Haneke com sua fita vermelha.
Le Jury tentando não dar satisfações à imprensa.
por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
Foi uma edição e tanto essa do Festival de Cannes que, mais uma vez, confirma-se como a maior feira de arte via imagens em movimento do mundo. Quase sempre composto por quantidades igualitárias de grandes confirmações e enormes surpresas, a vitória de Michael Haneke, um dos autores mais reconhecidos do cinema europeu, chegou como uma das confirmações para esse cineasta de estilo forte que ainda perseguia o prêmio máximo do cinema de autor no mundo, a Palma de Ouro. Pense num barbudo feliz.
"Vez ou outra você sente um momento de real felicidade", disse Haneke, não muito contido. Se fosse filmar alguma coisa ontem, provavelmente o faria com uma alegre câmera na mão, abandonando seus dollies lubrificadíssimos, steadicams calibradas e tripés chumbados no aço.
O filme de Haneke, Das Weisse Band (A Fita Branca), examina uma pequena semente do que pode ter se alastrado pela Alemanha da primeira metade do século 20 através de uma série de conflitos vividos numa pequena vila em 1914-16. Essa semente seria a do fascismo, num filme discretamente poderoso, feito em preto e branco, e com atuações firmes.
Antes mesmo de Cannes começar, especulava-se que a presidente do júri em Cannes, esse ano, a atriz francesa Isabelle Huppert teria uma inclinação natural para o filme do alemão radicado na Áustria (e recentemente, na França). Huppert atuou em dois filmes do diretor (A Professora de Piano e Le Temps du Loups), o primeiro ganhador do Grande Prêmio do Júri em 2001. Na coletiva do júri, após a premiação, ontem à noite, Huppert confirmou que admira o cinema de Haneke, “um artista que às vezes toma caminhos estranhos para chegar às profundezas da alma, demonstrando assim grande humanidade”.
Foi uma seleção de belos filmes a que vimos esse ano, mesmo que a beleza às vezes chegasse em embalagens duras num festival que teve na sua abertura a delicadeza habitual de uma animação da Pixar, o excelente Up. O júri parece ter entendido isso bem com o reconhecimento de alguns dos títulos mais agressivos do ponto de vista humano e estético, ignorando, no processo, nomes de peso como Pedro Almodóvar. Seu Los Abrazos Rotos não foi lembrado, o que coloca o espanhol na posição que Haneke ocupava até ontem: a de autor europeu com tela cativa no Festival, mas que ainda não chegou à Palma de Ouro.
Três desses títulos de cinema extremo: o delirante exercício em vampirismo católico que é Thirst (Sede), do coreano Park Chan Wook, mais uma prova que os sul coreanos filmam o que der na telha, livremente. O Prêmio de Interpretação Feminina para Charlote Gainsbourg pela sua entrega total ao Anticristo, de Lars Von Trier, filme que, junto com o filipino Kinatay, de Brillante Mendoza (Melhor Diretor), atraíram as reações afobadas das pequenas autoridades de uma imprensa mimada e auto importante.
Ontem à noite, por exemplo, um jornalista repetiu a filosofia de cobrança deslocada que havia marcado a coletiva do filme de Von Trier, onde um crítico inglês exigiu uma explicação sobre a existência daquele filme. “Como explicam o prêmio de Direção para Mendoza?”, foi a pergunta para o júri, durante a coletiva pós-cerimônia.
“Nós gostamos do filme!”, colocou sucintamente o cineasta turco Nuri Bilge Ceylan, como se essa possibilidade inexistisse. O escritor Hanif Kureishi, também membro do júri, ainda completou sobre o filme que nos mostra o processo de tortura, morte e esquartejamento de uma mulher em Manila. “Bem... não é um filme para ver com a sua paquerinha, mas arte é isso, às vezes chega dura e crua”.
Quentin Tarantino, que os boatos nas revistas de mercado já insinuam pressão da Universal sobre ele para que volte à mesa de montagem para mais ajustes no seu Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds), conseguiu emplacar o Prêmio de Interpretação Masculina para o ator alemão Christopher Waltz.
Desde que o filme passou na última quarta-feira, o excelente Waltz, interpretando um cínico oficial poliglota da SS, já vinha colecionando elogios por toda Cannes. Roteiro foi para o drama chinês sobre amores proibidos Spring Fever, de Lou Ye, enquanto a inglesa Andréa Arnold repetiu o feito de três anos atrás quando ganhou o mesmo prêmio por Marcas da Vida (Red Road).
