filme mais silencioso de todo o festival, uma cena onde ouvimos O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky revela-se um dos momentos memoráveis do festival. Beauvois cria um transe que será quebrado pelo peso da intolerância e da violência. Muito bem recebido.

Cannes 2010


Pablo Trapero, diretor de 'Carancho'

Grand Hotel, entrevistas no jardim.

Juliette Binoche a modelo esse ano partout.

Realizadores do '5x Favela' em Cannes



Sobre a Imagem Russa

Eu tentei lançar alguma coisa no texto sobre My Joy, do Losnitza, sobre a força bruta da imagem numa idéia de cinema russo, qualidade que também encontramos na literatura, poesia que vem de lá. É algo de difícil comprovação, pois ela passa pelo racional e vai direto ao coração, em geral quebrando-o. Talvez esse clipe aqui postado ajude a ilustrar um pouco do efeito geral de My Joy. Pertence a um filme irmão do filme de Losnitza - "4" (2005), de Ilya Khrjanovsky, obra interessante, mas indisciplinada e até imatura, também um panorama moderno sobre o país. De qualquer forma, essa sequência de abertura eu nunca esqueci, e é carregada dessa força "russa" de enquadrar, de agredir com uma imagem de um poder inimaginável sobrepondo-se a tudo.

Tuesday, May 18, 2010

My Joy (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Schaste Moe (My Joy, Minha Alegria), de Sergei Losnitza, é a Palma de Ouro clara e evidente em Cannes esse ano. O filme tem um estado de espírito que acelera o pulso pela força de cada um dos seus planos. Toda vez que vejo esse cinema de corte russo, com traços inconfundíveis da herança soviética, lembro daquela carcaça de cavalo levantada pela ponte suspensa em Outubro, de Eisenstein.

Esse filme passa como uma parábola de horror de proporções bíblicas sobre a Rússia. Indo além de uma idéia de retrato realista dessa cultura e sua paisagem, vamos um passo além, pois o filme resulta numa pintura sofisticada do seu próprio estado de espírito, o retrato da alma.

A força descomunal do filme poderá ser discutida e/ou questionada pelos que não têm intimidade com o país e sua história recente e atual. Tudo pode parecer agressivo demais, pessimista demais, poético demais, de um impacto difícil de administrar. Para quem tem uma intimidade mínima, essa visão artística só pode ser admirada.

Esse é o primeiro filme de ficção de Losnitza, que tem uma carreira brilhante no documentário em curta e média metragem. Fez um outro filme impressionante chamado Blockade (2006) a partir dos arquivos do orgão de propaganda soviético sobre o cerco nazista a São Petersburgo (Leningrado, na época), recriando sons para as imagens mudas que mostram uma cidade asfixiada tentando viver.

Em Schastye Moe, o espectador é colocado num estado de tensão suspensa constante, e entra na casa das duas dezenas as imagens potentes da força bruta esmagando sinais inconfundíveis de delicadeza.

Quando existe a suspeita de nihilismo por parte do realizador, ele nos dá uma sinfonia de rostos humanos numa feira de cidade pequena, um homem que só quer passar amor para seu filho pequeno, um outro que quer voltar para casa com um vestido para sua mulher.

No entanto, esse é um filme que começa com a imagem de uma betoneira misturando concreto, um trator e um cadáver, e o nível de tensão em cada plano é algo a ser ainda estudado.

O fotógrafo moldavo Oleg Mutu (A Morte do Senhor Lazarescu, 4 Meses 3 Semanas 2 Dias) usa a tela larga scope de maneira orgânica, cada espaço ciente de sua importância, unindo estética e informação narrativa.

Das paisagens de verão a florestas geladas, Losnitza nos leva a uma estrutura fabular perfeitamente cortada pelo clima de modernidade, vez ou outra nos contando episódios isolados no passado de uma memória coletiva traumatizada.

Nosso personagem principal e condutor é um motorista (Viktor Nemets) de caminhão que, como um garoto num conto de fadas, tenta manter-se na estrada principal, mas aos poucos toma caminhos cada vez menores e perdidos na floresta.

Com a bússola moral quebrada, e a alma claramente vencida, Losnitza desconstrói nossa segurança de espectador treinado, nos deixando sozinhos com os elementos, e um deles é um outro cadáver que precisa ser enterrado. É ainda mais impressionante a sequência final, um apocalispe perfeitamente inserido na história, fruto de um russo que lamenta muito o estado atual da cultura política e herança histórica do seu país.

