Saturday, August 30, 2008

CinemaScópio no ORKUT


(er... foto de celular)

A comunidade do CinemaScópio no Orkut é um sucesso. É livre, as contribuições são quase sempre divertidas, informativas e, na pior das hipóteses, os eventuais malas marcam presença despertando uma saudável curiosidade mórbida tanto no postar como no ler.

Longe de ser perfeita, é um espaço aberto, onde instaurou-se uma notável falta de medo no se expressar, e onde quase ninguém será acusado de ter perdido 80 pontos no QI por escrever algo, até mesmo pelo fato de um ou outro não ter QI suficiente para perder tanto. No geral, me impressiona, na verdade, a inteligência de muitos, a delicadeza de tantos e o interesse comum pelo cine.

No entanto, problemas técnicos do próprio Orkut (que afligem centenas de comunidades, fui informado) acabaram com o link para o fórum. E atendendo a pedidos, achei que seria interessante criar uma comunidade de emergência. E a mesma chama-se simplesmente CinemaScópio II.

ei-la: http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=67501641

Poderá dar continuidade a um fórum que, dada a média geral desse tipo de coisa, é muito bom.

(kleber)

O Nevoeiro


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


O filme de horror que me chama a atenção pela potência da sua máquina de sustos, de suspense e de aflição chama-se O Nevoeiro (The Mist, 2007), dirigido por Frank Darabont. Esse filme B, ou talvez A querendo evocar o cinema B dos monstros dos anos 50, é mais uma adaptação dos escritos de Stephen King, e funciona infernalmente bem junto à platéia. Não seria possível pedir mais de um filme do gênero, e ele ainda vem com um final à altura de todas as premissas do cinema de horror. Para passar duas horas nervoso e feliz, esse é o filme.

Darabont fez outros dois Kings antes, o misterioso campeão moral do www.imdb.com, Um Sonho de Liberdade (The Shawshank Redemption, 1994), segundo os milhões de leitores do site, o melhor filme já feito pela humanidade (é No. 1 na votação popular). Fez também outra adaptação de prisão, The Green Mile, com Tom Hanks. Darabont é aquele cineasta cheio de americana, ele consegue injetar uma sensibilidade média dos EUA tradicional, sem evitar os aspectos mais duros dos escritos de King. Não é de se espantar que seus filmes são sucessos da família americana, mas com classificação "R", tida culturalmente como 'adulta' nos EUA, pouco 'família'.

Em O Nevoeiro, Darabont me lembra aquele desenho do Pernalonga onde, revoltado com o baixo valor da recompensa oferecida por coelhos, parte para serrar a península da Flórida e mostrar o quanto pode ser perigoso. No caso do Darabont, seu valor baixou consideravelmente com seu filme anterior, The Majestic, um pudim de açúcar que parecia ter sido dirigida por um Spielberg particularmente abiscoitado. De qualquer forma, é um filme que ainda me chama a atenção, pois salas de cinema sempre me atraem.

Para O Nevoeiro, ele apresenta seu filme, até agora, mais agressivo. O personagem principal chama-se David (Thomas Jane, a simpática porta de The Punisher), ele faz cartazes de cinema. Um deles ali no canto é o de Enigma do Outro Mundo (The Thing), de John Carpenter, referência para o que veremos a seguir, uma vez que o cinema de Carpenter faz-se presente com pelo menos mais dois filmes: Assault on Precinct 13 (1976) e The Fog – A Bruma Assassina (1979), ambos lindamente claustrofóbicos.

Discretamente situado nos anos 80, O Nevoeiro abre com uma tempestade violenta que deixa toda a região, e a casa de David e sua família, danificadas. No dia seguinte, sai com o filho para comprar mantimentos no supermercado da cidade e eis que baixa na região uma estranha névoa, logo associada à tempestade. Dos que num primeiro momento enfrentam a bruma nós só ouvimos os gritos distantes, ou vemos seus pedaços ensanguentados sendo devolvidos violentamente.

O grupo preso no supermercado entende que a névoa esconde criaturas desconhecidas que mostram-se particularmente agressivas, e a cada momento surge uma nova e estranha espécie (répteis, insetos, monstros com tentáculos). O aspecto retrô dos monstros é delicioso, e Darabont equilibra esse aspecto "science fiction double feature" com o horror para adultos de cada cena, com especial atenção às reações realistas dos personagens para elementos do mundo fantastique.

A sensação de clausura é palpável ao mesmo tempo em que a angústia aumenta com a certeza de que a fachada de vidro do supermercado não deverá segurar os ataques por muito tempo. Tentativas de fugir são aflitivas, e numa sequência das boas uma corda é usada com máximo efeito nevoeiro a dentro.

