Friday, May 29, 2009

Blue Thunder (DVD)

Cartaz original de Blue Thunder
Olha o tamanho da arma. Roy Scheider e seu Trovão Azul.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Às vezes, você está numa livraria, ou supermercado, ou nas Lojas Americanas, e ao ver um filme, descobre-se ali que há uma relação antes insuspeita com aquela obra, e chega a vontade de tê-la na coleção, especialmente se for por 12 R$. Não trata-se da quase obrigação de ter um clássico, mas do desejo puro de retomar algo sem muita importância que foi visto há muito tempo e que deixou uma sensação boa.

É possível dividir o cinema entre o dos filmes que eu gostaria de ter em casa, e os que eu não tenho a menor vontade de ter em casa. Muitos desses são filmes que se relacionaram com você no passado, especialmente na infância e adolescência, e que terminam não sustentando bem os efeitos do tempo quando revistos. Mas, é assim mesmo. O carinho por eles vem exatamente do passado.

Ontem, deu vontade de ver alguma coisa à noite, algo bem distante do efeito Cannes que ainda reverbera. E lá vou eu na prateleira dos anos 80 e puxei Trovão Azul (Blue Thunder), sessão juvenil de 1983 que eu lembrava como se fosse dois meses atrás. O DVD estava guardado entre Psicose II, de Richard Franklin, e Sob Fogo Cerrado (Under Fire), de Roger Spottiswoode, dois filmes sub estimados dos anos 80.

John Badham (Os Embalos de Sábado à Noite) dirigiu esse aqui, diretor em demanda no final dos anos 70 e início dos 80. Hollywood o fez estacionar em techno-thrillers como este, Jogos de Guerra (WarGames) e Short Circuit (Um Robô em Curto Circuito).

Comecei a ver Trovão Azul, filme que, na época, me pareceu bem bacana, visto numa tela grande em 70mm (rodado em 35mm, ampliado para 70mm, seis faixas de som Dolby Stereo). Envelheceu bastante, como techno-thrillers de 25 anos atrás envelheceriam.

O que na época passava como Ok e até mesmo "cool!" hoje soa como um amontoado de clichês clássicos, material para a paródia. Roy Scheider é Frank Murphy, veterano do Vietnã que tem pesadelos onde o som ganha eco, ou suas lembranças voltam ao Vietnã quando a coisa aperta.

Ele tem um sidekick (Daniel Stern), cara super simpático que tem escrito na testa "vou morrer". Malcolm MacDowell é o vilão de papelão, e vê-lo sendo seviciado por Hollywood mais uma vez é triste.

Esse DVD francês vem com um número surpreendente de extras, e Badham comenta que eles filmaram um gazilhão de metros de filme, típico procedimento para filmes de ação caros, feitos por Hollywood. E é tudo em Panavision, com foto grungy na mão de John A. Alonzo, que também filmou Scarface, de De Palma.

Dan O'Bannon, que co-escreveu Alien (1979), queria ter feito uma espécie de Taxi Driver com um piloto de helicópteros em Los Angeles que enlouquece, mas o estúdio achou que não faria sentido torrar dólares com um psicopata que ameaçaria a lei e a ordem em LA.

O filme não faz muito sentido, mas já traz o medo muito americano do outro, num complô de direita para atacar a comunidade latina com um canhão que atira 4 mil tiros por minuto e evitar terrorismo nos jogos olímpicos do ano seguinte (1984), em Los Angeles.

A incorreção política sem filtro numa trama padrão de conspiração estilo Watergate e cenas de ação ainda curiosas me chamaram a atenção de uma maneira que tinham passado por cima da minha cabeça, na época. Dessas cenas de ação, onde muita coisa é quebrada, fica o destaque para o bombardeio de uma churrascaria e uma chuva de frangos assados caindo em carros e transeuntes.

Visão retrospectiva também me fez ver que foi na Los Angeles da época que Wim Wenders filmou e localizou Paris, Texas, os dois filmes até dividem locações. Como o cinema é capaz de registrar a mesma coisa de forma tão diferente.

Eu lembrava muito bem da música de Arthur B. Rubinstein, ótima trilha pegajosa e perfeitamente datada com seus synclaviers, o fundo para um filme de menino. Foi o último filme de Warren Oates, cujo rosto parece soletrar PECKINPAH. O filme é carinhosamente dedicado a ele.