Filme visto na Debussy, Cannes 18 Maio 2010

I Wish I Knew (Un Certain Regard)



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Me chama a atenção que ao ver um filme de Eduardo Coutinho, tem-se a sensação de estarmos diante de um documentarista. No cinema de Jia Zhang Ke, fica a impressão de que ele é um historiador. Seus últimos três, pelo menos, Useless (2007), 24 City (2008) e esse novo – I Wish I Knew - que passou em Cannes domingo (Un Certain Regard) - parecem ter a chave da história oral nas mãos, uma contrapartida de cabeças falantes equilibrada por uma construção de imagens sofisticadas de registro, ao que parece, feitas com uma preocupação não apenas de preencher a tela larga do cinema hoje, mas principalmente no futuro.

Sente-se uma certa transformação na obra de Jia Zhang Ke, se pegarmos seus filmes de dez anos atrás, mais claramente associados à idéia de ficção. Nessa trinca recente, ele assume o papel de principal cronista / testemunha ocular da China moderna, um feito e tanto num cinema chinês moderno que também parece preocupado em trazer para os filmes as mudanças que ocorrem na cultura, infra-estrutura e paisagem do grande país.

Sua preocupação com esse registro sugere um amor pessoal focado. I Wish I Knew não pareceu agradar tanto a platéia, uma informação sempre desimportante, mas talvez notável considerando que o realizador e sua atriz estavam presentes.

O filme constrói (em duas horas e 20 minutos) uma versão palpável de história através de relatos vividos verbalizados. A técnica de história oral sempre me atraiu muito nos estudos de história.

Sua fragilidade é exatamente sua maior força, ouvir o relato em primeira pessoa que traz experiência de vida e verdade, ao mesmo tempo em que a memória pode ser falha, introduzindo o erro e o julgamento errado de um determinado fato. Datas podem ser equivocadas, mas nada supera essa experiência narrada, ou a imagem de um rosto que lembra, ou que faz esforço para lembrar.

Zhang Ke usa uma galeria de personagens maduros, alguns idosos, para filmar a China, as mudanças de costume, a violência dos conflitos internos, da Guerra, do partido, dos lugares abandonados, ou demolidos.

Num momento, ele nos mostra uma entrevista interrompida bruscamente pela sua personagem, que ordena “pare de gravar”, seguido de um corte sumário. A cena semelhante de Um Lugar ao Sol, doc de Gabriel Mascaro, me veio à mente, sem jogar aí qualquer julgamento sobre aquele outro procedimento.

I Wish I Knew tem alguns procedimentos que o levam a um outro estágio do documentário. As imagens largas em scope sugerem que não há outra forma de filmar a China, e as composições são fortes, enamoradas tanto pela beleza como a feiúra da arquitetura e da destruição.

Filme visto na Debussy, Cannes, 16 Maio 2010

Monday, May 17, 2010

Copie Conforme (competição)



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Saindo agora da sessão do filme novo de Abbas Kiarostami, Copie Conforme (Cópia Verdadeira). Horas antes, eu havia escrito sobre as legendas de Godard em Film Socialisme, e agora à noite Kiarostami usa de maneira jocosa as mudanças de língua, tudo muito inteligente e com significados no mínimo astutos, até onde consegui sentir. O filme, no entanto, não é sobre isso, mas apenas um dos detalhes que o enriquecem muito.

É uma mudança e tanto de forma, no que já havia sido anunciado como o primeiro Kiarostami filmado na Europa, com atores europeus. O filme é um presente para Juliette Binoche.

Na superfície, o filme flerta com uma série de outras observações já feitas que rondam a memória do espectador, em especial Viaggio a Italia, de Rosselini, e mesmo o Before Sunrise/Sunset do Richard Linklater. Une uma reflexão sempre a pé e em deslocamento sobre o casamento como história pessoal de cada um, de duas pessoas, somando essa história ao em torno, que não deve ser por acaso tratar-se da Itália.

O homem (William Schimell), aliás, é um acadêmico, especializado em patrimônio cultural, e será a parte mais fria da dupla, cética, distante e fria, mas com doses curiosas de um homem ainda apaixonado. É inglês. Ela, francesa, também fala italiano e francês, e a verbalização do que sentem logo vira uma caixa de pequenas surpresas ao longo do filme.