Diálogos e decisões chamam a atenção pela lógica correta nesse tipo de filme, e logo cria-se um racha crível entre David e seus simpatizantes e os seguidores de uma fundamentalista cristã claramente neurótica (Márcia Gay Harden) que transforma a situação apocalíptica num cenário ainda mais infernal.

Nos seus momentos mais poderosos, o filme pega pesado no horror mais humano, usando efeitos especiais com rara felicidade nesse mercado tão saturado. Há de se parabenizar (ou temer pela carreira futura de Darabont) pelo final kamikaze do ponto de vista do mercado, muito embora esse desfecho faça do filme experiência ainda mais memorável. Se sessões duplas ainda estivessem em voga, O Nevoeiro faria um lindo par com Fim dos Tempos, do Shyamalan.

Os Desafinados


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


A trajetória do cineasta Walter Lima Jr é composta por filmes que encontram facilmente espaço na memória afetiva do cinema brasileiro, e talvez seja suficiente citar apenas um deles, o muito especial A Lira do Delírio (1978). Seu marco inicial, Menino de Engenho (1965), e um mais recente, A Ostra e o Vento (1997), ilustram a coerência de uma carreira que abrange mais de 40 anos. Isso nos leva ao seu mais recente esforço, Os Desafinados (2008), uma grande decepção.

Esse bloco pesado de clichês revela-se, finda a sessão, um mistério. Problemas observados com freqüência na produção brasileira como o do cineasta que filma aquilo (ou aquele) que não conhece, resultando em notas falsas na forma de cinema e visão de mundo, não deveriam ser um problema nesse aqui.

A associação pessoal de Walter Lima Jr (também roteirista) com o material é clara. O release entregue à imprensa reforça isso, confirmando que seus anos de formação no Rio de Janeiro testemunharam o nascimento da Bossa Nova e de toda aquela geração. De fato, ele foi parte disso. O personagem de Selton Mello, um cineasta, tem o corte claro de um alter ego do próprio diretor. Mesmo assim, tudo soa tão falso, como se o filme tivesse sido dirigido à distância, por telefone.

Alternando passagens no presente e no passado (anos 60), Os Desafinados choca por fazer jus ao próprio título. O lugar comum do trocadilho apenas reflete o lugar comum do todo, que é composto por uma seqüência frustrante de situações subdesenvolvidas nas longas duas horas e dez minutos de projeção. É um filme cuja abertura nos mostra ensolaradas paisagens de cartão postal do Rio ao som da bossa nova.

Joaquim (Rodrigo Santoro), Davi (Ângelo Paes Leme), PC (André Moraes) e Geraldo (Jair Oliveira) são o quarteto titular (todos muito risonhos, sempre) músicos brasileiros que vão tentar a sorte em Nova York. Joaquim deixa a esposa grávida (Alessandra Negrini, neutralizada pelo todo) e o grupo ganha a companhia de Dico, que quer comprar uma câmera de cinema nos EUA.

Em Nova York, Dico compra a pesada câmera 35mm, que o filme insinua ter som (câmeras de cinema são mudas). Para deixar claro que Dico é o cineasta do grupo, ele é visto com a câmera no braço em inúmeras cenas, como uma proto-handycam.

Joaquim conhece Glória (Cláudia Abreu) numa cena constrangedora no Central Park (ela toca flauta e ele vem de violão). Glória é cantora e começam um affair que, como tudo no filme, registra mais como cena filmada do que pelo sentimento de romance junto ao espectador. Poucas vezes um casal andando numa cidade à noite e se conhecendo foi tão desinteressante.

Pouca coisa vemos do grupo de fato trabalhando em Nova York, ou interagindo de forma convincente com a cidade. Há uma subtrama que não acontece envolvendo um empresário estrangeiro explorador e a falta de intimidade muito freqüente no cinema brasileiro no filmar o passado de maneira realista (claramente o objetivo aqui) ganha mais uma tentativa não muito bem sucedida, mesmo num filme classe A como este. Não ajuda o fato de personagens estrangeiros em cena serem brasileiros tentando sotaques.

Na verdade, talvez a falta de intimidade maior seja com o mundo estrangeiro, e, de maneira interessante, Os Desafinados reflete essa ausência do elemento cosmopolita que marca a cultura brasileira de uma forma geral, e Nova York retratada nesse filme é uma pista. Cenas em estúdio batem de frente com imagens de arquivo da cidade nos anos 60 que apenas reforçam o aspecto televisivo do conjunto. Na verdade, esse banco de imagens fornece as imagens mais expressivas de Os Desafinados, e uma pena que sejam sempre planos de corte rápidos, típicos de uma novela.

