Saturday, July 25, 2009

Inimigos Públicos



por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

À certa altura de Inimigos Públicos (Public Enemies, EUA, 2009), o personagem de Johnny Depp vai ao cinema ver Vencido Pela Lei (Manhattan Melodrama, 1934), com Clark Gable. É mais ou menos aí que confirma-se a suspeita de que estamos diante de uma espécie de Gable dessa geração, fazendo um "gangster picture" retrô em 2009. Depp, inicialmente um rebelde em filmes fora do circuito, é hoje o grande astro de Hollywood, seu rosto uma atração à parte e aqui explorado sem grandes convicções pelo interessante autor que é Michael Mann. Nessa nova obra de Mann, ele interpreta o gangster da vida real John Dillinger num filme que me pareceu incerto sobre o que quer ser e mostrar.

O tratamento dado a Dillinger via Depp é o de um super astro, sempre impecavelmente vestido e jogando com as palavras como nos filmes de outrora, especialmente quando parte para a conquista de uma mulher, Billie Frechette (Marion Cotillard, de Piaf). Inicialmente, é uma visão romântica e cheia de glamour da vida no crime, ajudada por um homem que, em situações graves, sempre tentava pensar positivo.

Estaria Mann, com suas câmeras digitais de alta definição, tentando nos dar uma releitura super moderna do clássico “gangster film”, como De Palma fez 22 anos atrás em Os Intocáveis? O choque entre a imagem digital de câmeras na mão e o já conhecido (e incrível) sabor reconstituído de uma época (os anos 30) parece apontar para isso já na poderosa seqüência de abertura.

No mesmo período que viu Lampião e Maria Bonita ganhar fama e notoriedade no interior do Brasil, Dillinger fez o mesmo no chamado meio-oeste americano. Esse criminoso teve trajetória semelhante, um ladrão (de bancos) carismático que ganhou fama de Robin Hood e que mexeu com os brios da ‘volante’ americana (um FBI ainda nascendo sob o comando de J Edgar Hoover). Também terminou morto numa emboscada da polícia, que já não agüentava mais ser desmoralizada.

O interesse de Mann pelo personagem certamente funciona como mais uma peça da obra coerente desse diretor, fascinado com o crime dos homens contra os homens, e a relação que eles têm com as suas mulheres. Cada homem também parece ter o seu duplo, geralmente um que é seguidor da lei, o outro totalmente fora da lei.

Dessa vez, essa construção paralela não parece funcionar. Se Dillinger via Depp é o centro do filme, o seu perseguidor implacável só existe no desejo claro de Cristian Bale ter mais tempo para desenvolver o agente Melvin Purvis. A real importância de Purvis para o filme o espectador só virá descobrir num letreiro final que contrapõe os destinos reais dos dois homens. Durante a projeção, ele é apenas o que está tentando pegar Dillinger em cenas curtas, pouco aparece e fala menos ainda.

Sobre realismo, Inimigos Públicos também confunde, estacionando num meio do caminho entre o romantismo cheio de glamour da vida bandida e, na segunda metade, na dureza que essa mesma vida é capaz de trazer para seus sócios. É como se na dúvida entre verdade e lenda, Mann tivesse escolhido as duas, minando cada uma em proporções iguais.

Finalmente, a sensação de que todos esses elementos híbridos podem ter afetado Depp, o astro. Sua presença é forte sempre e o cara está super bem vestido, mas não parece conseguir nos apresentar o homem por trás do mito. É um gangster não muito desenvolvido de um clássico filme de gangster.

Curioso, certamente, mas para mais nuance, contradição ou pura empolgação, melhor lembrar os dois marcos feitos em 1967, Bonnie Clyde (1967), de Arthur Penn, e O Massacre de Chicago (The St. Valentine's Day Massacre), de Roger Corman, ou o filme de De Palma.

Filme visto na Sala 1 do UCI Boa Viagem, Recife, onde a projeção agora está clara e nítida.

Há Tanto Tempo Que Te Amo


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A narração de um drama humano nos livros ou nos filmes funciona normalmente a partir da liberação gradual de informação e da capacidade que se tem de observar as pessoas, os personagens. Não é raro ver que dramas humanos muitas vezes ganham contornos mais próximos do espetáculo das emoções, algo que pode ser identificado como o melodrama. No filme francês Há Tanto Tempo Que Te Amo (Il y a Longtemps que je T'aime, 2008) temos um exemplo interessante de como a narrativa realista flerta secretamente com o melô.

