Saturday, March 21, 2009
Gran Torino
por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com
Por uma dessas coincidências, dois filmes que estréiam hoje trazem essencialmente o mesmo tema, mas em registros bem diferentes. O tema é os EUA pós-11 de setembro aos poucos abrindo-se para o elemento estrangeiro, algo que talvez soe como uma redução adequada para o já pequeno O Visitante (The Visitor), mas uma imposição limitada que nem começa a fazer justiça à demonstração de delicadeza autoral que é Gran Torino (2008), de Clint Eastwood. Nos dois filmes, homens americanos maduros se abrem para o mundo, e para si mesmos, através do contato aproximado com cidadãos de passaporte, língua e cultura estrangeiras.
O mais novo exemplar da filmoteca Eastwood chega há menos de dois meses do lançamento nos cinemas do seu último filme, o melodrama da Universal estilo anos 30, A Troca, um filme que eu já chamei aqui de obeso, mas que me agrada em muito.
Aos 78 anos de idade, Eastwood continua impressionando como um caso especial no cinema (já está filmando o próximo, The Human Factor), e Gran Torino ainda nos oferece o trabalho de um autor que não apenas narra bem e levemente, mas registra o tema do envelhecimento de forma totalmente coerente com a sua própria trajetória. Ele dá a sua cara a esse tema.
Eastwood, que abre seu filme com um enterro e um batizado, já vem abordando a passagem do tempo sobre o corpo e a aproximação da morte desde que passou dos 60, na época de Os Imperdoáveis (1992), algo desdobrado de maneira inusitada em Cowboys do Espaço (1999), para citar apenas dois.
Isso de um astro hollywoodiano que viu-se no auge da sua popularidade no final dos anos 60 e início dos 70. É fato que em 1972/1973, aos 42 anos, Eastwood atingiu o auge como astro de maior bilheteria em Hollywood via filmes como O Perseguidor Implacável (Dirty Harry, 1971), de Don Siegel, seu mentor, alguns anos depois da sua fase spaghetti western com Sergio Leone, seu outro mentor.
É impossível não associar essa época ao ano de fabricação (1972) do Ford modelo Gran Torino estacionado na garagem de Walt Kowalski, o velho ranzinza que Eastwood interpreta de coração nesse novo filme. O Gran Torino verde de estado impecável parece uma espécie de troféu automotivo de um outro tempo, símbolo vivo de uma juventude americana que já se foi para esse velho resmungão que não agüenta a família nem os vizinhos.
Noções de correção política ainda não chegaram na casa desse viúvo, que detesta ver sua vizinhança tomada por “japas”, na verdade integrantes da comunidade Hmong, povo que os EUA herdaram depois da Guerra do Vietnã. Walt guarda ainda memórias duras da Guerra da Coréia, onde lutou muito jovem.
Ele irá se envolver com os seus vizinhos depois que Thao (Bee Vang), garoto adolescente, é levado a tentar roubar o Gran Torino pressionado por uma gangue de jovens Hmong que querem tomá-lo para o mau caminho. Com a participação da irmã mais velha de Thao, Sue (Ahney Her), há uma engraçada (e encantadora) aproximação do velho racista americano com os seus vizinhos, obstáculos que começam a ser superados não só através de uma conversa muito humana, mas também via comida e uísque de arroz.
A união inusitada de um homem de 78 anos com adolescentes inteligentes emocionalmente talvez expliquem o enorme sucesso do filme nas bilheterias (na verdade, a maior arrecadação de Eastwood em mais de 50 anos de carreira).
Gran Torino parece ter um apelo que vai de A a Z, mostrando com grande delicadeza que a união de mundos diferentes (jovens e velhos, nativos e estrangeiros) é sempre uma aventura humana sem igual. A naturalidade dessa aventura é um dos aspectos mais cativantes de Gran Torino, que mostra naturalmente a troca entre os que seriam diferentes, um espelho importante de cinema para uma cultura, a americana, que sempre trata o "estrangeiro" como algo que deve ser incompreendido.
Em outros níveis, Gran Torino é também um acréscimo maravilhoso à já citada filmoteca Eastwood. Há desdobramentos violentos no filme que não devem ser revelados, mas que reprocessam de forma consciente a imagem cinematográfica de um ator que interpretou muitas vezes a força bruta armada como reação à violência do homem.
Bem longe de filmar mais um filme da série Dirty Harry, com o personagem perseguindo bandidos aos 80 anos e gerando constrangimento, Gran Torino nos dá um sentido agudo de realidade. Algumas vezes nesse filme, vemos Walt/Eastwood já incerto do seu corpo, dentes cerrados, apontando um revólver fantasma com o dedo indicador como cano em direção aos que mereceriam, em outros tempos, morrer. Uma das imagens do ano.
Filme visto no Plaza Casa Forte Kinoplex, Recife, Março 2009
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4 comments:
Kleber, belo texto.
Vi o filme ontem, e fora a imagem do revólver fantasma (e Eastwood chamando o personagem interpretado por seu próprio filho de bichona, hehe), acho que uma das imagens não só do ano, mas ds anos 2000, seja a do garoto dirigindo o carro ao final, com o cachorro ao lado e aquela canção maravilhosa acompanhando. E a cena se estendendo até o final dos créditos, com logo da Warner em p&b. Uau. Filme único.
Murilo, concordo totalmente. Acho que n citei esse final para ele chegar como ele chegou em mim. Significa muita coisa em muitos níveis. A cara de felicidade em Thao expressa a essência do ser americano, que Walt passou para esse estrangeiro, carrão, liberdade, dog, amizade entre duas gerações, e ainda o toque atoral desse diretor especial cantando pra gente. É meio difícil de descrever mesmo, mas as sensações são as melhores possíveis.
É o tipo de cena que acho que diferencia um cineasta maduro e de visão artística completamente honesta como Eastwood de qualquer outro. Justamente esse conceito americano clássico de felicidade sendo expresso com a maior sinceridade do mundo, desprovido de qualquer "xaropice" emocional. É o tipo de cena que te enche de alegria, e que me deu vontade de encontrar Eastwood na saída do cinema e cumprimentá-lo com um aperto de mão, da maneira como ele faz com Thao na loja de ferramentas. Rei esse Clint.
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