Sem grandes preocupações com um estado de espírito como preocupação maior, ou de ater-se a conflitos humanos de boa qualidade, Walter Lima Jr, parece querer dar conta de toda a década em pinceladas incertas. Voltamos para o Brasil (vôo rasante sobre o Corcovado, imagem assinatura do quão cansado é o senso de imagem do filme), o Golpe de 64 ganha seus cinco minutos aqui, Dico tem problemas com a censura ali, uma TV exibe o discurso histórico "I Have a Dream" de Martin Luther King e, de repente, estamos em Buenos Aires para mais uma seqüência que não parece merecer o esforço do deslocamento.

No presente, temos o grupo já envelhecido rumo ao grande final, a cereja no topo quando o assunto é mais uma nota falsa, um desdobramento teleguiado pelo roteiro. Curiosamente, Dico, ainda no cinema 40 e tantos anos depois, tenta juntar o material da época para montar um especial que honre a música e a juventude de todos os seus amigos, especialmente dos que morreram. Esse especial é, clara e melancolicamente, Os Desafinados.

Encarnação do Demônio


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Como Walter Lima Jr., com Os Desafinados, José Mojica Marins surgiu nos anos 60 e também circula esse mês com um filme novo que marca trajetória de quase 50 anos. Diferente do seu contemporâneo carioca, esse autor paulista percorreu o caminho da marginalidade artística com algo que só pode ser considerada uma anomalia no Brasil: o gênero fantástico, o terror. Um problema num cinema nacional que, dada a inexistência desse tipo de filme na sua produção, simplesmente não sabe o que fazer quando vê um na sua frente. A questão persiste com Encarnação do Demônio (2008), não só uma anomalia de gênero, mas também autoral no nosso cenário. O filme passa esta semana em sessão à meia-noite no Festival de Veneza.

Há duas semanas, Encarnação do Demônio teve lançamento desastroso em 37 salas do país, atraindo cinco mil espectadores. Mojica, nos anos 60, chegou a ter mais de um milhão de pessoas para cada um dos seus filmes, estabelecendo comunicação com o popular e o desdém de uma crítica (em grande parte) pronta para dispensar a estranheza do seu cinema.

Gostos são discutíveis, pois é difícil, e sendo bem objetivo, encontrar na filmografia brasileira herança (disponível em ótimos DVDs) de imagens e sons tão rica quanto a de Mojica, não só um pioneiro do gênero no país mas, passados 40 anos, e isso é impressionante, seu único defensor. Num Brasil tão cruel, violento e desigual, perversão maior deveria ser o cinema de burgueses sobre a pobreza digna do sertão, ou a alegria brutal de viver em favelas.

Filmes seus como À Meia Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967) foram realizados com mínimos recursos e expressividade máxima, misturando a cultura e realidades do país com o cinema de gênero. Revendo esses dois filmes, as partes 1 e 2 da trilogia que agora se encerra com Encarnação do Demônio, entendemos que o tempo foi muito bom para os mesmos, agregando valores estéticos, temáticos e históricos. Oferecem ainda excelente contra peso para a versão oficial do cinema brasileiro na época, o Cinema Novo, e sugerem sintonia com cineastas como o americano Herschell Gordon Lewis ou o chileno Alejandro Jodorowsky.

Sobre o filme novo, Mojica passou os últimos 40 anos filmando terror e sexo nos anos 70 e 80, e, nos 90, longe do cinema, vivendo de performances na televisão e em festas de Halloween. Seu personagem Zé do Caixão tornou-se cada vez mais sua persona comercial, lenda urbana viva que veste-se de preto, usa anéis grandes e unhas impossivelmente longas. Essa persona parece tão longe (e também tão perto) do Zé do Caixão que admira o espírito das crianças, e despreza o mundo dos homens.

Seu novo filme me parece bem mais fruto da sua persona borrada por um número grande demais de festas de halloween, infelizmente. O filme representa não só sua resistência ("são 40 anos de resistência!!", grita ele com braços erguidos e aos sete ventos na abertura), como também a admiração de dois jovens fãs incondicionais, Paulo Sacramento (produtor) e Dennison Ramalho (co-roteirista e assistente de direção) que o ajudaram a viabilizar o projeto.