Talvez pelo fato de a escola aqui ser a do cinema francês, tudo é muito sóbrio e bem observado, sem julgamentos. Alguns espectadores poderão mentalizar o mesmo tipo de filme caso tivesse sido feito por Hollywood, onde cada cena parece, na verdade, esconder objetivos outros, e onde há um julgamento moral constante a cada passo tomado por cada personagem. Freqüente também a sensação de que filmes não têm a coragem de apresentar traços humanos como eles são, algo bem mais raro nas produções feitas longe do mercado americano.

Vejam, por exemplo, a personagem principal de Há Tanto Tempo Que Te Amo, um desafio para o espectador. Temos uma mulher de quarenta e poucos anos (Kristin Scott Thomas, que é inglesa, falando bom francês). Ela sai da prisão, onde ficou 15 anos cumprindo pena por algo terrível que logo o filme irá revelar.

Sem nada na vida e querendo recomeçar do zero, ela recebe abrigo na casa da sua irmã caçula, casada e com duas filhas adotivas. O ambiente familiar também inclui a figura do sogro da irmã, que está sempre no seu canto, calado, mas de bom humor, lendo.

A interação entre ela e a família gera quantidade curiosa de interesse e tensão. O drama humano surge da oportunidade que é dada a partir do respeito pelo outro e pelo amor ao próximo. Scott Thomas esbalda-se como atriz com o tipo de personagem raro, talvez inexistente na grande indústria, o de uma mulher destroçada e que tenta se levantar.

O tom inicialmente aéreo dessa mulher vai abrindo espaço para pequenas conquistas pessoais, boa parte delas trazidas pela confiança da sua irmã e cunhado, e da inocência das crianças. A personagem exercita sua sexualidade sem culpas e logo o filme nos conquista pela humanidade da história que está sendo narrada.

No entanto, algo ocorre. Há uma segunda revelação, espécie de dinamite emocional que pega boa parte da platéia em cheio. A nova informação é o impacto perfeito para finalizar um melodrama, mas, de fato, parece enfraquecer a linda história de compreensão que estava sendo narrada antes. Temos agora um motivo redentor, catarse certa na sala de cinema, mas que nos parece um efeito especial dramático típico do melô clássico. De certa forma, e com todo respeito ao melodrama, uma pena.

Filme visto no Cinemaxx 6, Festival de Berlim, Fevereiro 2008

Monday, July 20, 2009

Homem / Lua




Nasa restaurou imagens originais. http://www.nasa.gov/multimedia/hd/apollo11.html.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Historicamente, a chegada do Homem à Lua foi o resultado da Guerra Fria, onde americanos e soviéticos entraram na chamada ‘corrida espacial’ já nos anos 50. Em termos práticos, deu-se uma espécie de olimpíada da ciência entre duas escolas rivais, e os americanos, que chamavam seus homens de astronautas, ganharam a prova final, a lua, dos soviéticos, que chamavam seus heróis de cosmonautas. No entanto, foi o cinema, de certa forma, que venceu a corrida, pois em 20 de julho de 1969, 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, já estava em cartaz em todo o mundo com praticamente um ano de vantagem.

Dar algum tipo de vitória ao cinema, considerando o incrível feito técnico e político de Washington e da agência espacial americana, a Nasa, e todo o investimento dos melhores cérebros do poderio comunista, não é exatamente um exagero. O cinema, como reflexo do mundo e do ser humano, nos oferece um universo paralelo que muito tem de verdade, especialmente no âmbito da chamada ‘ficção científica’, um termo mal tratado pela cultura pop, em geral.

A ficção científica indica, literalmente, a hipótese desenvolvida em cima de uma base factual, científica. Vale observar que muito do que se produz e que se consome no cinema é rotulado sem grandes cuidados de ‘ficção científica’ quando, na verdade, melhor seria o termo ‘fantasia’. Ou seja, 2001 – Uma Odisséia no Espaço seria ficção científica, enquanto Guerra Nas Estrelas (um exemplo fácil), uma ‘fantasia’, ou ‘fantasia espacial’.

Uma suposta vitória do filme de Stanley Kubrick, que foi lançado em abril de 1968, pode ser explicada. A lua sempre teve participações especiais nas imagens do cinema, ao longo do último século, seja pura e simplesmente pela sua carga mística e estética, ou como o satélite natural da Terra.

