Monday, July 13, 2009

Kes (DVD)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com

Bernard Shaw escreveu em Pigmalião que “é impossível para um inglês abrir a boca sem ser odiado ou desprezado por outro inglês”. A reflexão talvez seja uma base reveladora para o cinema de Ken Loach, que geralmente ocupa o escaninho do “realismo social” tão usado pela crítica. Seus melhores filmes parecem interessados não só em observar a realidade, mas em escutar uma cultura (a britânica) que se auto examina pelo sotaque.

Caso específico de Kes (1969), o mais belo filme da longa carreira de Loach.
Kes é uma jóia reconhecida do cinema inglês, feito no final de uma década que viu mudanças na imagem filmada dos britânicos. A idéia de “clássico inglês” é normalmente associada à pompa de um David Lean e um Lawrence da Arábia (1962), ou às adaptações recentes de Merchant & Ivory, como Retorno a Howard’s End (1993). São claramente versões mais palatáveis da Grã-Bretanha para o mercado.

Nesses filmes, personagens do povo eram “típicos” e/ou coadjuvantes, peças do conflito de classes em adaptações de Charles Dickens, ou glamourizados como o cockney sedutor de Michael Caine, em Alfie.

Trabalhando na TV britânica nos anos 60, Loach já comungava da filial inglesa da Nouvelle Vague, a chamada New Wave britânica, de autores como Tony Richardson, John Schlesinger e Karel Reisz. Isso o levou naturalmente a um filme como Kes.

O tratamento dado à história do menino Billy (David Braley), morador de uma comunidade mineira de Yorkshire, parece sugerir Kes como o perfeito duplo inglês do francês Os Incompreendidos, que François Truffaut filmou dez anos antes. Os filmes se completam como frutos honestos de suas respectivas culturas. Ambos contém imagens milagrosas da juventude que vão além da simples dramatização. Os dois abordam com força o enterro da infância.

Billy, com o ar de um esquilo assustado, parece mais à vontade dois graus acima da realidade. Isso o ajuda a lidar com professores neuróticos, o irmão cruel e a distância dos colegas que não entendem como ele funciona. Seu maior interesse está em Kes, o falcão que ele conquistou com astúcia e uma curiosidade esclarecida por livros.

O perigo é sugerir que Kes é um filme piegas sobre a amizade de uma criança com um animalzinho, o que não é. Composto por uma série de momentos que não têm preço (o jogo de futebol, o castigo dos meninos, a apresentação na aula de inglês) filmados em locação, percebe-se que é a fala espessa de toda uma classe social que parece dar a Loach o seu prazer como autor, e a autenticidade do seu relato. Billy e o seu ambiente social se bastam, e essa identidade está num falar que será explorado de forma radical ao longo de toda a filmografia do diretor.

Kes passou há 40 anos na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Dois meses atrás, em Cannes, Loach mostrou seu filme mais recente, Looking For Eric, crônica bem humorada sobre a relação entre um torcedor fanático e seu ídolo francês, Eric Cantona. O filme novo sugere o quanto Loach, 72 anos, deve estar de bem com a vida, e confirma o seu interesse pelo falar do inglês popular, sem esquecer da bola de futebol.

Filme revisto em DVD da Lume Filmes, em lançamento.

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