Tuesday, May 26, 2009

Imovision com Haneke, Resnais e Porumboiu

Release da distribuidora me informa que a Imovision, distribuidora de São Paulo do francês Jean Thomas Bernardini, que lançou no Brasil o Funny Games original, Os Idiotas, Dogville e Entre os Muros da Escola, para citar poucos, ficou com a distribuição garantida de DAS WEISSE BAND, Palma de Ouro do Haneke, do Politist, Adjectiv, de Corneliu Porumboiu, e ainda Les Herbes Folles, do Resnais, que deverá se chamar As Ervas Daninhas.

3 Belas compras, e creio que ainda inclui o já citado aqui como excelente The Time That Remains, que Jean Thomas havia assegurado desde Berlim. Não sei se alguma coisa muda com a não vitória do filme em Cannes.

Suleiman


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Minha escolha clara e evidente para a Palma de Ouro era o The Time That Remains, do Elia Suleiman, cineasta que me impressionou muito em Cannes 2002 com Intervention Divine. Naquele ano, me vi numa conversa muito estranha numa mesa de jantar com a assistente de direção do Amos Gitai, que também estava na competição naquela edição, com Kedma. Para resumir a história, ela não gostou nada nada de eu ter adorado o filme do Suleiman e de não ter gostado do filme do Gitai, desagrado que logo deixou o cinema e foi para as questões ancestrais que todos congecemos.

Contei essa história para o Suleiman, ne época (meses depois, no Rio), está na entrevista publicada com ele, no site que voltará em breve. A história revela questôes extra filme (ou talvez intra-filme, não sei, pois cada imagem dele traz carga política sugestiva) que revela as tais tensões enormes entre judeus e palestinos.

Esse ano, mais uma vez, uma amiga judia me repreendeu feio ao saber que The Time That Remains era o meu preferido. Obviamente que como brasileiro razoavelmente alfabetizado, observo tudo isso com interesse e um pouquinho de horror, e vejo que Suleiman faz seus filmes exatamente para combater com idéias e imagens.

Seu filme, uma série de vinhetas tiradas da sua vida, crescendo em Nazaré, território ocupado, de 1948 até os dias de hoje, foi um dos prazeres do cinema como imagem nesse festival, não apenas um filme de coração grande para Suleiman e seus pais, mas também como interpretação tensa e ácida sobre a vida sob o peso da opressão. O filme arrancou aplausos emocionados da platéia do Lumière com uma das grandes imagens do festival, um Suleiman dos sonhos dando um pulo olímpico com vara por cima do muro construído por Isreal.

Citar outros momentos do filme seria lhes privar de descobri-los vocês mesmos quando The Time That Remains chegar ao cinema (terá distribuição pela Imovision).

Em Cannes, eu conversei com Suleiman (que está também no Crítico, um dos grandes depoimentos do filme, aliás), e essa parte escolhi especialmente para postar aqui, onde fala sobre a capacidade de existir com humor sob opressão.

PS: Tvz o quadro do You Tube no blog esteja cortado pelo formato Wide do material, sugiro ir até o canal do CinemaScópio - http://www.youtube.com/user/cinemascopio - e ver lá, onde está correto.

Entrevista: KMF
Edição: Emilie Lesclaux

Monday, May 25, 2009

Obrigado


Barcelona

Em Barcelona, conexão, vi agora a reação à cobertura esse ano, obrigado eu. Escrevam mais...

Festival foi excelente, e ainda tive a ajuda e companhia de Emilie, sem falar nos encontros anuais e trocas de idéias com os amigos estrangeiros, sem falar nos brasileiros, especialmente Valente da Cinética, Leo da Filmes Polvo e ainda Fernanda Taddei, de luxo.

Para lembrar que a cobertura existe por causa da parceria entre o Jornal do Commercio no Recife e a Aliança Francesa.

Ainda amanhã, devo postar mais alguma coisa de Cannes, talvez até um outro vídeo. Meu filme preferido não ganhou, devo escrever sobre ele - The Time That Remains, de Elia Suleiman.

