Sunday, February 1, 2009

Manoel Faz 100 Anos


"Em julho de 2001, uma menina acompanhada de sua mãe, distinta professora de História, atravessa milênios de civilização ao encontro do pai"

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Esse é o singelo letreiro que Manoel de Oliveira usou para abrir um dos seus mais belos exercícios filmados, Um Filme Falado (2003), que ele rodou aos 95 anos de idade. Aqui, seu cinema da Mandragoa/Gemini Films elegantemente ciente não apenas de si, mas fascinado com o passado e a Europa, encontra um reflexo nítido. Revendo o filme às vésperas do aniversário de 100 anos desse realizador único, torna-se impossível não aplicar o doce letreiro à própria trajetória do homem em si, Manoel de Oliveira.

Esse autor português de cinema atravessou, de fato, um bloco particularmente espesso de história, o século 20, seu curta Encontro Único (Rencontre Unique, 2006) leve e ligeiro assinala isso, numa reimaginação do que teria ocorrido se o Papa João XXIII tivesse encontrado Nikita Khrouchtchev num jantar, em algum ponto do século 20.

Sua trajetória sugere algo de místico na sua longevidade, e conectar um ser humano nascido em dezembro de 1908 à sua desenvoltura física e intelectual em dezembro de 2008 é algo que parece mexer com as regras da própria natureza, não obstante o fato de termos no Brasil um outro caso raro do tipo no colega de geração de Oliveira que é Oscar Niemeyer, também ativo aos 101.

Muito se fala e se escreve na grande mídia sobre Oliveira como objeto geriátrico, a descrição mais medíocre possível a de que é "o cineasta mais velho em atividade". O fato que é realmente belo, algumas vezes esquecido como observação quando ele é o assunto em questão, existe mesmo na compreensão de que Manoel de Oliveira é velho. No entanto, como podemos computar esse fato no sentido de nos dar uma obra incomum e que não pode ser dissociada de toda uma trajetória de tempo que ele mesmo sugere tentar compreender na sua produção?

Observar sua filmografia e vê-lo concentrando o grosso da sua produção como octogenário e, especialmente, na sua nona década (entre 1930 e a década de 70, fez 14 filmes, mas nos últimos 25 anos já conta 34, com mais um previsto para 2009, Singularidades de uma Rapariga) explica um olhar pessoal ímpar em tom, ritmo e recorte sobre temas como o tempo. Não tanto o peso do passado, mas a sua beleza. Isso explicaria o fato de vir filmando, já há dez anos, um filme por ano, às vezes dois, entre longas e curtas. Ele, que foi corredor automobilístico, parece estar correndo também agora.

Esse é um retrato possível de um artista que, numa imagem emblemática, foi visto por mim no último mês de maio, no Festival de Cannes, não apenas recebendo uma homenagem de Gilles Jacob – presidente de honra de Cannes -, mas, não muito longe dali, num outro dia, andando sozinho e tranquilamente aos 99 anos de idade na calçada da Croisette, com bengala e chapéu panamá. Ele sempre faz isso, em Cannes.

A homenagem de Cannes 2008 (amplamente divulgada na grande mídia sublinhando o já citado fator geriátrico do homem) aconteceu principal sala do festival, diante de toda a comunidade cinematográfica que o aplaudiu de pé. Foi ali celebrada a vida centenária de Oliveira, associada na cerimônia aos 100 anos do próprio cinema, idéia que lhe cai bem factual e poeticamente. Ao vê-lo passando por mim na Croisette, numa manhã apressada de Cannes, algo me chamou a atenção na imagem saudável do ancião esguio.

A primeira informação racional que vem à cabeça é o fato de ser este um cineasta cujo primeiro filme - Douro, Faina Fluvial - ele realizou em 1931, época em que o cinema ainda se reequipava para os filmes sonoros, e quando o seu anfitrião em Cannes, Gilles Jacob, presidente de honra do festival, tinha um ano de idade incompleto. Que distância de vida e de história separam Douro, Faina Fluvial, um filme mudo, de Um Filme Falado, realizado por Oliveira já na década de 2000!