O empenho dos dois constitui uma segunda iniciativa inspirada por algo que só pode ser descrita como amor para com o cinema e a pessoa de Mojica, a primeira também na forma de uma dupla, André Barcinski e Ivan Finotti. Juntos, publicaram em 1998 o livro até agora definitivo sobre Mojica e sua trajetória fascinante, Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, uma reconstrução apaixonada (e, por tabela, revoltante) de como certos talentos são tolhidos pelo cinema, seja ele brasileiro ou não. Barcinski e Finotti ainda fizeram um documentário, tristemente pouco visto, Maldito, que permaneceu no formato vídeo, sem a nobreza de circulação do 35mm. Barcinski, Finotti, Sacramento e Ramalho têm, portanto, participações essenciais no resgate de Mojica para o presente e futuro.

Sobre o novo filme, mais uma espetacular sensação de anomalia é sentida. Um olhar pragmático deverá gerar recusa instantânea, um outro olhar marcado pela anarquia, auxiliada pela admiração de toda uma trajetória, poderá fazer do filme uma sessão interessantíssima. Eu ainda me pergunto se gostei do filme, uma primeira reação me informou que não, mas entram questões que, temo, sejam extra-filme. O universo está todo lá, mas não funciona necessariamente para mim, exceto como a pura paixão de ele existir em ambiente tão árido.

Sacramento conseguiu atrair os dois produtores mais arrojados do Brasil hoje, Fabiano e Caio Gullane, que trouxeram a 20th Century Fox, cuja famosa fanfarra abre esse filme, e vê-la no início nos diz algumas coisas sobre a maneira como o cinema tenta embalar a arte para o mercado, mesmo que ela não seja necessariamente embalável. Feito a cores e em Dolby Digital, Encarnação do Demônio tem efeitos especiais que não destoam do padrão comercial, inclusive com uma moderna viagem pelas entranhas da sua obra logo na abertura.

Agregam também, numa clara leitura de resgate do passado e auto-afirmação da obra, imagens do seu catálogo que entram no filme como espectros digitais monocromáticos invadindo a nitidez moderna das sombras de Mojica.

Curiosamente, há a qualidade dúbia de ser, essencialmente, o mesmo cinema que Mojica fez nos anos 60. Por um lado, isso é bom, já que seu fascínio pela carne, a dor e a morte continuam intactos, ficando ainda clara a sensação de imposição do macho rei como centro de prazer e dor de todas as mulheres. Posso estar errado, mas Mojica mais velho me pareceu mais tímido ao assumir esse papel, que o filme claramente parace exigir desconfortavelmente.

Por outro lado, a estranheza das suas visões no contexto dos anos 60 perdem-se num filme moderno que surge na saturação de um mercado onde o horror filmado virou coisa de menino de 12 anos de idade, e onde a tortura explícita já é um clichê cansado. Arrancar um escalpo transforma-se numa cena evento vazia, assim como o destaque dado às estrelas do submundo do body piercing, na terra ou no inferno. Engraçado ver que nas dimensões paralelas, o body piercing é feito sob rígidas medidas de higiene e luvas de borracha.

Boa parte do que Mojica nos mostra como imagem de identidade "terror" me parece terrivelmente datada no contexto atual, nos passando a sensação deprimente de estarmos numa das salas rôxas de uma festa de Halloween de boate. Essa sensação de inadequação certamente casa com o universo recente de Mojica, e casa com Zé do Caixão voltando às ruas de São Paulo depois de 40 anos na prisão e sentindo-se um peixe fora d'água, resvalando para o filme em si mostrando-se sensacionalmente fora do seu tempo.

Zé do Caixão continua querendo gerar seu filho perfeito, odisséia que não parece guiada exatamente por uma narrativa, mas por cenas desconexas de forte elemento caricatural, e Milem Cortaz, com roupa e capuz marrom de monge, é o rosto demo de tudo isso. Um momento de fato espetacular (a união de um corpo com um porco) apenas sugere a estranheza do Mojica clássico tão pouco vista nesse novo trabalho. Vale observar a farta presença de lindas mulheres nuas banhadas em espesso sangue, aspecto que definitivamente separa o filme do horror anglo-saxão defendido por Hollywood.

Encarnação do Demônio é claramente uma obra de autoralidade excêntrica embalada como produto de mercado que ele termina não sendo, o que resulta numa curiosidade da produção brasileira como nenhuma outra. Entre o riso triste e o estarrecimento por WO, Mojica terminou por gerar o seu filho na forma de um filme, aos 72 anos de idade.

Eu adoraria ver um próximo filme seu feito em digital, em condições de produção dignas, mas saudavelmente restritivas, onde a sensação de gerar o filho perfeito não fosse exatamente uma obrigação para com o inferno, mas apenas um desejo mórbido de expressão.

Filme visto no Espaço Unibanco 5, São Paulo, Agosto 2008