Os jurados saíram de uma sinuca da maneira mais fácil ao criar um prêmio especial para o monumento do cinema mundial que é o francês Alain Resnais, 87 anos, diretor de obras essenciais como Noite e Neblina e Hiroshima Mon Amour, na competição esse ano com mais um filme notável, Les Herbes Folles. Foi ao palco receber o “Prêmio Excepcional do Festival de Cannes”.
Ouvindo o doce tom de voz de Gainsbourg ao receber seu prêmio – ela o dividiu com seu diretor, Lars Von Trier, com seu parceiro de atuação Willem Dafoe, e ainda agradeceu à mãe Jane Birkin e ao pai falecido, Serge Gainsbourg -, a atriz francesa parecia fazer frente à sua atuação animalesca no filme, uma das grandes promessas de discussão pós-sessão para a temporada 2009 nas salas de cinema.
Na verdade, essa é a beleza de Cannes, poder imaginar quanto e como que esses filmes irão ganhar o mundo, uma safra de filmes fortes feitos por artistas que parecem dar muito de si mesmos para transformar idéias em imagens. Dos balões coloridos de uma animação digital 3D sobre envelhecer (Up) aos dramas internos de um casal isolado numa floresta (Aniticristo), há ainda estudos profundos sobre as doenças das sociedades não apenas nos filmes de Haneke e Mendoza, mas também no injustiçado de ontem a noite, o belo The Time That Remains, do realizador palestino Elia Suleiman.
De qualquer forma, fica a sensação de amor pelo cinema, tão bem expressa por autores que não poderiam ser mais diferentes em tom, estilo e faixa etária. Quentin Tarantino, Pedro Almodóvar e Alain Resnais, seus filmes pulsando com energia e paixão pelo meio, meio que não mostra sinais de que irá morrer tão cedo.
Sunday, May 24, 2009
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16 comments:
Kleber, mais uma vez uma boa cobertura. Valeu!
Abraços.
Vinícius.
Gostei mto do resultado!! E ótima cobertura, Kleber!!
Au revoir!!
Valeu a ótima cobertura Kleber. Abraços.
obrigado pelo olhar neste festival que infelizmente não pude acompanhar de perto. forte abraço.
Acompanhei o blog diariamente esse ano.
Grande abraço.
Parabéns pela cobertura, foi meu blog oficial de Cannes 2009!
abs
Fernanso
www.kinemail.com.br
Também deixo aqui os meus parabéns pela cobertura, e espero que os arquivos não sumam no futuro, como os do blog anterior.
Abraço e bom retorno!
Desde o ano passado que acompanho a cobertura de Cannes pelo seu blog e é sempre prazeroso, principalmente pelo apelo multimídia. Ajuda muito também seu estilo ácido, sagaz e lúcido de escrever. Parabéns mesmo!!!
E se não me engano, a empolgação por essa edição do festival foi bem maior que a do ano passado, e não vejo a hora de poder conferir tantas promessas de ótimos filmes.
Parabéns pela cobertura Kleber.
Ao invés de parabenizá-lo pela cobertura, vou agradecê-lo! Muito obrigado.
Gde Abraço.
Rodrigo Duarte
fala kleber! deixo registrado que fui mais um a acompanhar cannes por aqui. valeu! parabéns! abraço.
Esse retorno é bom. Muito Obrigado.
Cobertura excelente!! Meus sinceros parabéns! Textos afiadíssimos, bem escritos, diversificados (denotando, também, um fôlego impressionante, digno de workaholic; não me espanta o seu cansaço! rsrs) resultando num painel precioso com tudo o que rolou por lá. Vai deixar saudades. E, como João já falou, espero que os textos não desapareçam, para que possamos voltar a eles depois.
E isso que o Julio comentou é bem legal porque estamos lendo os textos sem os filmes. Mas à medida que os filmes vão estreando por aqui e a gente passa a ter uma opinião mais concreta deles, é muito legal voltar aos textos e compreender no geral o que foi escrito. Esse arquivo é precioso.
Uma das coisas que mais respeito é o arquivo, não vai sumir não, obrigado de novo.
sobre a coisa do workaholic, tem aquela frase, "bom fazer o que eu gosto porque, se não tiver cuidado, posso terminar tendo que trabalhar". Vero.
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