Thursday, September 4, 2008

Entrevista Walter Salles & Daniela Thomas



Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Com a estréia de Linha de Passe, Walter Salles, 52 anos, mantém-se como o cineasta brasileiro mais influente no país. Filmes seus como Central do Brasil, Abril Despedaçado e Diários de Motocicleta são capazes de atrair uma parcela fiel do público no Brasil, e despertam o mesmo tipo de atenção no exterior, onde sua carreira é reconhecida por festivais como Veneza, Berlim e Cannes. Um dos raros cineastas brasileiros que fala com a propriedade de um cinéfilo crítico e bem informado, Salles não apenas dirige como também catalisa o cinema através da sua produtora, Videofilmes, criada com seu irmão, João Moreira Salles. Os dois devolveram ao veterano Eduardo Coutinho, mestre do doc brasileiro, a capacidade de filmar, e aposta da mesma forma em nomes jovens como o crítico carioca Eduardo Valente, que acaba de finalizar seu primeiro longa, No Meu Lugar.

Em Cannes, Salles apresentou não apenas seu próprio filme, Linha de Passe (Brasil, 2008), como também um outro título na competição que ajudou a produzir, Leonera, do argentino Pablo Trapero. "Tem um movimento de cinema no Brasil chamado Videofilmes", brincou Daniela Thomas, durante esta entrevista feita ainda em Cannes, sua amiga e colaboradora em Linha de Passe.

O filme é o mais recente esforço da parceria afetuosa entre os dois. Fizeram juntos Terra Estrangeira (1995), um dos filmes mais expressivos da retomada da produção brasileira nos anos 90, era pós-Collor (um dos sub-textos do próprio filme). Dirigiram também O Primeiro Dia (1999), longa feito originalmente para um projeto intitulado 2000 Visto Por... da rede de TV franco-alemã Arte, e ainda dois curtas: o ótimo comentário sobre identidade cultural e mercado Castanha e Cajú Contra o Encouraçado Titanic (2002), e Longe do 16ème (para o longa em episódios Paris Eu Te Amo), tocante retrato materno cujo eixo temático é a imigração na Europa.

Em Linha de Passe (ganhou o prêmio de Melhor Atriz para Sandra Corveloni), Salles e Thomas trazem um retrato da vida na periferia paulistana ao enfocar uma família formada por uma mãe forte e sozinha, à frente dos seus quatro filhos.

Kleber Mendonça Filho – Vocês tiveram acesso a todo um grupo de jovens atores na realização desse filme.

Walter Salles – Eu fiquei muito impressionado com a quantidade de jovens talentosos que ainda não tiveram uma chance. Para cada personagem, tínhamos duas ou três ótimas opções. Quando cinema repete sempre os mesmos rostos, perde-se a oportunidade de explorar a diversidade que existe hoje no Brasil. E eu quero destacar o trabalho da preparadora de elenco, Fátima Toledo, que unificou o elenco durante quatro meses e os transformou numa família. O resultado disso é que, mesmo andando na rua, aqui, eles parecem uma família. Vinícius (Oliveira), dez anos depois, me impressiona por trabalhar com dois chips, um com sotaque paulistano (para o filme) e o outro, o carioca, que é o dele. Ator é uma coisa inexplicável.

KMF – E Sandra, no papel da mãe? Como chegaram a ela?

Daniela Thomas – Ela trabalhava com o grupo Tapa e estreou uma peça há pouco como diretora, de Pirandello. Os testes foram feitos pela Fátima Toledo.

KMF – A visão que vocês passam de São Paulo impressiona, vocês acham que ela bate de maneira diferente para o realizador não-paulistano, como vocês dois cariocas?

DT – Quando nos juntamos em 2003 para trabalhar no roteiro, eu e George Moura, que é pernambucano e mora no Rio, fizemos m primeiro mapeamento de "onde essa família moraria?". Foi aí que descobrimos Cidade Líder, e deu-se uma combinação do nome com o lugar, esse eufemismo aplicado num bairro sem fim e sem horizonte chamado Cidade Líder. Foi nessa primeira ida que encontramos lugares que ficaram até o fim, como aquele conjunto habitacional onde Bianca, a namorada do Denis, o campinho de Arandicaduva. Fizemos a cidade de cabo a rabo.

WS – Conhecemos todos os estádios de futebol.

DT – Era muito importante fotografar a cidade dessa maneira. Não seria nunca um filme de favela.

