Friday, January 23, 2009

'Violência Gratuita' e a 'Filme-Instalação'


A tela demoníaca...


Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Num mercado de cinema onde a indústria investe em continuações e refilmagens como tentativas de garantir o certo, chega o autor austríaco Michael Haneke (A Professora de Piano, Caché) para apresentar uma leitura algo de anárquica da idéia de "remake" com o seu Funny Games, filme de 1997 que gerou choro e ranger de dentes em Cannes, no mesmo ano. Sua refilmagem Violência Gratuita (Funny Games U.S, 2007) passa como uma espécie de performance artística, uma refilmagem no sentido literal, quadro a quadro, falado em inglês e embalado para o mercado americano. A sigla U.S (EUA) que acompanha o título original soa como um irônico lembrete de como o cinema é tratado como produto "for export/para exportação".

Gus Van Sant havia tentado algo parecido com sua refilmagem/réplica de Psicose (1998), de Alfred Hitchcock, e é fácil enxergar em Van Sant o mesmo tipo de desejo pela idéia de um atentado estético e autoral que guia Haneke nesse aqui, enquanto estúdios (Universal no caso de Psicose, Warner com Funny Games) assoviavam e cogitavam lucro. Isso talvez explique a reação incrédula de espectadores, e mesmo de parte da crítica, que não vêem o sentido de imitar um original tão meticulosamente. Fica a certeza de que alguns autores não trabalham dentro de expectativas comuns.

O Funny Games original, falado em alemão, oferecia duas leituras possíveis: emocionalmente, seria um filme de suspense e terror desagradável como pouca coisa antes sentida, o próprio Haneke defensor dos espectadores que abandonam o filme no meio da sessão, xingando-o. Para ele, seria uma validação dos seus objetivos, o que apenas reforça a idéia de algo mais próximo a uma performance do que da idéia amplamente defendida de que filmes não precisam apenas existir, mas devem ser vistos, desfrutados.

Para os que sustentam o olhar até o fim, uma pequena história feroz desenrola-se na tela. Pai (Tim Roth, sua atuação com algo de familiar ao seu personagem também moribundo em Cães de Aluguel), mãe (Naomi Watts) e filho (Devon Gearhart) vêem sua casa de campo invadida calmamente por dois rapazes com roupa de tênis branca (Michael Pitt e Brady Corbet), cada um com uma luva também branca. Emissários de Haneke com liberdade de olhar para a câmera e falar com a platéia, eles irão torturar as três vítimas em jogos cada vez mais perigosos ou, nas palavras deles, "engraçados" (funny).

Exatamente como no original, temos não apenas o calvário dos personagens mas, principalmente, de quem assiste, tudo muito bem filmado, editado, dirigido e interpretado. Já a partir dos 15 minutos, instala-se na sala a sensação de que a platéia está numa prensa que aperta lentamente rumo ao insuportável, especialmente pelo rigor de nunca permitir um alivio refrescante, uma catarse, algo espetacular (e irritantemente) ilustrado na discutida cena em que um controle remoto é usado para corrigir um prazer brutal concedido ao espectador.

A outra leitura é intelectual, uma reflexão sádica de um pensador da imagem sobre o cinema comercial de horror onde a extrema violência é sempre tão sádica e explícita quanto sem sentido. Curiosamente, a outra estréia de hoje – Jogos Mortais V (Saw V) – é precisamente o tipo de coisa que Haneke ataca com seus alfinetes direcionados aos nossos olhos.

O que significa moral e fisicamente agredir alguém? Qual o peso de uma morte? Porquê no cinema tudo é tão simplificado, ao ponto de uma mutilação virar nada mais do que um efeito cênico rápido? No cinema de Haneke, o ato de violência vem sempre seguido de um silêncio atônito e sombrio, e o gosto na boca é amargo. Ele ainda esbanja cinema ao não mostrar graficamente nenhum dos atos de violência, pois sabe que o antes e o depois são ainda mais fortes.

Curiosamente, a exportação do filme para o mercado americano em caixotes com a marcação "U.S." pode ser considerada um fracasso. É fato que essa versão teve difusão maior do que o original austríaco nos cinemas americanos. Mesmo assim, o filme passou como mais um produto europeu vindo do inferno, restrito a guetos alternativos. No Brasil, Funny Games U.S está circulando no mesmo micro circuito que exibiu o original em 1998, no Recife, inclusive, no mesmo Cinema da Fundação. Isso, em grande parte, significa pregar para o que já foram convertidos, o que não deixa de ser uma pena.

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