Thursday, September 11, 2008

Ensaio Sobre a Cegueira



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
Livro dos Conselhos.

Esse pensamento introduz os escritos de José Saramago na sua obra Ensaio Sobre a Cegueira, e o mesmo pensamento não deixa de chamar a atenção voltando ao livro depois de ver a versão cinema adaptada por Fernando Meirelles. Sem necessariamente jogar juízo negativo de valor sobre o olhar de Meirelles, hábil realizador de formação moderna via TV e publicidade, a capacidade de reparar qualquer um dos quadros que ele compõe é frequentemente roubada pelo ritmo assoberbado das suas narrativas. Suspeita-se que seus filmes funcionem mais via acúmulo sensorial ditado do que pela pacata sugestão de uma imagem a ser vista, e reparada.

Com esse filme falado em inglês, numa produção internacional parcialmente rodada numa São Paulo travestida de lugar nenhum (a identidade da cidade literalmente apagada nas placas dos carros), Fernando Meirelles dá continuidade ao seu projeto de cinema que visa o planeta, não tanto o Brasil como sua base temática. A ponderação vem do lamento de ver suas habilidades voltadas para o genérico, e não tanto para a sua visão universal do país em si.

Meirelles teve a honra pesada de abrir o Festival de Cannes em maio último, onde o filme passou numa versão levemente diferente da que está sendo lançada nos cinemas. Foi tirado um off redundante na abertura, na voz de Danny Glover. Falado em inglês, filmado e interpretado por uma equipe muti-nacional, Meirelles trilha caminhos tomados por Hector Babenco, que em 1984 fez O Beijo da Mulher Aranha com levada também internacional, na mesma cidade.

Essa habilidade de fazer cinema para o mundo é restrita a poucos cineastas no Brasil, Babenco e Meirelles com certeza, Walter Salles seria o outro, seu Linha de Passe estreou semana passada com uma leitura totalmente diferente da capital paulista.

Curiosamente, ao almejar o genérico/universal, num filme que, como Babel, de Alejandro Gonzalez Iñaritu, parece um ensaio indireto sobre a globalização, tanto pelo que está na tela quanto pelo sistema de produção, Ensaio Sobre a Cegueira alinha-se a uma série de filmes recentes que mostram um mundo em colapso, como Eu Sou a Lenda, de Francis Lawrence, Fim dos Dias, de M Knight Shyamalan, ou Diário dos Mortos, de George Romero. A diferença é que ele não parece reparar que fez um filme de gênero. Revendo o filme, lembrei de O Nevoeiro, que abraça o cinema de gênero nos dando colapso humano semelhante na sua clausura.

Em Ensaio Sobre a Cegueira, o filme, temos um exemplo curioso das constantes correlações entre as duas linguagens, e como o cinema tenta transformar em imagem aquilo que foi originalmente criado via letras. Sensação semelhante pode afligir o crítico de cinema que escreve um texto a partir de uma série de imagens que fazem um filme, por sua vez tirado de um livro. Como viabilizar essa tradução?

O tom híbrido do filme parece estar em cada momento, e não apenas relacionado às letras e às imagens. A montagem e enquadramentos são cinema, mas há algo de muito teatral no confinamento desses personagens e suas linguagens corporais de desorientação. Por fim, como produto de mercado, Ensaio Sobre a Cegueira fica entre o acessível (popular) e o restrito (alternativo).

Talvez existam dois tipos primordiais de cineastas que adaptam obras literárias para o terreno das imagens narradas. O primeiro, dominado pelo respeito à obra raiz, tenta honrar as letras com o seu cinema. O segundo, crente de que os dois meios são incompatíveis (ou de que seu filme será melhor do que o livro...), partem para filmar sem mostrar constrangimentos com eventuais distanciamentos da obra original.

Meirelles mostra-se claramente adepto da primeira postura, vide suas traduções coesas para Cidade de Deus, de Paulo Lins, e O Jardineiro Fiel, de John Le Carré.

Assistindo a Ensaio Sobre a Cegueira, percebe-se a tradução literal do que é física e visualmente possível no campo do cinema, e o filme poderá virar estudo de caso. Dos segundos de abertura num semáforo ao desenvolvimento de boa parte dos incidentes que estabelecem o eixo dramático do livro de José Saramago, percebemos que a palavra de ordem é mesmo fidelidade.

Aqui, a população de uma cidade (talvez do mundo) vai ficando cega. Eles só enxergam uma tonalidade branca, "um mar de leite", e o mal súbito afeta a todos, exceto uma mulher (Julianne Moore), a esposa do médico (Mark Ruffalo). Num grupo que se forma involuntariamente, há ainda "a rapariga de óculos escuros" (Alice Braga), o "ladrão de carro" (Don McKellar, também roterista), o velho da venda preta (Danny Glover)...

Eles terminam numa espécie de campo de concentração, sob regime de quarentena, e o tom apocalíptico é confirmado numa série de conflitos internos que, curiosamente, têm algo de muito teatral na composição enclausurada, ou mesmo na percepção de que os atores estão participando de numa oficina especial de cegueira no palco.

Os primeiros 30 minutos revelam virtudes e já seus problemas. A fidelidade amorosa de Meirelles pela obra de Saramago chega a ser tocante, mas logo vemos que há algo mais do que a fidelidade de tom e de imagem que faz um filme existir. Como traduzir, por exemplo, a tensão transmitida pelo texto corrido e sem pontuação clara de diálogos e narração, sentida no livro? Seria com o ritmo inclemente da montagem na primeira metade?

Meirelles e seu fotógrafo e parceiro César Charlone administram as imagens com grande domínio, mas já algo no design deles que parece querer nos dominar constantemente. Investem num cansativo efeito cegueira, como se estivéssemos com as pupilas constantemente dilatadas. Passa a sensação de tradução ao pé da letra que termina como problema.

Nesse sentido, voltamos à idéia de olhar, ver e reparar. Ensaio Sobre a Cegueira parece estar correndo em alta velocidade com a suspeita de que precisa fazer o serviço em duas horas pontuais. Essa duração, repleta de incidentes, sugere uma obra que se beneficiaria de ainda mais tempo para existir dentro do pânico desorientado da raça humana sugerido pelo livro.

Meirelles, hábil construtor de um cinema ágil e moderno, não parece buscar no tempo um aliado para a sua narração, mas apenas um inimigo, e sua pressa (contratual? Conceitual?) é reveladora disso.

Numa imagem memorável na sua eficácia e síntese, por exemplo, ele nos mostra uma criança (cega) tropeçando numa mesa (invisível), a mesa repentinamente materializando-se num afiado flash de efeito especial. Essa cena talvez sintetize a diferença primordial entre o ler e o ver, o olhar e o reparar.

Filme revisto no Kinoplex Plaza Shopping, Recife, setembro 2008

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