Vim lendo agora no primeiro vôo o que os americanos chamam de "vanity piece" (obra oriunda da vaidade humana) - La Vie Passera Comme Un Rêve, as memórias cinefílicas de Gilles Jacob, "Citizen Cannes", diretor artístico do festival durante mais de 30 anos (passou a bola para Thierry Fremaux).

O livro está me pegando pelo tom curiosamente franco de expor opiniões sobre filmes e cineastas, e oferece uma visão interna de Cannes e da natureza humana projetada no cinema. Eu estou realmente querendo voltar para casa e retomar outras coisas, mas ainda não consegui sair do festival em si. K.M.F

PS: a Mahnohla Dargis do NY Times pirou com Enter The Void, do Gaspar Noé. Aparentemente, ela não usa iTunes.

Sunday, May 24, 2009

Tela Cativa, Prêmio Certo

Haneke com sua fita vermelha.

Le Jury tentando não dar satisfações à imprensa.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Foi uma edição e tanto essa do Festival de Cannes que, mais uma vez, confirma-se como a maior feira de arte via imagens em movimento do mundo. Quase sempre composto por quantidades igualitárias de grandes confirmações e enormes surpresas, a vitória de Michael Haneke, um dos autores mais reconhecidos do cinema europeu, chegou como uma das confirmações para esse cineasta de estilo forte que ainda perseguia o prêmio máximo do cinema de autor no mundo, a Palma de Ouro. Pense num barbudo feliz.

"Vez ou outra você sente um momento de real felicidade", disse Haneke, não muito contido. Se fosse filmar alguma coisa ontem, provavelmente o faria com uma alegre câmera na mão, abandonando seus dollies lubrificadíssimos, steadicams calibradas e tripés chumbados no aço.

O filme de Haneke, Das Weisse Band (A Fita Branca), examina uma pequena semente do que pode ter se alastrado pela Alemanha da primeira metade do século 20 através de uma série de conflitos vividos numa pequena vila em 1914-16. Essa semente seria a do fascismo, num filme discretamente poderoso, feito em preto e branco, e com atuações firmes.

Antes mesmo de Cannes começar, especulava-se que a presidente do júri em Cannes, esse ano, a atriz francesa Isabelle Huppert teria uma inclinação natural para o filme do alemão radicado na Áustria (e recentemente, na França). Huppert atuou em dois filmes do diretor (A Professora de Piano e Le Temps du Loups), o primeiro ganhador do Grande Prêmio do Júri em 2001. Na coletiva do júri, após a premiação, ontem à noite, Huppert confirmou que admira o cinema de Haneke, “um artista que às vezes toma caminhos estranhos para chegar às profundezas da alma, demonstrando assim grande humanidade”.

Foi uma seleção de belos filmes a que vimos esse ano, mesmo que a beleza às vezes chegasse em embalagens duras num festival que teve na sua abertura a delicadeza habitual de uma animação da Pixar, o excelente Up. O júri parece ter entendido isso bem com o reconhecimento de alguns dos títulos mais agressivos do ponto de vista humano e estético, ignorando, no processo, nomes de peso como Pedro Almodóvar. Seu Los Abrazos Rotos não foi lembrado, o que coloca o espanhol na posição que Haneke ocupava até ontem: a de autor europeu com tela cativa no Festival, mas que ainda não chegou à Palma de Ouro.

Três desses títulos de cinema extremo: o delirante exercício em vampirismo católico que é Thirst (Sede), do coreano Park Chan Wook, mais uma prova que os sul coreanos filmam o que der na telha, livremente. O Prêmio de Interpretação Feminina para Charlote Gainsbourg pela sua entrega total ao Anticristo, de Lars Von Trier, filme que, junto com o filipino Kinatay, de Brillante Mendoza (Melhor Diretor), atraíram as reações afobadas das pequenas autoridades de uma imprensa mimada e auto importante.

Ontem à noite, por exemplo, um jornalista repetiu a filosofia de cobrança deslocada que havia marcado a coletiva do filme de Von Trier, onde um crítico inglês exigiu uma explicação sobre a existência daquele filme. “Como explicam o prêmio de Direção para Mendoza?”, foi a pergunta para o júri, durante a coletiva pós-cerimônia.