No primeiro caso, a lua pode ser elemento catalisador do romance, da sorte e do azar, ou da sensualidade, da fecundidade das mulheres, das próprias mulheres. São elementos usados com freqüência constante no cinema, do filme de lobisomem (Um Lobisomem Americano em Londres talvez seja o melhor) a uma cena simples onde James Stewart promete a lua a Donna Reed em A Felicidade Não se Compra.

A lua como objetivo de conquista do homem, no entanto, é algo menos freqüente, e constitui uma série de exemplos curiosos sobre como o cinema reflete as ambições do homem e de suas sociedades, algo que atingiria uma espécie de clímax com o filme de Kubrick, nos anos 60, às véspera da real conquista da lua.

É uma idéia tão presente no ser humano e no cinema que lá está ela na primeiríssima vinheta da MTV, levada ao ar em 1982, num filme recente e próximo como o pernambucano Muro (2008), de Tião, ou no cinema ancestral de Georges Méliès, que conquistou a lua já em 1902, quando fez Le Voyage Dans La Lune.

Esse filme incrível de 21 minutos (numa época em que filmes duravam não mais do que dois minutos), a nave espacial com a forma de uma bala grande é disparada de um canhão em Paris. A lua tem os traços reconhecíveis de um rosto humano que acabara de ser atingido por uma polpuda torta de marshmallow. E esse rosto leva a nave bem no olho direito, a versão de Méliès para uma hipotética aterrissagem lunar.

Na lua, existiriam habitantes, os selenitas, que nos passam a suspeita através de sua aparência de que Méliès os imaginava como nativos africanos de alguma terra distante, claro reflexo da política colonialista (e racista) dos europeus na virada do século 19 para o 20. Esses nativos lunares também têm uma particularidade: eles explodem e viram uma nuvem de fumaça quando atacados.

A base de Meliès para o filme foi os escritos de dois autores marcantes que enxergavam o jeito de como as coisas viriam a ser no futuro: o francês Jules Verne e o inglês HG Wells. Escreveram certo sobre os avanços do homem pelas linhas tortas da fantasia.

Uma outra história intrigante é a do filme alemão de ficção científica Die Frau im Mond (A Mulher na Lua, 1928), de Fritz Lang. Não é um bom Fritz Lang, mas a sua atenção para o detalhe (seu filme anterior foi o clássico Metropolis) envolvia mostrar em detalhes uma plataforma de lançamento do foguete que não apenas assustou o serviço de inteligência britânico, como levou os nazistas a destruir a maquete usada no filme.

Ou seja, um proto-caso de armas de destruição em massa que se repete na história humana. Realista demais, o filme terminou entregando segredos dos foguetes V1 e V2 que uma década depois aterrorizariam Londres nas campanhas de bombardeio pelos nazistas.

Ao longo das décadas, o cinema tentou conquistar a lua diversas vezes, mas boa parte dos resultados não é memorável. Antes de 2001, a ficção científica era popular, mas raramente levada a sério, justamente por talvez parecer fantasiosa, os efeitos especiais ainda incapazes de convencer, problema menor do que as tentativas de agradar a um público que talvez rejeitasse a realidade científica de tal empreitada.

Pouca gente deve saber da existência de Destination Moon (1950), por exemplo, produção de George Pal que, historicamente, diz pela primeira vez, e com todas as letras naquele pós guerra, que “a lua tem valor militar estratégico, e que se os EUA não chegarem lá primeiro, outros chegarão!”. São filmes que, talvez precariamente, expressaram ansiedades de suas épocas, mas que têm um valor pelo menos histórico, o que não é pouco.

No caso de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, Stanley Kubrick adaptou a obra do inglês Arthur C. Clarke num momento absolutamente crucial. A motivação para o filme veio numa década que via a corrida espacial levar o homem, fosse ele americano ou soviético, cada vez mais longe. De uma certa forma, os desenvolvimentos reais dessa corrida alimentaram Kubrick, um pesquisador nato e um artista perfeccionista, a também ir muito longe.

Tão longe que 2001 não é, nem nunca foi, um filme sobre a conquista da lua, que na sua trama esparsa é vista como um assunto sacramentado, última parada da civilização humana em direção à descoberta de um universo infinito e misterioso.