Ali por baixo, Kiarostami discute rica e prosaicamente identidade de ser você mesmo com uma outra pessoa, e o que se constrói junto num ambiente que já parece ter visto de tudo, vivido tudo e acolhido todos. E tocam os sinos da igreja, sempre para lembrar que o tempo passa e leva as pessoas junto.

O filme é muito delicado.

Filme visto na Sala Debussy, Cannes, 17 maio 2010

Terraço da Quinzena



É aqui onde encontros são feitos, entrevistas marcadas e bebida consumida.

Outrage (competição)



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Outrage (competição) não deixa de ser uma decepção vinda de Tóquio, onde o autor e ator Takeshi Kitano, o cara dura mais interessante do cinema internacional, nos dá um incrível banho de sangue que chega a lembrar pornografia. Ignoramos a historinha e já sabemos que vão partir para o BANG!! POW!! CAPOW!!” a cada quatro minutos, de relógio. E que sons de tiros... que som de um cutelo decepando dedos...

Envolvimento, caracterizações ou observações sobre a máfia japonesa são ejetadas para dar lugar a um toma-lá-da-cá draconiano a partir do momento em que uma família decide dar um susto numa outra família. O espectador logo ficará dormente por esforço repetido.

Pela monotonia, freqüência do sangue e criatividade das execuções, lembra Sexta-Feira 13, embora o assassino seja qualquer um, em qualquer lugar. Vez ou outra, a brutalidade é engraçada e absurda (uma vitima é pega na cadeira do dentista), mas na maioria das vezes apenas desagradável e vazia.

Do ponto de vista cultural, é interessante observar que a idéia de racismo e uma mínima correção política ainda não chegou ao Japão. Acontece que a Yakuza despeja a embaixada do Gabão em Tóquio para fazer seu escritorio, seu embaixador um homem negro retratado de forma caricata, QI inexistente e nenhum respeito próprio em cenas pensadas como comédia. Silêncio absoluto da platéia ocidental em Cannes. Se a Yakuza é racista, faria parte da história, mas fica a dúvida sobre o olhar do próprio filme.

Filme visto na Debussy, 16 Maio 2010

Film Socialisme (Un Certain Regard)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Jean Luc Godard, muito aguardado, cancelou sua vinda a Cannes, onde faria concorrida coletiva de imprensa hoje. SO jornal Liberation publicou o que seria o conteúdo do bilhete manuscrito que enviou a Thierry Fremaux para dar suas satisfações:

"Depois de problemas de tipo grego, nao vou poder estar no festival. Com Cannes, vou até a morte, mas nao darei mais um passo que seja pra frente."

Seu filme, no entanto, passou, chama-se Film Socialisme (Un Certain Regard), prova de que quem já fez tanto pelo cinema, pode fazer mesmo qualquer coisa. O cancelamento de sua vinda ao festival parece casar perfeitamente com as palavras que fecham o filme: ‘No Comment’.

Os franceses têm uma expressão muito boa para mostrar ceticismo, espanto, descrença e alguma interjeição de absurdo: “n'importe quoi”. Film Socialisme foi o mais benvindo ‘n'importe quoi!’ de Cannes até agora, uma nova variação dos fluxos de idéias e pensamentos que observamos na obra recente de Godard, uma mutação da sua capacidade de expressar-se por imagens, já há 50 anos.

Chama a atenção que seja tão textualmente um livro ilustrado de poesias, falado em francês, russo, algumas frases em inglês. Nada em Film Socialisme parece pré-formatado, e isso nos remete a uma das frases de Godard incluídas no material de imprensa. “Mesmo com Final Cut (ed: programa de edição da Apple, usado até para editar os video-posts aqui do blog), o mais humilde ou mais arrogante dos montadores estará preso às convenções do passado e do futuro”.

Estamos num transatlântico, onde o filme bate bola formal com o outro ensaio que é o filme pernambucano Pacific, de Marcelo Pedroso, imagens de um deslocamento burguês filmadas com pequenas câmeras digitais.

A água do mar convida pensamentos, que são reprocessados nas legendas em inglês como obras à parte, redefinindo o papel da legenda e provavelmente irritando os que não ouvem o francês. A legenda deixa de ser um instrumento e vira obra, e eu adorei isso. Talvez adorasse da mesma forma se não entendesse francês. É como se as letras subtituladas finalmente ganhassem liberdade de ser outra coisa, não submissas à fala, mas paralelas ao filme.

