Thursday, February 19, 2009

Slumdog Millionaire


Uma criança coberta de merda.

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Quem Quer Ser Um Milionário (Slumdog Millionaire, Inglaterra, 2008), filme de Danny Boyle, oferece mais uma oportunidade interessante de sentar durante duas horas e observar essa questão antiga e persistente da representação no cinema, especialmente quando tal representação vem dos ricos (os que têm a câmera) para com os pobres (os que aparecem nas imagens, sorrindo), algo muito discutido no cinema brasileiro. Ilustra as diferenças entre riqueza e pobreza como fotos de um turista gringo recém chegado de viagem e que viu o terceiro mundo como um fotogênico lixão.

No Brasil, onde realizadores de classes abastadas filmam personagens de classes pobres (Garapa, de José Padilha, é o caso mais recente, exibido em Berlim semana passada), os resultados são sempre discutíveis. Nesse filme britânico com ganas de ganhar Hollywood e o mundo, temos personagens locais nas favelas de Mumbai, na Índia, filmados por ingleses. A questão persiste dentro de um panorama ainda mais abrangente, levando em conta que o filme em questão parece ter o desejo de remixar o cinema indiano de Bollywood, maior produtor de filmes do mundo.

Desde Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984), de Steven Spielberg, que não víamos em Technicolor tão bonito crianças indianas raquíticas transformadas em entretenimento! É incrível. Esse filme inglês parece voltar à Índia, sua antiga colônia, para atualizar o acervo de imagens do passado, sempre compostas verticalmente na relação rico/pobre, colonizador/colonizado.

Em 2009, deixa-se de lado o tom ‘British country club’ de antigamente (Passagem Para a Índia, de David Lean, para citar um exemplo) para transformar as favelas de Mumbai no cenário perfeito para uma publicidade do Red Bull, ritmada por música pop também indicada ao Oscar. Eu achei que seqüências inteiras foram pensadas para serem vistas num Nokia.

A estética aqui é a da misteriosa ‘câmera bicho’. Dependendo da cena, pode ser o ponto de vista de uma galinha, um cachorro ou de um suíno, algo visto em primeira mão em Cidade de Deus. Essa identidade visual é fortíssima, e imagino a reação de Meirelles e César Charlone, seu fotógrafo, ao ver Boyle remixar esse look com força, já reprocessado em O Jardineiro Fiel, do mesmo Meirelles (e Charlone), Homem em Chamas, de Tony Scott, e Tropa de Elite, de Padilha.

Em Quem Quer Ser Um Milionário, fica claro que o look e a rispidez calculada da câmera é a escolha visual desta década para um certo tipo de cinema que entra nos labirintos do entulho, alvenaria vernacular, fumaça e papelão com evidente alegria, nosso proverbial pinto no lixo.

A contribuição de Boyle e seu fotógrafo proficiente Anthony Dod Mantle (acurado pesquisador da imagem digital ao lado de Lars Von Trier) consiste ainda de deixar os ângulos desnivelados de maneira esquizofrênica, garantindo a atenção constante do espectador, crente de que mais alguma coisa relevante está prestes a acontecer. São deixas visuais de um cinema que grita pela sua atenção, e que parece atingir plenamente os objetivos.

Essas imagens estão a serviço de uma historinha hollywoodiana com final super feliz. Jamal (Dev Patel) é um jovem indiano, formado na escola da vida. Está prestes a vencer um prêmio milionário na versão indiana do Quem Quer Ser um Milionário? (Show do Milhão, no Brasil), onde vem acertando perguntas escorregadias, ao vivo, para toda a nação. O apresentador do programa é um escroque.

Para aumentar artificialmente a tensão, o roteiro de Simon Beaufoy (adaptado do livro Q&A, de Vikas Swarup) insere tortura com jacarés nos dedos dos pés de Jamal, ligados a uma bateria de carro, já que o apresentador vilão acredita que ele estaria roubando. “Um ‘vira lata de favela’ não seria capaz de ir tão longe no programa”, dando ao filme ambientado no terceiro mundo sua cena obrigatória de tortura.

A estrutura narrativa, semelhante à de Os Suspeitos (The Usual Suspects, 1996), nos mostra cada pergunta feita a Jamal no programa como uma deixa para que voltemos ao seu passado, as respostas inseridas na sua dura experiência de vida. E Jamal teve uma vida difícil, que o filme mostra em detalhes espetaculares da miséria. À essa altura, o espectador poderá desconfiar que alguém teve a idéia de fazer uma versão ‘super bacana’ de Pixote, de Hector Babenco.