O impacto de 2001 à época pode ser medido pela capacidade que o filme ainda tem de impressionar uma platéia em 2009, 41 anos depois. Kubrick fez seu filme passando a estranha sensação de ter entrado em órbita com atores e equipe, seus detalhes e concepção cheiram a realidade, e isso vai do silêncio do espaço às roupas de aeromoças espaciais. Mais potente ainda é a sensação trazida pelo filme de que o homem é pequeno demais perante os mistérios do universo, ignorante demais diante de civilizações maiores e melhores, e que muito ainda será explicado.

Talvez 2001 tenha contribuído para embaralhar a percepção de muita gente que viu o homem pisar na lua numa TV, ao vivo, em julho de 1969. Não são poucos os que duvidam de que tal fato realmente ocorreu, sentimento satirizado de forma inteligente num falso documentário francês de 2002 chamado Operation Lune.

O filme de 52 minutos feito para a rede franco-germânica Arte “defende” que a chegada do Homem à Lua foi uma mentira arquitetada pela CIA e dirigida por Stanley Kubrick num estúdio. A motivação por trás disso seria o medo que Richard Nixon teria, então presidente dos EUA, e em pânico com a perda do controle na Guerra do Vietnã, de a missão espacial dar errado. Com a direção de Kubrick, a conquista da lua seria um sucesso garantido.

Man on Wire (O Equilibrista)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Uma discussão possível em torno da morte prematura de Michael Jackson é a questão do talento. Numa sociedade moderna onde todos aparecem, com ou, preferivelmente, sem talento, a idéia de alguém ser clara e evidentemente agraciado com uma inclinação nata para a arte e a expressão pode ser realmente fascinante. A arte não apenas como uma tentativa, mas como uma flecha certeira que impacta muitos. Se Jackson é um caso claro disso, o francês Philippe Petit seria um outro. Seu feito mais incrível foi um atentado artístico contra as Torres do World Trade Center no ano de 1974, tema do documentário O Equilibrista (Man on Wire, Ing, 2008).

O filme do inglês James Marsh apresenta Petit como o artista original que honra o termo, ou seja, alguém que provoca, desafia e impacta. Misto de mímico e equilibrista, Petit desenvolveu desejos incontroláveis de conquistar espaços utilizando cabos de aço, uma longa vara de equilíbrio e um desprezo inacreditável não apenas pelas leis sociais, mas principalmente pelas que regem a gravidade.

E foi assim que Petit, em agosto de 1974, atravessou oito vezes o espaço que separava a torre sul da torre norte, achando ainda tempo e energia para deitar no cabo de aço no meio do caminho, a uma altura de mais de 400 metros.

Diz a lenda do filme que esse homem baixinho estava num consultório de dentista no final dos anos 60 quando abriu uma revista e viu fotos do que viria a ser o canteiro de obras do World Trade Center, em Nova York. A imagem o encantou no sentido de apropriar-se dela. É o desejo do artista nato, que ficará obcecado para que sua visão seja alcançada, mesmo que a obra exija uma operação de guerrilha típica de um crime bem planejado, ou talvez o de um ataque terrorista.

É essencial deixar claro que esse é um filme inteligente. Em nenhum momento da narrativa eletrizante de 94 minutos de duração há qualquer menção aos eventos históricos do 11 de setembro de 2001. Marsh sabe que ao vermos as duas torres, seja em imagens da sua construção, ou da atividade formigueira comum nos dois prédios já em funcionamento, nossa bagagem cultural e histórica dará o realce chocante em relação ao fim dos dois arranha céus que todos nós conhecemos.

O paralelo entre um ataque artístico e um ataque de terror também dá ao filme a dimensão real da visão de Petit como artista. Amparado por uma estrutura enxuta que irá viabilizar a façanha (colaboradores, equipamentos, disfarces, conversa mole, coragem), o filme não deixa claro como, nem de onde, veio o dinheiro para a operação.

De qualquer forma, Marsh constrói O Equlibrista como um thriller, desafiando as leis do documentário com reconstituições dramatizadas que geram suspense mesmo sabendo que a conclusão foi feliz.

No centro de tudo, Petit, o artista, cuja arte foi capaz de emocionar o policial enviado para prendê-lo no terraço do WTC, o juiz que o julgou pelo crime (a pena estipulada revela claramente admiração da autoridade pelo artista julgado), as centenas de pessoas que olharam para cima naquele dia, o mundo como um todo. Não é normal ver documentários sobre o mito real do artista absoluto, ou de um super homem.

Filme visto em DVD (francês), Recife, Fevereiro 2009