Outra referencia é Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira, também num transatlântico que se desloca pelo tempo. Godard sobrepõe seus temas como irmãos antagonistas, em geral usando curtas frases: Palestina: acesso negado, pobre Europa, humilhada pela Liberdade, Hollywood Meca do Cinema, Tumulo do Profeta, o sol e a morte a gente não olha de frente (o que me leva ao filme do Iñarritu, visto momentos antes).

É um fluxo digital, uma corrente de idéias que no todo irá sempre levar alguns a perder a paciência, e outros a sentir um prazer sereno nessa massa caótica.

Num dos momentos do filme, a voz de Godard é ouvida: “CinemaScope”, e corrigida por uma criança, “Não, 16X9”. Talvez defina a relação absolutamente moderna desse chato fascinante, que aos 79 anos continua se revendo dentro da própria imagem, mudando com ela. Ou melhor, desejando que ela evolua.

Filme visto na Debussy, Cannes, 17 Maio 2010

La Princesse de Montpensier (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O cinema francês foi mal representado ontem, na mostra competitiva, com La Princesse de Montpensier, filme algo de empalhado de Bertrand Tavernier. É um dramão de época (1562, na guerra entre católicos e protestantes) com cascos de cavalo estrondando o Dolby quase tanto quanto os volumosos figurinos e lutas de espada. A coletiva de imprensa deixou transparacer que o filme é mais dos produtores do que de Tavernier, sempre um problema.

Marie de Montpensier (Melanie Therry) é uma jovem força feminina da natureza, capaz de fazer todos os homens enlouquecerem por ela, um problema já que Therry, certamente uma gracinha (fotografa como Michelle Pfeiffer em Ligações Peigosas) não é nenhuma Claudia Cardinale em O Leopardo. Lambert Wilson, Gaspard Ulliel e Grégoire Ringuet encaram tudo com profissionalismo, embora o filme aparente ser a resposta francesa para o mesmo tipo de passatempo inexpressivo de Robin Hood, que abriu Cannes quarta passada.

Filme visto na Sala Lumiere, Cannes, 16 Maio 2010

Un Homme Qui Crie (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Muito bom o filme em competição do Chade, o primeiro do país africano na história de Cannes. Un Homme Qui Crie (Um Homem Que Grita) é sério candidato a prêmio. Retrato honesto e tocante da vida hoje no Chade, onde a juventude está sendo perdida pela guerra civil e as perspectivas de vida logo chegam a zero para a população. Pode parecer painel ambicioso, mas não é, uma vez que o cineasta Mahamat-Saleh Haroum usa os pequenos detalhes para falar de algo bem grande.

É um filme sobre a figura paterna, homem de 60 anos, ex-campeão nacional de natação, que há 40 anos cuida da piscina de um hotel, ilha de riqueza. Seu filho de 20 é levado a força para lutar no faminto exército do país. É tudo tão lindamente filmado, com emoções contidas que revelam um filme poderoso, deixando o espectador mais uma vez se perguntando, “mas, e a África...?”.

Filme visto na Sala Bazin, Cannes, 15 maio 2010

Another Year (competição)



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Na manhã do sábado, o Grand Theatre Lumiere, o maior de Cannes, exibiu duas versões de Londres, por dois autores com extensa folha corrida. Primeiro passou Another Year (competição), onde Mike Leigh mais uma vez acompanha, com sua peculiar mistura de ceticismo e alento, um grupo de pessoas na capital inglesa. Depois, esvaziaram a sala, e voltamos para a segunda sessão, onde Woody Allen mostrou seu novo filme, You’ll Meet a Tall Dark Stranger (hors concours), crônica sobre os temas que lhe são caros, o pessimismo quase sempre bem humorado de viver.

No caso de Leigh, volta o bom espanto de ver um cineasta totalmente interessado em filmar o rosto das pessoas. É curioso ver esses dois filmes juntos, pois Leigh confirma-se incrível retratista da realidade inglesa, enquanto Allen continua sendo o autor de uma dimensão paralela só sua, aqui por um acaso filmada em Londres. “Esse filme poderia ter sido feito em qualquer outra cidade”, disse Woody na coletiva.

Em Another Year (Outro Ano/Mais Um Ano), Leigh faz jus ao titulo mostrando pequenos detalhes da vida de um grupo de pessoas ao longo da divisão clássica quatro estações (da primavera ao inverno). Com uma dezena de personagens bem administrados, fica claro apenas na última cena quem seria de fato o foco principal do filme, toque potente.