Se a distância é incomensurável, percebe-se nos dois filmes uma ligação profunda à idéia de geografia humana e histórica que parece ter como base sua terra natal, a magnífica cidade do Porto. Da presença constante do rio no primeiro filme, à sua fauna ribeirinha, temos a despedida das terras portuguesas como os antigos navegantes, poeticamente substituídos pela mãe e sua miúda loirinha de Um Filme Falado.

A percepção dessa cidade me leva à pouco discutida, mas muito desfrutada força que alguns insistem em chamar de "mística", inerente ao processo artístico em geral, e certamente presente também no cinema, e no cinema de Oliveira. No nosso papel de observadores, essa mística geralmente ocorre quando encontramos na imagem apresentada uma sintonia para o que pensamos, ou, melhor ainda, quando a projeção nos mostra caminhos novos.

Isso é normalmente amplificado pelas relações pessoais que estabelecemos com certos objetos, cabendo ao artista o papel de mediador. O que dizer, por exemplo, de uma visita apaixonada ao Porto e, por uma feliz coincidência, assistir ali mesmo, no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, a O Porto da Minha Infância (2001), homenagem pessoal de Manoel de Oliveira ao lugar que o definiu?

O filme, com pouco mais de uma hora, é uma caixa de lembranças ordenadas organicamente num pensamento em fluxo. Oliveira foi filho de família burguesa, seu pai o primeiro fabricante português de lâmpadas elétricas. Nesse filme, outra imagem emblemática a ser lembrada nesse mês de comemoração: um homem escala sozinho, nos anos 20, e sem a ajuda de cordas ou aparatos de segurança, os 76 metros da Torre dos Clérigos, claramente uma lembrança aqui restaurada pelo cinema da juventude de Oliveira.

Seu interesse pelo Porto mostra-se presente tanto na parte inicial da carreira, com relatos documentais (Douro, Faina Fluvial, ) e ficcionais (Aniki Bobó, 1942, sobre crianças da área ribeirinha), como nesse filme recente que ilustra o fator réquiem tão curioso no cinema recente do autor português.

A obra réquiem não é exatamente uma área restrita aos que chegaram à idade avançada, mas ela parece surgir naturalmente para muitos desses artistas maduros. No cinema, há exemplos de realizadores que sustentam hoje em dia um ritmo acelerado já depois dos 70 anos de idade como se pouca coisa os afetasse. Woody Allen, Alain Resnais, Clint Eastwood, Sidney Lumet, ou os brasileiros Eduardo Coutinho e Domingos de Oliveira, que filmam como jovens.

Debruçando-nos sobre suas respectivas obras pessoais, é possível enxergar reflexões sobre eles mesmos com o tom de uma reavaliação e ciência de que o fim se aproxima. De qualquer forma, obras como Os Imperdoáveis (Eastwood), O Fim e o Princípio (Coutinho) e o recente Juventude (Oliveira) parecem atropeladas pela própria energia de vida desses realizadores, que dão continuidade ao que fazem com trabalhos seguintes não tão claramente associáveis à idéia da passagem.

No cinema de Oliveira, esse tom tem sido presente de forma constante, leve e plena de beleza, e o início dessa fase pode ter sido iniciada em 1982, quando fez o ainda inédito Visita – Ou Memórias e Confissões, o filme que, de fato, ele deseja ter como testamento. Sua exibição está interditada até depois da sua morte, e sabemos que nessa obra há lembranças pessoais que incluem sua prisão via Policia Internacional de Defesa do Estado, no ano de 1963.

O desejo de ver finalmente Visita – Ou Memórias e Confissões gera, portanto, um impasse para o observador. Só veremos o filme depois da morte de Oliveira, o que nos leva a não querer ver essa obra tão cedo. De qualquer forma, um plano precioso da sua obra conhecida parece ilustrar com propriedade esse artista.

Em Viagem ao Princípio do Mundo, um homem velho (Marcello Mastroiani, no seu último papel), visita as cercanias de onde cresceu no norte de Portugal. À certa altura, ele olha para a janela traseira do carro, que trafega por uma quinta portuguesa, e durante mais de dois minutos, vemos a estrada ficando para trás. O tempo.

No comments: