Tuesday, July 14, 2009

Harry Potter 6


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Não deixa de ser um luxo ter esse mimo industrial que é a série Harry Potter batendo na porta, em média, a cada ano e meio. As tempestades de luz do bruxo inglês e amigos têm trazido um certo encantamento que, em alguns dos seus melhores momentos, supera qualquer sensação de estarmos diante de um enlatado. Se a palavra “magia” é um clichê sofrível quando aplicado ao cinema, resta sugerir que a série é um sucesso não apenas comercial, mas também de realização. Para ilustrar isso, vejam o bom e bem feito Harry Potter e o Enigma do Príncipe (Harry Potter and the Half Blood Prince, EUA/Ing, 2009), sexto filme da série que chegou aos cinemas de todo o mundo em sessões especiais à zero hora de hoje.

Potter é um tipo de luxo particularmente se levarmos em consideração que os sucessos comuns das temporadas de férias podem ser lixos sem fim como Transformers 2. Desde 2001 que os filmes bancados pela Warner Bros, a partir dos escritos da escocesa JK Rowling, parecem estimular a leitura junto aos muito jovens, um feito e tanto.

O embate entre a palavra escrita e a dimensão acrescida das imagens de cinema sugere uma relação cada vez mais rara hoje em dia, e é positiva. Se há uma capa espessa de magia nas histórias, a base delas é realista, nas relações de amizade, escolhas éticas e o mundo da escola, com um tom claramente britânico para efeito extra de curiosidade.

Do ponto de vista do mercado, os cinco primeiros filmes arrecadaram uma receita de 4,47 bilhões de dólares. Nenhuma outra série na história do cinema deu tanto dinheiro, deixando para trás os 22 episódios de James Bond somados, ou os seis capítulos de Guerra Nas Estrelas.

CRESCIDOS –Harry Potter e o Enigma do Príncipe nos lembra que o crescimento natural dos atores (ou dos personagens) foi registrado filme a filme. É algo raro no cinema e que lembra o caso também particular dos cinco filmes de François Truffaut com o menino/homem Antoine Doinel.

Espanta aqui o quanto “os meninos cresceram”, e termos visto a transformação daquelas crianças em adultos ao longo dos anos é certamente a mágica mais verdadeira de toda a série.

Isso é muito bem aproveitado pelo filme do diretor David Yates, profissional capaz oriundo da TV inglesa e que já havia dirigido o Potter anterior, A Ordem do Fênix. O roteiro de Steve Kloves, um desses trabalhos hercúleos e funcionais que Hollywood paga a peso de ouro, equilibra duas partes bem distintas e que, em alguns pontos, sugerem água e vinho, um pouco como se dois filmes diferentes corressem paralelos.

Numa banda, que dá ao filme excelente sustentação, temos Harry (Daniel Radcliffe), Ron (Rupert Grint), Hermione (Emma Watson), seus amigos e desafetos na escola Hogwarts lidando com as primeiras complicações do amor. Entre bruxos, o amor talvez seja até mais complicado.

Poções mágicas variadas entram para atiçar e/ou podar sentimentos, o que sugere algo não muito distante de uma pequena galeria de drogas ilícitas que talvez nos ajudem a enxergar o tom mais realista desse capítulo e seu ambiente escolar.

Se ela já havia chamado atenção no filme anterior, a loirinha de sotaque irlandês Luna Lovegood (Evanna Lynch) continua roubando cenas. Ela é engraçada e parece resumir bem aquela menina de olhar distinto e humor incomum que toda sala de aula parece ter.

A outra metade do filme, cheia de mistério e pequenos terrores, reside na relação aluno/professor de Potter e Dumbledore (Michael Gambon). A curiosidade quase mórbida de Potter para desvendar mistérios no passado do grande vilão Voldemort é administrada pelo mestre com cuidado e senso de responsabilidade para o pupilo.

As influências do mal surtem efeito não apenas na escola, num aluno com inclinação para o mal e num professor com a mesma vocação, mas também na realidade de Londres. A cidade aparece em destaque, desta vez, o que apenas aumenta o nível de interesse pelo todo. Já constrói-se desde agora o confronto final entre Potter e as forças de Voldemort para os dois capítulos que serão lançados em 2010 e 2011.