Um casal cinqüentão feliz, ele (Jim Broadbent) é geólogo, ela (Ruth Sheen) psicóloga, tem um filho tranqüilo de 30 anos (Oliver Maltman). São o eixo do filme e dão assistência emocional para Mary (Lesley Manville), uma amiga simplesmente infeliz que passa a testar a paciência dos amigos com sua carência. E há uma série de outros personagens interessantes, sempre interagindo em torno de instituições britânicas como pequenas salas, cozinhas e jardins.

Leigh é muito acusado, na sua carreira, de dureza e crueldade com alguns dos seus personagens, algo que desaparece em alguns dos seus filmes. Seu último, Simplesmente Feliz, foi seu olhar mais ensolarado até agora, e voltamos, de certa forma, às sombras com Another Year.

É muito curioso observar como filmes batem para as culturas que os produziram.
Ontem, por exemplo, saiu crítica na revista britânica Screen International que joga o filme no lixo pelos personagens “que você evitaria numa festa” e, essa é a melhor parte, pondera que “a carreira nos cinemas da Inglaterra deverá ser sombria, onde já instala-se clima pessimista com as novas medidas tomadas pelo novo governo”, citação ao clima inglês pós-eleição que deu vitória aos conservadores.

Talvez um olhar que se atenha ao cinema revele o filme de um artista que dramatiza como poucos o teatro humano.

Filme visto no Lumiere, Cannes, 15 Maio 2010

You'll Meet a Tall Dark Stranger (hors concours)




por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Sobre Woody Allen, poucos autores dramatizam tão bem o ridículo necessário que é a comédia humana. A começar pelo título You’ll Meet a Tall Dark Stranger (Irás Conhecer um Moreno Alto), que leva a duas coisas. A promessa de romance para uma mulher, normalmente via cartomante, que tem no ideal latino uma noção de romance sensual. Ou, na versão de Woody Allen, o sujeito alto e moreno é a própria morte, semelhante à ironia de Clarice Lispector quando as cartas prometem à sua Macabéia “um alemão loiro”.

E Allen nos dá uma outra ciranda terrivelmente sarcástica de personagens que preferem depositar suas possibilidades de felicidade na ilusão. Uma esposa abandonada na terceira idade (Gemma Jones) passa a decidir sua vida via cartomante. Seu ex-marido (Anthony Hopkins) clareia os dentes, passa a fazer exercício e casa-se com uma jovem prostituta à procura do elixir da juventude. Um escritor fracassado (Josh Brolin) submete o manuscrito de um amigo morto, como se fosse dele. A mulher dele (Naomi Watts) acredita numa possibilidade de amor que talvez não seja real.

“Minha relação com a morte continua a mesma, sou totalmente contra”, afirmou Allen para uma onda estridente de gargalhadas no encontro com a imprensa, sábado. “Quero chegar aos 100 como Manoel de Oliveira chegou, e não com placas de alumínio espalhadas pelo corpo, me arrastando, ligado a aparelhos”.

Sobre o sarcasmo para com os que vivem de ilusões, disse “se eu conhecer um boboca numa festa que acredita em misticismos e cartomantes, é claro que eu vou rir da cara dele e achá-lo um boboca; mas sei que ele será bem mais feliz do que eu jamais serei. De qualquer forma, para mim, eles só fazem alimentar uma indústria de milhões de dólares”.

Brolin, que também está em Wall Street – Money Never Sleeps, de Oliver Stone, falou de Allen: “há um grande fator de sedução em Woody Allen, e esse fator vem da sua humildade. Eu fiz uma ponta em Melinda Melinda, anos antes, e ele me convidou para esse filme novo com um bilhete que dizia, “você talvez se lembre de mim de Melinda Melinda, eu era o diretor”.

A relação de Allen com os atores foi descrita por ele da seguinte forma: “tudo se resume a você saber contratar. Sabendo contratar os atores, você já tem tudo à mão e não precisa fazer mais nada, só calar a boca e pegar o cheque”.

Durante a projeção, You’ll Meet a Tall Dark Stranger passa como um filme meio-termo de Allen, pelo menos até o momento em que a imagem cinematográfica de uma janela, já no final, eleva o filme a algo realmente especial. Sem entrar em detalhes, mostra, num único plano, que a felicidade, assim como o próprio cinema, é apenas uma questão de ponto de vista. É bonito, e é amargo.

Filme visto na Lumiere, Cannes, 15 de Maio 2010