Tuesday, May 18, 2010

My Joy (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Schaste Moe (My Joy, Minha Alegria), de Sergei Losnitza, é a Palma de Ouro clara e evidente em Cannes esse ano. O filme tem um estado de espírito que acelera o pulso pela força de cada um dos seus planos. Toda vez que vejo esse cinema de corte russo, com traços inconfundíveis da herança soviética, lembro daquela carcaça de cavalo levantada pela ponte suspensa em Outubro, de Eisenstein.

Esse filme passa como uma parábola de horror de proporções bíblicas sobre a Rússia. Indo além de uma idéia de retrato realista dessa cultura e sua paisagem, vamos um passo além, pois o filme resulta numa pintura sofisticada do seu próprio estado de espírito, o retrato da alma.

A força descomunal do filme poderá ser discutida e/ou questionada pelos que não têm intimidade com o país e sua história recente e atual. Tudo pode parecer agressivo demais, pessimista demais, poético demais, de um impacto difícil de administrar. Para quem tem uma intimidade mínima, essa visão artística só pode ser admirada.

Esse é o primeiro filme de ficção de Losnitza, que tem uma carreira brilhante no documentário em curta e média metragem. Fez um outro filme impressionante chamado Blockade (2006) a partir dos arquivos do orgão de propaganda soviético sobre o cerco nazista a São Petersburgo (Leningrado, na época), recriando sons para as imagens mudas que mostram uma cidade asfixiada tentando viver.

Em Schastye Moe, o espectador é colocado num estado de tensão suspensa constante, e entra na casa das duas dezenas as imagens potentes da força bruta esmagando sinais inconfundíveis de delicadeza.

Quando existe a suspeita de nihilismo por parte do realizador, ele nos dá uma sinfonia de rostos humanos numa feira de cidade pequena, um homem que só quer passar amor para seu filho pequeno, um outro que quer voltar para casa com um vestido para sua mulher.

No entanto, esse é um filme que começa com a imagem de uma betoneira misturando concreto, um trator e um cadáver, e o nível de tensão em cada plano é algo a ser ainda estudado.

O fotógrafo moldavo Oleg Mutu (A Morte do Senhor Lazarescu, 4 Meses 3 Semanas 2 Dias) usa a tela larga scope de maneira orgânica, cada espaço ciente de sua importância, unindo estética e informação narrativa.

Das paisagens de verão a florestas geladas, Losnitza nos leva a uma estrutura fabular perfeitamente cortada pelo clima de modernidade, vez ou outra nos contando episódios isolados no passado de uma memória coletiva traumatizada.

Nosso personagem principal e condutor é um motorista (Viktor Nemets) de caminhão que, como um garoto num conto de fadas, tenta manter-se na estrada principal, mas aos poucos toma caminhos cada vez menores e perdidos na floresta.

Com a bússola moral quebrada, e a alma claramente vencida, Losnitza desconstrói nossa segurança de espectador treinado, nos deixando sozinhos com os elementos, e um deles é um outro cadáver que precisa ser enterrado. É ainda mais impressionante a sequência final, um apocalispe perfeitamente inserido na história, fruto de um russo que lamenta muito o estado atual da cultura política e herança histórica do seu país.

Filme visto na Debussy, Cannes 18 Maio 2010

3 comments:

João Solimeo said...

Vontade de ver agora. Belo texto (e cobertura).

nathalie said...

les lecteurs do jornal do comercio ont perdu un grand critique de cinéma... beau papier et vontade de ver

CinemaScópio said...

hehehe. merci.