Esse realce do fantástico com a realidade tem feito um bem à série, que começou com tom claramente infantil, ciente demais da sua “magia”, creio que no mau sentido. Entrou nos eixos e ficou realmente interessante em O Prisioneiro de Azkhaban (2004), dirigido pelo mexicano Alfonso Cuaron.

É uma saga onde um poderoso mago pergunta onde fica o banheiro, onde meninas com corações partidos ganham andorinhas voando ao redor da cabeça e o espectador ainda tem a oportunidade de ver um fiapo de memória sendo pinçado da cabeça de um homem, lembranças guardadas em jarros...

Construído a partir de personagens sempre interessantes com praticamente todos os recursos humanos do teatro inglês que Hollywood pode comprar, Jim Broadbent (Moulin Rouge) é o destaque desse filme como o Professor Horace Slughorn. Sua entrada no filme é difícil de bater como conceito e design, revelando o grau de esmero aplicado ao todo.

PROJEÇÃO - Eu vi o filme na sala 1 do Shopping Recife, em Boa Viagem, Recife, onde a projeção escura, lente manchada (lado direito) e som apenas OK não valem os 16R$ do ingresso, rendendo uma sessão literalmente apagada. Se está no Recife, evite essa sala. Tente ver o filme no Plaza de Casa Forte, a melhor projeção da cidade hoje, ou na 7 THX do Box. As empresas de exibição precisam zelar pela projeção nessa era de TV e Blurays de alta definição, pois, mesmo que o verdadeiro dinheiro venha da pipoca, o cinema sem imagem e som, não existe.

Monday, July 13, 2009

Kes (DVD)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Bernard Shaw escreveu em Pigmalião que “é impossível para um inglês abrir a boca sem ser odiado ou desprezado por outro inglês”. A reflexão talvez seja uma base reveladora para o cinema de Ken Loach, que geralmente ocupa o escaninho do “realismo social” tão usado pela crítica. Seus melhores filmes parecem interessados não só em observar a realidade, mas em escutar uma cultura (a britânica) que se auto examina pelo sotaque.

Caso específico de Kes (1969), o mais belo filme da longa carreira de Loach.
Kes é uma jóia reconhecida do cinema inglês, feito no final de uma década que viu mudanças na imagem filmada dos britânicos. A idéia de “clássico inglês” é normalmente associada à pompa de um David Lean e um Lawrence da Arábia (1962), ou às adaptações recentes de Merchant & Ivory, como Retorno a Howard’s End (1993). São claramente versões mais palatáveis da Grã-Bretanha para o mercado.

Nesses filmes, personagens do povo eram “típicos” e/ou coadjuvantes, peças do conflito de classes em adaptações de Charles Dickens, ou glamourizados como o cockney sedutor de Michael Caine, em Alfie.

Trabalhando na TV britânica nos anos 60, Loach já comungava da filial inglesa da Nouvelle Vague, a chamada New Wave britânica, de autores como Tony Richardson, John Schlesinger e Karel Reisz. Isso o levou naturalmente a um filme como Kes.

O tratamento dado à história do menino Billy (David Braley), morador de uma comunidade mineira de Yorkshire, parece sugerir Kes como o perfeito duplo inglês do francês Os Incompreendidos, que François Truffaut filmou dez anos antes. Os filmes se completam como frutos honestos de suas respectivas culturas. Ambos contém imagens milagrosas da juventude que vão além da simples dramatização. Os dois abordam com força o enterro da infância.

Billy, com o ar de um esquilo assustado, parece mais à vontade dois graus acima da realidade. Isso o ajuda a lidar com professores neuróticos, o irmão cruel e a distância dos colegas que não entendem como ele funciona. Seu maior interesse está em Kes, o falcão que ele conquistou com astúcia e uma curiosidade esclarecida por livros.

O perigo é sugerir que Kes é um filme piegas sobre a amizade de uma criança com um animalzinho, o que não é. Composto por uma série de momentos que não têm preço (o jogo de futebol, o castigo dos meninos, a apresentação na aula de inglês) filmados em locação, percebe-se que é a fala espessa de toda uma classe social que parece dar a Loach o seu prazer como autor, e a autenticidade do seu relato. Billy e o seu ambiente social se bastam, e essa identidade está num falar que será explorado de forma radical ao longo de toda a filmografia do diretor.

