Tuesday, February 3, 2009

Austrália


KIDMAN! JACKMAN! (e aborígene)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Por motivos misteriosos, Austrália (EUA/Austrália, 2008), novo filme de Baz Luhrman, foi maltratado nos EUA, onde atraiu reação negativa junto à crítica, nas bilheterias, sem conquistar também a atenção dos prêmios de prestígio da atual temporada, como Globos de Ouro e Oscar, com uma indicação apenas (Figurino), divulgada ontem, o que meio que dificulta sua carreira no Brasil.

É tudo uma questão de vento, sorte e mandinga, creio, pois não há nada no filme que nos leve a crer que ele deveria ser menos valorizado pela indústria do que o elefante branco O Curioso Caso de Benjamin Button, que está com 13 indicações. O filme de Luhrman lembra uma matinê antiga com tom de antiquário e brechó, e é certamente o bicho esquisito no cinemão de mercado atual.

Esse diretor australiano nos deu música, cores e movimento em Vem Dançar Comigo, Romeu + Julieta e Moulin Rouge, sua chamada "trilogia da cortina vermelha". Muda o foco para fazer um filme caro em tela larga sobre o seu país, com dinheiro hollywoodiano e do próprio governo australiano, que promete devolver à 20th Century Fox o que o estúdio venha perder caso o filme não se pague.

À frente das suas preocupações estão não apenas uma clara e evidente "taxa de paisagem" para satisfazer os burocratas, mas também a tentativa de exorcizar atrocidades sociais que fizeram parte natural da sociedade australiana até os anos 1970: o racismo grotesco que separou australianos brancos dos aborígenes, os nativos do país, tema abordado há alguns anos por um outro cineasta australiano, Philip Noyce, em Geração Roubada (Rabbit Proof Fence, 2002). E olha que não é uma ironia que um dos cartazes de Austrália mostre KIDMAN e JACKMAN bem grandes, e ali miniaturizado embaixo o pequeno aborígene...

Luhrman, no entanto, usa um painel de "grande aventura", e quem conhece mesmo que um pouco do cinema australiano, sabe que o país continental de clima tropical fotografa muito bem em Panavision, sua identidade visual semelhante ao do western clássico americano, seja em dramas intimistas como Picnic na Montanha Misteriosa (1975) e Gallipoli (1981), de Peter Weir, ou na trilogia Mad Max, de George Miller.

Essa identidade emprestada do cinema americano (vistas largas, secas, desérticas) ganha personalidade na iconografia local marcada por cangurus, camelos, coalas, bumerangues e, especialmente, pelo inglês colorido dos australianos, seja em sotaque ou palavreado.

Os heróis são Drover (Hugh Jackman) e Lady Ashley (Nicole Kidman), ele um caubói australiano de corte Crocodile Dundee (um filme bem melhor, e mais engraçado), ela uma aristocrata inglesa que vem resolver problemas de terra que parecem estar consumindo o seu marido. Proprietários de uma enorme fazenda cobiçada pelo maior empresário do país, King Carney (Bryan Brown), ela chega à localidade remota para encontrar o marido assassinado, a culpa jogada num mestre aborígene, avô de uma criança mestiça chamada Nulla, criada na fazenda.

Começando com um clima desagradável de Indiana Jones e o Tempo da Perdição, ele o macho áspero, ela cheia de frescura esganiçada, aos poucos o filme vai conquistando a atenção durante a perigosa viagem que levará cerca de duas mil cabeças de gado digital em direção à cidade de Darwin, na costa norte da Austrália, viagem de mais de mil quilômetros. Para atrapalhar a aventura e proteger os interesses do tirano Carney, capangas tentam sabotar a marcha, a parte mais aventuresca do filme.

A informação de que Drover foi, no passado, casado com uma aborígene impressiona menos do que se de fato víssemos esse herói branco australiano em relação amorosa com nativa, mas, ao invés disso, ele faz par mesmo com Nicole Kidman, cuja Lady Ashley rapidamente torna-se mulher rochedo, uma micro-Scarlett O'hara ativista de Ong do ano 2000 para as causas humanitárias da década de 40. E diverte.

O filme parece ter um problema claro e evidente. A marcha com o gado prende a atenção, utilizando todo tipo de imagem clássica do cinema americano e australiano do passado (dos já citados a Walkabout, de Nicolas Roeg, especialmente), e o feito é empolgante o suficiente para que o espectador pense que o filme acabou uma vez alcançada a meta.

No entanto, eis que tudo recomeça, dando ao todo um ar de mini-série em três capítulos, pois a última parte, sobre o ataque japonês a Darwin no pós-Pearl Harbor, em 1941, dá um reset no filme, infelizmente o segmento menos interessante, enorme barriga que leva tudo aos 160 minutos de projeção. Há falsos finais infelizes que não enganam ninguém, mas que tomam tempo e metragem.

Uma outra coisa, e que me chama a atenção. Se um filme desse porte, com orçamento de 130 milhões $ ainda precisa enfiar o pé na jaca nos efeitos digitais, criando uma sensação de interrupção no estilo e fluência das suas imagens caras, qual o filme que poderá ser filmado "à moda antga", e que caberia bem à idéia de Luhrman de fazer "uma aventura à moda antiga?" Tendo visto Benjamin Button e Austrália tão manipulados, bate sensação de desdém para com a coisa do digital. O problema não parece exatamente o uso do digital, mas a salada maluca de realismo e artifício.

Mesmo assim, a minha boa vontade me faz ver aqui um filme certamente curioso. O sucesso constante dos filmes anteriores de Luhrman lhe permitiu fazer esse filme autoral sobre seu país, obra de saudável bairrismo que pode não ter deixado o mercado americano muito interessado. A capacidade que esse diretor tem de mixar o passado do cinema numa obra nova com tom de milk-shake nunca deixa de ser interessante (especial piscada de olho para O Mágico de Oz, e Oz é apelido australiano para o país, vale saber), num filme largo que traz a paisagem real entrecortada com imagens digitais que revelam o momento exato de realização. Pode envelhecer mal.

Filme visto no UCI Boa Viagem, Recife, janeiro 2009.

1 comment:

Alice Senna said...

Muito interessante a sua postagem. Não sou crítica de cinema e escrevo aqui apenas como uma cidadã comum que gosta de assistir filmes. A paisagem do filme é linda. A relação de Nicole com o menino mestiço rouba todas as outras cenas e ganha uma importância maior que o romance entre ela e o "vaqueiro". O filme mostra uma austrália dominada pela cultura inglesa, explorando o que essa terra pode oferecer de melhor e instituindo a cultura excludente, aliás essa á a marca da chegada da civilização. O tom do filme está na relação desse menino "mágico" com a inglesa, que aos poucos vai entendendo como a vida funciona naquelas terras.