Há uma cena absurda com o tipo de coisa que crianças faveladas indianas fazem para conseguir um autógrafo, claramente a fossa do filme em vários níveis. Jamal viu também a mãe ser morta a pauladas num conflito entre muçulmanos e hindus que queimou gente viva. Essa seqüência, rápida como um raio, obviamente, passa sem qualquer contextualização histórica ou religiosa sobre conflitos étnicos, imagino que pelo total desinteresse de Boyle e seus colaboradores no assunto.

Mais tarde, ele e o irmão, órfãos, saem do lixão para integrar um exército de pedintes mirins, onde o patrão gente ruim manda cegar algumas crianças com chumbo quente para que ganhem mais dinheiro nas ruas. Latika, sua amiguinha de infância, vira prostituta nos bordéis de Mumbai e, mais tarde, ele vê seu irmão Salim virar Zé Pequeno junto ao crime. Latika, claro, será transformada numa belíssima garota adulta, o paraíso amoroso de Jamal, o seu objetivo na vida, seu final feliz.

Não é de se estranhar que a resposta global a Quem Quer Ser um Milionário (U$ 150 milhões nas bilheterias internacionais, até agora) venha sendo a de um filme “pra cima”, mesmo com tanto horror na trama. O cinema é a arte da dissimulação, capaz de transformar um copo quebrando num interessante longa de 90 minutos, ou levar milhões a acreditar que a dureza da vida num país pobre e distante pode ser uma diversão sensacional onde até mesmo crianças do terceiro mundo merecem - não tanto o reconhecimento pelos seus esforços no viver-, mas a sorte, pura e simplesmente.

Boyle (Cova Rasa, Trainspotting, Extermínio) co-assina a direção com a pouco divulgada profissional de elenco indiana Loveleen Tandam, num acordo não muito distante da parceria Meirelles/Kátia Lund, em CdD. A fome de Boyle (claramente um animal do cinema sem capacidade de reflexão) por imagens o leva a, seja por ignorância, ou puro cinismo, terminar tudo com um final de efeito audiovisual alegre, mas culturalmente azedo como pouca coisa que vi recentemente. Tenta dar ao todo a aura artificial de um musical de Bollywood, cujo estilo nada tem a ver com o realismo freqüente almejado por esse filme, sob o simpático pop Jay Ho, de A.R. Rahman e coreografia em plano aberto com dezenas de figurantes.

É a dança alegre da miséria, a exploração mala de uma cultura desconhecida, remixada para o gosto ocidental e que ainda corre o risco de passar a sensação edificante de que estamos vendo um outro mundo distante com olhos mais abertos e tolerantes, provável combustível para a enorme aceitação do filme, imagino que junto ao Oscar.

PS: Ainda sobre a questão da imagem, em dezembro, Anthony Dod Mantle ganhou o prestigioso Camerimage, em Lodz, na Polônia, por seu trabalho no filme. Ironicamente, o segundo lugar foi para César Charlone, por Blindness, de Fernando Meirelles.

PS2: Na citada seqüência final, o som pop de A.R Rahman me lembrou uma utilização totalmente diferente em efeito desse tipo de som indiano na abertura de Inside Man, de Spike Lee, que usa "Chaiyya Chaiyya (composta pelo mesmo A.R. Rahman) para abrir o seu filme, numa Nova York repleta de diferenças culturais incorporadas por Lee no seu panorama.

7 comments:

Anonymous said...

Nem um pontinho positivo? Uma coisinha interessante que apareceu no meio do filme?

Talvez sob uma outra óptica...

CinemaScópio said...

er... não.

Unknown said...

Talvez a volta da galinha que andava sumida desde Cidade de Deus.Rourke e a galinha, as voltas por cima do ano!

Museu do Cinema said...

Excelente! Sem mais! Dissecou Boyle e seu filminho!

Gildo Araújo said...

Você não acha que o Zanin Oricchio acertou, quando afirmou que este filme é o primeiro filme paulofreyriano da história do cinema.

Gildo Araújo said...

Você não acha que o Pedro Almodóvar tem razão, quando afirmou que o final feliz também pode ser transgressivo.

Gildo Araújo said...

Você não acha limitador, essa associação: Final feliz = Cinema holiudiano, afinal quem inventou o final feliz, foi holiudi, acho que não. Partindo deste princípio, Bonitinha, mais Ordinária, de Nelson rodrigues seria uma peça holiudiana?