Kes passou há 40 anos na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Dois meses atrás, em Cannes, Loach mostrou seu filme mais recente, Looking For Eric, crônica bem humorada sobre a relação entre um torcedor fanático e seu ídolo francês, Eric Cantona. O filme novo sugere o quanto Loach, 72 anos, deve estar de bem com a vida, e confirma o seu interesse pelo falar do inglês popular, sem esquecer da bola de futebol.

Filme revisto em DVD da Lume Filmes, em lançamento.

A Proposta


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Por pura ironia, um dos aspectos mais interessantes da vida – a união gradual e amorosa entre duas pessoas – tem gerado alguns dos produtos mais horrorosos do chamado entretenimento de cinema. No Brasil, a “comédia romântica imbecil” já virou uma marca e uma praga da produção nacional, tiro certo nas bilheterias com empurrão da matriz desses filmes e novelas, a Rede Globo de Televisão. Em Hollywood, as ‘romcoms’ também são garantia de sucesso, com ingredientes mecânicos notáveis aplicados a um tema humano que seria normalmente orgânico e natural. A Proposta (The Proposal, 2009) é o exemplo mais recente.

É curioso que os primeiros 20 minutos do filme sejam promissores, com uma situação moderna bem armada, revertendo papéis sexuais e revelando o tipo de hierarquia do poder tão caro aos americanos. A sempre interessante Sandra Bullock (estranho a quantidade de gente que a detesta como presença e atriz) faz uma chefona do setor editorial, na competitiva Nova York. Essa executiva é canadense.

Ela tem um secretário (‘assistente’ soa melhor e mais politicamente correto), interpretado pelo alto e relativamente cômico Ryan Reynolds, formiga trabalhadora que sonha em ter seu talento para a literatura revelado um dia. Sua penúria junto à chefe odiada e mal amada entra como investimento para o futuro.

Esse ponto de partida tem muito das comédias clássicas do passado de Hollywood, dos filmes de Spencer Tracy e Katharine Hepburn, talvez alguma coisa de Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment, 1960), de Billy Wilder. A atualização moderna é o fato de a mulher ser a casa de força e o homem seu subalterno. Um início realmente promissor.

A coisa melhora quando a chefe canadense é informada de que problemas no seu visto de trabalho estão prestes a expulsá-la dos EUA, fazendo-a perder o emprego. Ela imediatamente arma uma chantagem para seu assistente vulnerável e forja um esquema de casamento encomendado. Se ele não cooperar, seu futuro como escritor estará arruinado. A farsa irá enganar a todos no escritório e a família do rapaz, no distante Alasca, para onde o novo casal irá no final de semana seguinte, apresentá-la.

Infelizmente, daí pra frente é ladeira abaixo, e em alta velocidade. O computador responsável pelo roteiro (porquê os melhores roteiristas dos EUA estão na televisão?) parece ter sido programado com pedaços de Entrando Numa Fria, onde os pastelões de sempre sobre a recepção da ‘noiva’ pela família dão ao filme um ar de novela em reprise.

Mais curioso ainda é a maneira como as tensões sexuais entre esses dois adultos são tratados com a sensibilidade de crianças de 12 ou 13 anos de idade, onde reina o ‘qui-qui-qui’ de ver o outro nu em algumas cenas constrangedoras não tanto pela situação, mas pela forma como são apresentadas. Se na boa TV americana, adultos se relacionam como adultos, é em Hollywood que prevalece o comportamento infantil aplicado duramente a personagens adultos.

A coisa ainda piora com a possibilidade de o rapaz reatar relações com uma namorada antiga, claramente a coisa mais sensata a se fazer, e não assumir um novo amor que surge mais como ordens do estúdio (Touchstone Pictures, da Disney) do que como algo que o espectador acredita. A Proposta é, efetivamente, recusável. Deverá ser um sucesso, claro.

Filme visto no UCI Ribeiro, Boa Viagem, Recife, Julho 2009