Thursday, March 12, 2009

Entre os Muros da Escola


por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Interessante como filmes se renovam, mesmo atendendo a uma série de convenções já tão conhecidas. Entre os Muros da Escola (Entre Les Murs, 2008), filme de Laurent Cantet, seria mais um signatário do micro-gênero “alunos e professores”, responsável por entretenimentos tidos como nobres do passado, Ao Mestre Com Carinho (1966), de James Clavell, e Sociedade dos Poetas Mortos (1989), de Peter Weir, para citar dois. A questão é que o filme de Cantet pertence à mais fina escola francesa de um cinema entregue à observação da sociedade, resultando numa demonstração delicada de crueza que chega intacta ao espectador. Também chegou intacta ao júri presidido pelo ator Sean Penn, no Festival de Cannes, ano passado, onde o filme ganhou a Palma de Ouro.

Para entender um pouco Entre os Muros da Escola, é bom saber algo sobre o seu diretor. O cinema dele acontece no nível da classe média trabalhadora, onde pequenos conflitos ganham um tratamento dedicado. Em Recursos Humanos (Ressources humaines, 1999), que não passou nos cinemas brasileiros, Cantet promove o choque entre um filho, recém formado em administração, que assume cargo no departamento titular de uma fábrica onde seu pai trabalha há 30 anos.

Seu filme seguinte levou muitos a crer que Cantet seria “o cineasta do trabalho”, uma vez que em A Agenda (L’Emploi du Temps, 2001), temos um pai de família paralisado psicológica e socialmente pela perda do emprego, saindo todo dia de manhã com terno, gravata e pasta sem ter a coragem de contar para ninguém que está desempregado. No seu filme seguinte, Em Direção ao Sul (Vers Lê Sud, 2005), Cantet abordou o abismo entre ricos e pobres ao mostrar um grupo de mulheres francesas, inglesas e americanas, indo ao Haiti para um turismo sexual sem grandes culpas, nos anos 70.

Chegando a Entre os Muros da Escola, Cantet dedica-se a nos mostrar os confrontos entre um professor de ginásio e sua turma de francês que ele também orienta, numa instituição pública de ensino nos subúrbios de Paris. O filme não poderia ser mais direto ao ponto, sem música, sem sair da escola e focando exclusivamente nas trocas verbais e nos olhares entre as partes. Muito se fala do quão falado o filme é, mas prestem atenção nos olhares, nas aprovações e desaprovações, na incapacidade que alguns alunos têm de levantar os olhos, e na facilidade de outros de destruir com os olhos.

Se não tivesse claramente se assumido um filme de ficção com atores (e não-atores), poderia passar como um documentário de cinema direto, do estilo “mosca na parede” que tudo ouve e tudo vê. Em duas horas, registra-se um processo que dura, no filme, o ano letivo, começando com a volta às aulas, terminando com o início das férias.

Ainda sobre uma idéia de ‘realismo’, importante destacar que o ator e roteirista François Bégaudeau escreveu o livro homônimo sobre o qual Cantet fez o filme. Bégaudeau interpreta ele mesmo (ou uma versão bem próxima dele mesmo), também François, um professor diante de uma turma que traduz a mistura racial e étnica que forma a paisagem humana na França, hoje.

Temos meninos e meninas facilmente descritos como franceses, e outros, como Suleymane (Franck Keïta), que luta para se considerar francês via suas origens nas Antilhas. Há os que não querem ser franceses, como Khoumba (Rachel Régulier) e Esmeralda (Esmeralda Ouertani), irritados demais para assumirem identidades que julgam impostas. O garoto chinês Wey (Wei Huang) observa tudo com misto de generosidade e perplexidade, fator auxiliado pelo seu domínio limitado do próprio francês, e talvez um talento nato para a matemática.

Vendo essa turma tão cultural e racialmente diferente, podemos começar a pensar na realidade da educação no Brasil, onde noções básicas de cidadania inexistem em escolas particulares caras que segregam natural e cruelmente cor e poder aquisitivo, formando novas gerações de preconceito e isolamento culturais, uma vez que a noção de escola pública permanece frágil o suficiente para atender unicamente as demandas das classes menos favorecidas. Triste.

Filmado como uma série de confrontos no ringue que é a sala de aula, Cantet nos dá intervalos narrativos ao acrescentar ainda mais tensão com os bastidores da escola. Comissões disciplinares onde punições inúteis precisam ser decididas e onde o preço exorbitante da máquina de cafezinho também é discutida dão abrangência ao filme, assim como o contato com alguns pais. Cantet, no entanto, não nos priva de um humanismo do mais puro bom gosto, como num brinde delicadíssimo de champanhe proposto na sala de professores a duas crianças.

É tudo muito preciso, e esse humanismo ganha a mais perfeita tradução na sensação que temos de não estarmos diante de mais um filme sobre professores e alunos onde o mestre é aquele monumento de bronze e sabedoria inspiradora e irretocável. No caso de François, eis um professor que está ensinando, errando e aprendendo diariamente, exatamente como seus alunos. Nos lembra que educação é uma troca, e não uma ordem. Linda imagem final.

Filme revisto no Cinema da Fundação, Recife, março 2009.

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