WS – Também não é um filme de Avenida Paulista. Tem uma afirmação de Fernando Pessoa que diz "você só conhece uma cidade quando se perde nela", e São Paulo é uma cidade que te dá essa liberdade de se perder. Tantas vezes que falamos para as pessoas sobre onde estávamos filmando, e elas não sabiam onde fica Cidade Líder.

KMF – Aspecto muito comentado do filme é a câmera nas ruas de São Paulo, especialmente no personagem do motoboy.

WS – Nessas cenas, era importante que a câmera pudesse expressar o ponto de vista do personagem. A câmera, na verdade, está a serviço de cada personagem. Testamos várias possibilidades, uma delas Mauro Pinheiro, o fotógrafo, com a câmera na mão, tivemos outras soluções mirabolantes, inclusive um negócio que parecia um cabide. Daí que um dos maquinistas, José Gomes, um português com quem trabalhei no Central do Brasil, um gênio das soluções simples, construiu uma traquitana na traseira de uma moto, permitindo que Mauro pudesse pilotar a câmera no bagageiro, a moto sendo guiada por um motoqueiro. Isso aliada a uma câmera muito leve que é a Aaton Minima. Essa câmera foi também muito usada em cenas nas ruas que não entregasse a nossa presença, e que pudéssemos nos integrar à rua.

Kleber Mendonça Filho – Você tem trafegado livremente entre os cinemas do Brasil, América Latina como um todo e Europa. Qual sua percepção hoje dos filmes brasileiros?

Walter Salles – O cinema argentino manteve um foco que, de certa forma, nós perdemos. É uma produção que tem uma latitude relativamente grande e que vai do olhar realista de alguém como Pablo Trapero até um olhar mais impressionista, como é o caso de Lucrecia Martel. E ainda temos um Lisandro Alonso, que faz um cinema mais desdramatizado, mais seco, que captura o momento. Os roteiros de Alonso não têm mais de 20 páginas, e esse último filme dele, Liverpool, é o primeiro caso de ficionalização, primeira vez que ele trabalha com diretor de arte, etc. Esses cineastas, mesmo trabalhando de formas diferentes, eles são muito próximos, eles configuram um movimento. Não há uma quebra aí por parte de um cinema comercial predominante. Isso vem de um trabalho de base feito nas escolas e universidades, há 14 mil estudantes de cinema na Argentina, hoje em dia, e por sorte, eles tem também um grande número de psicanalistas, não dando certo, há uma carreira garantida... Nós no Brasil tínhamos uma unidade que foi perdida pouco a pouco. Esse foco veio do choque gerado pelo governo Collor no sentido do nosso próprio entendimento como nação que leva esse cinema a falar basicamente sobre um tema, que é a busca pela identidade brasileira. Quem somos nós, de onde estamos vindo, e aí temos o filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, o primeiro filme da retomada, entra o pernambucano Baile Perfumado, que também fala disso. Tivemos outros filmes que tentavam responder naquele exato momento a essas questões, como o Terra Estrangeira, que fizemos. Mesmo outros tipos de filmes, comedias que foram feitas, tinham uma ligação com aquilo que estava acontecendo no país, de uma maneira ou de outra. Essa especificidade foi perdida, ao longo do caminho esse cinema que tentava responder às perguntas sobre quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo deu lugar a um cinema menos comprometido e mais comercial. Vale dizer que nada tenho contra o cinema comercial, eu mesmo já fiz filmes comerciais, mas a distancia entre esses dois cinemas tornou-se abissal e ela permanece hoje em dia, abissal. Há um numero de projetos que não respondem mais a essas perguntas, como remakes de comedias chilenas que nenhuma ligação tem com as questões urgentes do país. Dito isso, é preciso que seja lembrada uma certa vitalidade do cinema brasileiro. O Festa da Menina Morta, do Matheus Nachtergaele (ed: exibido em Cannes, esse ano), o Feliz Natal, de Selton Mello, um filme cassaveteano que eu espero ver numa série de festivais daqui para frente, com todo o perfil de um cinema autoral que faz todas as perguntas. Na própria Videofilmes, fizemos agora o primeiro longa de Eduardo Valente e vamos agora para o do Eryck Rocha. Enfim, um cinema dos que tentam gerar memória. O cinema no qual eu acredito é aquele que testemunha o nosso tempo.

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