“Nós gostamos do filme!”, colocou sucintamente o cineasta turco Nuri Bilge Ceylan, como se essa possibilidade inexistisse. O escritor Hanif Kureishi, também membro do júri, ainda completou sobre o filme que nos mostra o processo de tortura, morte e esquartejamento de uma mulher em Manila. “Bem... não é um filme para ver com a sua paquerinha, mas arte é isso, às vezes chega dura e crua”.

Quentin Tarantino, que os boatos nas revistas de mercado já insinuam pressão da Universal sobre ele para que volte à mesa de montagem para mais ajustes no seu Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds), conseguiu emplacar o Prêmio de Interpretação Masculina para o ator alemão Christopher Waltz.

Desde que o filme passou na última quarta-feira, o excelente Waltz, interpretando um cínico oficial poliglota da SS, já vinha colecionando elogios por toda Cannes. Roteiro foi para o drama chinês sobre amores proibidos Spring Fever, de Lou Ye, enquanto a inglesa Andréa Arnold repetiu o feito de três anos atrás quando ganhou o mesmo prêmio por Marcas da Vida (Red Road).

Os jurados saíram de uma sinuca da maneira mais fácil ao criar um prêmio especial para o monumento do cinema mundial que é o francês Alain Resnais, 87 anos, diretor de obras essenciais como Noite e Neblina e Hiroshima Mon Amour, na competição esse ano com mais um filme notável, Les Herbes Folles. Foi ao palco receber o “Prêmio Excepcional do Festival de Cannes”.

Ouvindo o doce tom de voz de Gainsbourg ao receber seu prêmio – ela o dividiu com seu diretor, Lars Von Trier, com seu parceiro de atuação Willem Dafoe, e ainda agradeceu à mãe Jane Birkin e ao pai falecido, Serge Gainsbourg -, a atriz francesa parecia fazer frente à sua atuação animalesca no filme, uma das grandes promessas de discussão pós-sessão para a temporada 2009 nas salas de cinema.

Na verdade, essa é a beleza de Cannes, poder imaginar quanto e como que esses filmes irão ganhar o mundo, uma safra de filmes fortes feitos por artistas que parecem dar muito de si mesmos para transformar idéias em imagens. Dos balões coloridos de uma animação digital 3D sobre envelhecer (Up) aos dramas internos de um casal isolado numa floresta (Aniticristo), há ainda estudos profundos sobre as doenças das sociedades não apenas nos filmes de Haneke e Mendoza, mas também no injustiçado de ontem a noite, o belo The Time That Remains, do realizador palestino Elia Suleiman.

De qualquer forma, fica a sensação de amor pelo cinema, tão bem expressa por autores que não poderiam ser mais diferentes em tom, estilo e faixa etária. Quentin Tarantino, Pedro Almodóvar e Alain Resnais, seus filmes pulsando com energia e paixão pelo meio, meio que não mostra sinais de que irá morrer tão cedo.

Cannes 2009 - Premiação

Curta Metragem - Arena (Portugal), João Salaviza

Camera D'Or -
Samsom and Delilah (Austrália), de Warwick Thornton (seleção Un Certain Regard).
Menção Especial Ajami (Israel), de Scandar Copti e Yaron Shani (seleção Quinzena dos Realizadores).

Prêmio do Júri Oficial (dividido)
Fish Tank, de Andrea Arnold
Thirst, de Park Chan Wook

Roteiro - Spring Fever (China, produzido com dinheiro francês), filme de Lou Ye escrito por Feng Mei. Independência total do filme das autoridades chinesas é um fator.

Mise en Scéne (Direção) - - Brillante Mendoza, Kinatay (Filipinas). Uau, cojones do júri.

Prêmio da Interpretação Feminina - Charlote Gainsbourg! Yeah! Lindo discurso dela, agradeceu a Thierry Fremaux por selecionar "um filme como Anticristo", dividiu o prêmio com Lars Von Trier e Willem Dafoe, agradeceu à mãe (Jane Birkin) e ao pai dela, Serge (Gainsbourg). Tudo numa vozinha sussurrante e emotiva.

Prêmio de Interpretação Masculina - Christopher Waltz, por Inglourious Basterds, de Quentin Tarantino. Waltz falou em francês e inglês (ele é alemão), como seu oficial multilíngue da SS no filme.

