Sunday, April 12, 2009
Tony Manero
por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
Um aspecto curioso da grande indústria cultural é a sua capacidade de inspirar a periferia, explicitando o abismo que há entre produtor e consumidor. No caso do cinema, a nossa percepção do filme estrangeiro é um aspecto vivo dessa relação. Hollywood e sua força residem não apenas nessa distância geográfica e cultural, mas também na aura de faz de conta que maximiza a distância entre vida real e o que se passa na tela, entre primeiro e terceiro mundos. O filme chileno Tony Manero analisa isso, jogando ainda com toda uma carga histórica local interessantíssima.
O filme do diretor Pablo Larraín (seu segundo longa metragem) se passa em Santiago do Chile em 1978, auge do governo linha dura de Augusto Pinochet, precisamente durante o lançamento nos cinemas de Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever, EUA, 1977), dirigido por John Badham. O filme chegou como o primeiro de dois ganchos de direita dados na época pelo jovem John Travolta nas bilheterias do mundo, o segundo, lançado logo após (e ainda mais bem sucedido) foi Grease – Nos Tempos da Brilhantina (Grease, 1978), de Randal Kleiser.
Quem está hoje na casa dos 40 poderá lembrar de 1978 e de como Tony Manero, o personagem de Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, se transformou num fenômeno entre homens desejosos de reproduzir minimamente bem em discotecas, salões de festa ou mesmo salas de estar a coreografia ao som dos Bee Gees que se tornou icônica, auxiliada pelo figurino (terno e calça branca, camisa preta por dentro, sapatos altos), pelas luzes no assoalho do dancing e pela presença eletrizante de Travolta na produção da Paramount Pictures.
Larraín pega exatamente esse fenômeno gerado pelo filme de 1977 e nos dá uma releitura (algo de assustadora) sobre um dos temas mais persistentes da sociedade contemporânea, e que parece estar sendo filmado a cada mês pelo cinema atual: o fascínio com a celebridade, o glamour, a capacidade de se expor da nova cultura. Mesmo ambientado em 1978, Tony Manero é claramente um filme sobre hoje, e revela-se uma das visões mais originais sobre esse tipo de coisa.
O personagem principal chama-se Raúl Peralta (Alfredo Castro, excelente ator), homem de 52 anos que gosta de dizer que sua profissão é o show business, muito embora tenhamos dificuldade em crer nisso. Magro, algo de charmoso, Raúl é o centro de um pequeno grupo de amigos que se apresentam num bar de periferia com a intenção de reproduzir as coreografias do filme. Sua grande preocupação é apresentar-se num programa de TV e conquistar o título de “melhor Tony Manero do Chile”.
Raúl parece ter efeito especial sobre as mulheres, a dona do bar, sua namorada e filha adulta, aspecto que o filme reproduz sexualmente de maneira direta e crua. Ele, no entanto, revela-se um desastre na sua falta de habilidade social, uma máquina de amoralidade que não pensa duas vezes antes de matar alguém.
Alguns que viram o filme parecem sempre lembrar imediatamente do Travis Bickle de Robert de Niro, em Taxi Driver, o filme de Martin Scorsese feito em 1976 sobre um outro estranho bicho urbano. Raúl, no entanto, talvez se encaixe melhor numa descrição mais comedida do astro sanguinário do falso documentário e proto-reality show belga Aconteceu Perto de Sua Casa (C’est Arrivé Pres de Chez Vous, 1992).
Ele pode cobiçar uma TV colorida, ou pode revoltar-se com o fato de Os Embalos de Sábado à Noite ter sido tirado de cartaz no velho cinema de rua que o exibia, ou ainda ter o desejo de roubar a cópia do filme em 35mm, levando-a para casa, sonho cinéfilo enlouquecido nunca antes filmado. São pequenas ações que inspiram uma violência irresponsável, e que o filme deixa correr solta, sem conseqüências práticas ou legais.
Isso talvez se explique pela visão particular de Larraín sobre o momento histórico do Chile. Filmado com uma inteligência que neutraliza perfeitamente a clara falta de recursos de produção, Tony Manero nos dá um clima sugerido de terror via repressão política (caminhões com soldados passando na rua, assassinatos em lugares ermos), atmosfera que banca totalmente os descaminhos de Raúl, seu descaso com o outro.
Essa visão artística de um momento político de um país alinha-se com as visões pessoais de outros cineastas contemporâneos que partiram para filmar as histórias recentes das suas culturas, como Almodóvar o fez com a Espanha dos anos Franco em Carne Trêmula (1998) e A Má Educação (2004), ou Cristian Mungiu com a Romênia de Nicolae Ceausescu em Quatro Meses Três Semanas Dois Dias (2007). São visões essencialmente artísticas, livres de narrativas factuais históricas que nada acrescentariam aos filmes.
Por fim, há um aspecto digno de nota sobre a relação de Raúl com Tony Manero. Ele consegue tirar o seu faz de conta de Os Embalos de Sábado à Noite, filme que, dentro do vocabulário hollywoodiano comum, revela-se uma obra dura e realista, filho típico do excelente cinema americano dos anos 70. Ele bem que poderia ter se apegado ao Travolta fantasioso de Grease, mas parece existir uma identificação entre Raúl, artesão de globo de discoteca via bola de futebol dente de leite e cacos de vidro e o Tony proletário, vendedor de tinta, morador do Brooklyn, em Nova York. Nos parece uma bela conexão entre dois personagens da periferia que todos nós somos, de certa forma.
Filme revisto no Cinema da Fundação, Recife, Abril 2009
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
No comments:
Post a Comment