Sunday, May 23, 2010

Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (competição)


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Eu mal havia saído da última imagem de Hitchcock (o carro sendo puxado do pântano), e lá estava já na sala a 150 metros de distância vendo a abertura do novo filme de Apichatpong Weerasethakul, onde um búfalo é visto ruminando sobre terreno pantanoso. O titulo maravilhoso é Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (Tio Boome que Consegue Lembrar das Suas Vidas Passadas).

Três filmes esse ano em Cannes me chamaram a atenção por irem além da narrativa pura e simples, atingindo um estado de suspensão no espectador normalmente descrito como ‘transe’. Primeiro veio O Estranho Caso de Angélica, depois o ucraniano My Joy (Minha Alegria), de Sergei Losnitza, e por último esse do Joe. O Grande Prêmio do júri ou a Palma de Ouro para qualquer um dos dois últimos (em competição) estaria de bom tamanho, e de forma intercambiável.

Esses três superam as outras demonstrações de cinema onde autores estabelecidos como Mike Leigh e Abbas Kiarostami "apenas" nos dão filmes fortes, prazerosos de se ver, e que poderiam levar qualquer um dos prêmios disponíveis.

Nos casos de Oliveira, Losnitza e Joe, são filmes que parecem se bastar pelo que são, frutos mais de intuições autorais do que técnicas projetadas. Em ambos, é impossível dissocia-los de suas respectivas culturas, ficando a suspeita de que não seriam realizados em nenhuma outra parte do mundo que não Portugal, a Rússia e a Ásia budista, respectivamente.

Para mim, os três me inspiram sensação rara no sentido de eu não ter grandes interesses em escrever sobre eles, ou mesmo discuti-los. Parecem se bastar na sala de projeção, e senti isso ao final de Uncle Boonmee, ainda com a tentadora opção de tentar correr atrás de uma entrevista com Joe. No entanto, pensei que não teria muito o que falar, e duvido se ele teria muita coisa a dizer. Alguns filmes se bastam ali mesmo.

Ironicamente, algumas linhas sobre o filme.

Apichatpong Weerasethakul volta para uma idéia palpável de natureza e floresta, sublinhada por fantástico trabalho de som. Há a filosofia informada desde o início que estamos em todas as coisas vivas da floresta, e o tom impresso por esse autor consegue superar qualquer sensação vulgar associada à idéia de ecologia com sua construção de imagens totalmente alienígena. Se em Avatar, cada imagem é uma questão laboriosamente colocada, num filme como Uncle Boomee o espaço verde simplesmente é, assim como as forças míticas em ação.

Na verdade, volta a sensação de que os responsávels pela imagem registrada são visitantes de outro planeta. As inserções de elementos fantásticos precisam ser vistas para serem totalmente sentidas, e a relação do filme com a morte é de uma beleza também fascinante.

A pequena trama serve de terreno para um panorama que deixa o espectador ateu imerso numa série de estranhezas que cheiram a uma verdade consumada desconhecida, ao mesmo tempo em que há espaço para dúvidas e algum humor que reflete em você mesmo. O filme ainda é engraçado, mas de uma forma totalmente cúmplice, um feito e tanto dada a quantidade de situações inusitadas.

Morrendo em casa, um homem mais velho está cercado dos seus parentes mais queridos. Numa ceia de jantar, eles recebem a visita do espectro de sua esposa falecida e também a visita do filho dele, há anos desaparecido. O filho aparece em forma que não parece humana.

Com aparato de hemodiálise em mãos, a família segue numa peregrinação pela floresta, onde vultos indescritíveis os protegem e garantem a chegada numa caverna que teria sido o local de nascimento do Tio Boome numa outra encarnação. Não deve existir nos registros ritual de passagem tão bonito e enigmático como esse no cinema, poderosíssimo na construção de suas imagens místicas que, em nenhum momento, são uma questão, uma dúvida. Apenas são, e deixam o espectador boquiaberto.

Como cinema, é uma experiência que sugere sair de si mesmo, deixando no ar o sentimento de que o mundo, de fato, é um espaço em constante busca de equilíbrio espiritual, quase nunca tendo a calma e a paz para encontrá-lo. O filme sai de si, e o espectador pega uma rara carona nesse transe reproduzido.

Filme visto na Sala Bazin, Cannes, Maio 2010

7 comments:

Hugo Leonardo said...

KMF, postei no meu blog um quadro de notas dos filmes de Cannes dos críticos/jornalistas brasileiros que cobriram o evento. Qualquer retificação de nota, pode me mandar, caso tenha interesse.

http://www.fidelidadealta.com

CinemaScópio said...

Ok Hugo, valeu. Verei.

Vinícius Reis said...

Kleber, alguma chance de Uncle Boonmee ser lançado comercialmente no Brasil? Conheço toda a obra do Joe via emule. Nas raras vezes que passou em festivais brasileiros, nunca coincidiu de poder ver.
Abraços.
Vinícius.

CinemaScópio said...

N sei, creio que será, maior cara de q ganhará algo importante.

Fábio Henrique Carmo said...

Como ganhou a Palma de Ouro, resta a esperança de ser distribuído no Brasil.

Anonymous said...

Vi o filme ontem na Mostra SP. Legendas eletrônicas, então por enquanto não está garantida a exibição no circuito- lembremos que o filme anterior, "Mal dos Tropicos", tb não entrou em cartaz. A floresta sempre onipresente e uma fuga de lugares comuns - com espíritos e homens-macacos e tudo mais. Uma experiência para cinéfilos. eric73@uol.com.br.

Lopes said...

Cara, acabei de assistir o filme e gostei muito da sua resenha. Parabéns. A visão que eles passaram da morte é tranquilizante, bem natural. Só um detalhe: o tratamento a que ele se submete não é Hemodiálise, mas sim CAPD ou Diálise Peritoneal. ;-)