*** Prêmio Excepcional do Festival de Cannes *** - Alain Resnais. Aplaudido de pé, o diretor de Noite e Neblina, Hiroshima Mon Amour, O Ano Passado em Marienbad e Les Herbes Folles. Claramente não acharam que o mais recente era material para Palma de Ouro, foram com uma celebração da carreira.

Grand Prix du Jury - Un Prophète, de Jacques Audiard, o filme francês que era tido como um dos favoritos, confirmando expectativas.

Palma de Ouro - Das Weisse Band, de Michael Haneke.

Cansaço, Lerdeza


Eu não lembro de ter batido tamanho cansaço e incapacidade de escrever num final de Cannes como dessa vez. K.M.F

Irmãos Dardenne: Leçon du Cinéma 2009


Depois de Tarantino, ano passado, os Irmãos Dardenne, vencedores de duas Palmas de Ouro em 1999 e 2005, deram a sua Leçon de Cinéma, numa conversa mediada pelo crítico francês Michel Ciment e ilustrada por trechos dos filmes La Promesse, Rosetta, O Filho, A Criança e O Silêncio de Lorna.

Os diretores belgas começaram falando sobre suas influências, citando como principal mentor o cineasta e poeta Armand Gatti, com quem começaram a trabalhar muito jovens, filmando documentários em cidades operárias.

Sobre o trabalho com atores, Luc Dardenne afirmou não acreditar na psicologia do ator, explicando que quanto menos você mostra e explica ao ator, mais ele investe suas próprias emoções, sendo a mesma coisa para o espectador. “Tenho como regra sempre contradizer o ator quando ele sente que está certo, para ele ficar em desequilíbrio e não ficar preso numa imagem. (...) Precisamos ser um pouco sádicos na mise en scène” (Luc Dardenne).

Sobre a escolha dos atores, os irmãos Dardenne explicaram que gostam de trabalhar com rostos pouco conhecidos, para não interferir com os personagens. Para isso, costumam passar anúncios nos jornais e fazer testes com os selecionados. “É um momento muito importante pra gente, pois é ai que o filme começa. (...) Aprendemos muito nessa fase, até com os que não são selecionados.”

Os diretores também falaram da importância do som e a ausência de música nos seus filmes: “A música e o ritmo são dados pelos sons: as respirações, a cidade, os objetos, os ruídos das roupas, os objetos que manipulam... A materialidade dos objetos é fundamental.” (Jean-Pierre Dardenne).

Interrogados sobre o seu famoso estilo caracterizado pelo uso de câmera na mão e luz natural, os diretores ressaltaram o trabalho valioso do diretor de fotografia Alain Marcoen na pré-produção dos filmes, para sentir as locações e a luz. O trabalho de repetição com o operador de câmera e com os atores é indispensável nesse sentido, no intuito de alcançar o ritmo e a tensão de cada cena.

Sobre Rosetta, Luc Dardenne fala: “Queríamos filmar Rosetta como um soldado, e para isso, tínhamos que ficar muitas vezes atrás dela, como um repórter de guerra. Precisávamos ficar dentro da sua energia, do seu movimento. O contracampo não era interessante para esse filme.” Da mesma forma, a manipulação de objetos e o tempo dos gestos é algo muito valorizado no trabalho de direção.

Finalmente, sobre o trabalho a dois, Luc Dardenne explicou o método utilizado: “Falamos muito antes da filmagem, entre nos e com a equipe técnica. Durante a filmagem, quando um tem uma idéia, ele a realiza. O outro fica atrás do vídeo assist sem interferir. Depois analisamos juntos e sozinhos o plano, conversamos, as vezes brigamos. Mas no geral, as rivalidades de criança foram ultrapassadas. Gostamos quando o outro tem uma idéia e toma a iniciativa.” “É porque somos dois que somos cineastas. Na verdade, somos usurpadores encabulados, pois cada um é um semi-realizador”. (Emilie Lesclaux)

Eduardo Valente

Valente cineasta.
Valente crítico.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O crítico e cineasta carioca Eduardo Valente, 33 anos, está em Cannes numa dupla jornada. Como crítico credenciado pela www.revistacinetica.com.br - ele vê uma média de quatro filmes por dia, às vezes seis, às vezes só três, dependendo da programação e do quanto tem que escrever. E está também no festival como cineasta, uma vez que seu primeiro longa metragem, No Meu Lugar, integra a seleção oficial, onde teve duas sessões esta semana, na segunda-feira (para a crítica) e outra na quarta-feira (a oficial).

Valente passa pela estranha situação de ver Cannes, esse ano, por dois lados. Tentar respeitar os protocolos rígidos impostos pelo maior festival de cinema do mundo aos realizadores ali prestigiados e, ao mesmo tempo, tenta ver os filmes da competição, da mostra Un Certain Regard e da Quinzena dos Realizadores. Viu-se na ainda mais estranha situação de ir, com sua credencial de crítico, à sessão do seu próprio filme, e, dois dias depois, à projeção do seu filme com um segundo crachá, o de realizador, vestido de terno e gravata para satisfazer o protocolo.

Um dos compromissos, na terça-feira, envolveu colocar a roupa formal para, junto com todos os cineastas que, como ele, concorrem ao prêmio Camera D’Or (dado a primeiros filmes), ir à sessão de gala de Los Abrazos Rotos, de Pedro Almodóvar, com a presença do espanhol, sessão seguida de um jantar.

“Sabe que quando saímos do filme do Almodóvar, dei de frente com a fila para a primeira sessão do filme novo do Alain Resnais, Les Herbes Folles? Vendo aquelas pessoas ali, tirei a gravata e queimei o jantar. Melhor ir ver um filme (e do Resnais!) do que enfrentar um jantar formal”, nos falou.

Curiosamente, Valente veio a Cannes pela primeira vez em 2002 com seu curta-metragem Um Sol Alaranjado, também a primeira vez que escreveu críticas sobre os filmes em Cannes, na época para a Contracampo, que também ajudou a fundar. Desde então, não perdeu nenhuma edição do festival.

Um Sol Alaranjado ganhou o primeiro prêmio da mostra de filmes de escola, Cinefondation, que naquele ano teve como presidente do júri o cineasta Martin Scorsese. Seu filme foi o projeto final no curso de cinema da Universidade Federal Fluminense.

Mais dois curtas de Valente também foram selecionados para Cannes. Castanho, em 2004, para a Quinzena dos Realizadores, e O Monstro (2006), na competição oficial de curtas. Seus quatro filmes, portanto, passaram por Cannes em diferentes seções do festival, e a presença do seu primeiro longa esse ano é fruto do prêmio de 2002 para Um Sol Alaranjado.

Dentro de uma filosofia de mapear cineastas, Cannes estimula que o primeiro longa metragem de um cineasta premiado no Cinefondation seja exibido em alguma das mostras da seleção oficial, compromisso que o festival mantém.

No Meu Lugar, cuja primeira exibição ocorreu em janeiro, no Festival de Tiradentes, é uma crônica delicada sobre três grupos de personagens que, de uma certa forma, dividem o mesmo espaço de uma casa de classe média alta, no Rio. Como peças avulsas do filme, eles nos são apresentados em tempos diferentes que representam o antes, o durante e o depois de um incidente violento que ilustra de maneira incomum na cinematografia brasileira o tema nacional das cidades divididas. Divididas por pessoas que se cruzam, mas que não se misturam, e que às vezes se batem através do nosso tenso sistema de castas.

Entre uma sessão e outra, essa semana, conversamos com Valente sobre seu filme, e sobre Cannes e o cinema.

Cannes já te ajudou a passar a um estágio de entendimento do filme ou ainda é cedo?

Acho que ainda é cedo, no geral. Antes de Cannes, o filme passou uma vez só, em Tiradentes; é muito pouco para saber como realizador o que importa nesse momento, que é entender como as pessoas podem receber o filme. Não que isso mude o que a gente sente sobre ele, mas muda o que ele será, como ele vai dialogar com as pessoas. Vendo filmes de outros países apresentando uma visão de terceiro mundo, geralmente exibidos nesses festivais, tenho a impressão que meu filme é um pouco estranho ao mundo dos festivais internacionais de cinema, no sentido do que eles esperam de um filme brasileiro. Vendo os filmes filipinos por exemplo, Kinatay e Manila, tem ali uma expressão típica de um terceiro mundo do que festivais esperam ver de uma imagem de terceiro mundo, seja o filme bom ou ruim: a aspereza, a questão da realidade extrema, utilizando certas ferramentas como a câmera na mão, super demonstrada, relações de classes sociais... Embora meu filme tenha um personagem que mora na favela, embora tenha uma situação de violência no começo, o “démarche” do filme vai contra essas expectativas. Estou curioso para ver o quanto essa impressão vai se confirmar ou não, mas acho que é um filme que vai causar algumas dificuldades maiores fora do que no Brasil. Não acho que o filme vai ser um sucesso de público no Brasil, mas acho que vão entendê-lo de uma outra maneira e ver a forma que se relaciona com as imagens de violência que a gente produz e consome no Brasil. O público estrangeiro não está embebido numa linguagem local brasileira para perceber nuances e questões.

No Meu Lugar tem uma capa que parece se encaixar em algo que esperamos do cinema brasileiro, mas na verdade tudo isso é desconstruído.

O que vinha desde o inicio do projeto, era um desejo de olhar para a questão da violência urbana no sentido de que, pra mim, como carioca, é uma questão da qual eu não posso fugir no meu dia a dia e que ocupa a minha imaginação e me preocupa. Era um tema do qual não podia fugir num primeiro filme que é essencialmente carioca. Os meus curtas têm características de um olhar carioca mas não são filmes onde o Rio de Janeiro é uma questão. Mas eu sabia que queria falar disso por outros motivos que os dos discursos que eu vinha vendo até então, sejam sociológicos, cinematográficos ou televisivos. Basicamente, eu queria falar de pessoas envolvidas numa situação de violência, mas considerando o que delas existe para além do simples fato, que geralmente atrai a atenção. O único grande pressuposto estético e formal nosso, era que era um filme sobre pessoas. A câmera e o som estão a serviço daquelas personagens. Uma câmera na mão correndo na favela iria em contra disso. Nesse filme, a câmera em si não pode se tornar uma questão, ela tem que ajudar a contar uma historia.

Como viu a recepção da crítica, especialmente das revistas de mercado Variety e Hollywood Repórter se debruçando sobre um filme brasileiro intimista?

São ferramentas de mercado, com visão americana e que conheço muito bem. Por um lado confirmou, no caso da Hollywood Reporter, uma dificuldade de perceber o filme pelo que ele é, um discurso que já vem de certa forma pronto e que é aplicado ao filme em si. Percebe-se também uma cobrança do modelo narrativo americano sobre “concluir”, “narrar”. Mas o que me interessa sempre é o quanto a crítica, independente do meio, da revista, da linha de pensamento, é ver que uma crítica na verdade é tão boa quanto o crítico. Há o que apenas cumpre o papel e o outro que quer encontrar o filme, no caso da crítica publicada na Variety. Fico curioso para ver mais, pois essas duas foram as que eu vi, de ver o que um francês diria, que já viria com uma outra leitura, de uma outra cultura. Nesse corre-corre aqui, não sei se realmente saiu mais coisa. Dito isso, gostei muito do texto na Variety que, mesmo com muitas ressalvas, senti que o cara viu o filme de fato e conseguiu estabelecer uma relação com o filme. Isso é muito importante.

Cada vez mais você está colocando em prática o fazer cinema em vários sentidos: fazer filmes, escrever para a Cinética, dar aulas.

Há sete anos, quando vim para Cannes com o Sol Alaranjado, eu tinha um discurso que propunha um futuro. Hoje posso olhar pro presente com um pouco mais de distanciamento. Tenho uma certeza: a minha ocupação diária e o que me interessa fazer todo dia é a crítica: escrever, estar numa sala de cinema, assistindo filmes em casa... é o meu jeito principal de fazer cinema. As outras coisas vêm em paralelo. Trabalho em produção de mostras, faço curadoria, dou aula... Tenho gostado muito de dar oficinas de roteiro em lugares do país onde essas aulas não estão geralmente disponíveis. Fazer filmes entra como uma atividade a mais. Fazer esse filme fecha um ciclo: fazer o primeiro longa era algo que me propus a partir do prêmio que ganhei em Cannes. Não tenho projeto para fazer um próximo filme, não é uma questão pra mim nesse momento. Quero continuar com a Cinética e fazer um doutorado em cinema. No fundo continuo com a mesma visão de sete anos atrás, só que um pouco mais certo de prioridades. A crítica é algo que com certeza não passará.

Outra postagem do vídeo sobre Valente que fizemos em Cannes.