Sunday, May 3, 2009

Lírio Ferreira e Desnise Dumont sobre fazer um filme pessoal de arquivo sobre o pai dela: O Homem Que Engarrafava Nuvens



Lírio Ferreira apresentando o filme no Festival do Rio, ano passado

por Kleber Mendonça Filho
cinemascopio@gmail.com


Para quem conhece a pessoa do cineasta pernambucano Lírio Ferreira, uma primeira impressão é a de que ele é claramente um realizador da raiz ficção, sua capacidade de se expressar e de juntar idéias aparentemente distantes numa conversa chama a atenção e instiga. Analisa, por exemplo, que não seria uma coincidência o fato de uma primeira possível imagem para o que seria “o moderno cinema pernambucano” ser a de um homem cego numa paisagem árida, cena do seu próprio curta metragem O Crime da Imagem, lançado nos primeiros momentos dos anos 90. Esse seu olhar, que alguns fãs ousam chamar de ‘delírio’, gerou dois filmes notáveis, filhos não da ficção, mas do documentário, ambos sobre a música brasileira. O mais novo chama-se O Homem Que Engarrafava Nuvens, sobre Humberto Teixeira, que encerra hoje à noite o Cine PE.

O filme confirma algo que já havia sido percebido em Cartola (2006), co-dirigido por Hilton Lacerda, um filme não linear, um pouco como as lembranças que temos da vida, algo que Lírio repete de forma nova e orgânica no seu novo relato sobre uma outra personalidade brasileira que deixou marcas na cultura do país. Curiosamente, esse é um projeto interessante não apenas para o espectador comum, mas também pelo que existe por trás do filme.

Lírio Ferreira, na verdade, conduziu com tom autoral o projeto emotivo que pertence à produtora do filme, a atriz Denise Dumont, que vem a ser a filha do personagem principal, Humberto Teixeira. O pai dela ficou conhecido popularmente como parceiro de Luiz Gonzaga e autor de Asa Branca, clássico da MPB. O filme tem claramente o tom de uma confissão, ou de uma descoberta, e há indícios de que diretor e produtora descobriram juntos coisas diferentes.

« Exatamente pelo traço marcante do Lírio e pelo seu talento, foi que o convidei para dirigir o filme. A sua doçura e delicadeza como ser humano tornou possível essa relação tão complicada, de ter a filha do personagem principal no cangote 24 horas por dia durante 7 anos, cheia de opiniões, perfeccionista e ainda por cima com o poder de produtora... É sem dúvida um filme extremamente pessoal e por isso mesmo eu tinha que entregá-lo em boas mãos. Lírio realizou o meu sonho e o fato de continuarmos amigos e nos amarmos de paixão depois de tantos anos, é prova de que funcionou e bem », disse Dumont à reportagem do JC, de Paris, antes de vira o Recife para a sessão de hoje.

Perguntamos a Lírio como é administrar o personagem principal que é pai da produtora. Ele respondeu, “não foi fácil. Afinal, o filme aborda a trajetória do pai dela e todo o processo acabou sendo uma descoberta de um pai que Denise não conhecia muito bem. A trilha sonora da juventude de Denise não era o baião, mas o rock brasil dos anos 80. Ela também perdeu a mãe antes da finalização do filme. Contudo, Denise é uma pessoa muito meiga e afetiva e nós, apesar de sermos piscianos e cabeças duras, nos entendemos muito bem”.

Lírio Ferreira volta a demonstrar intimidade com o trabalho de arquivo que fez de Cartola um filme tão rico, e que parece mover Baile Perfumado com as imagens de Benjamim Abraão. “Material de arquivo sempre exerceu um certo magnetismo sobre mim. O registro de um instante único. A possibilidade de poder recriar estes instantes, através da montagem, um cenário propício para um personagem marcante cruzar este tempo, foi a energia criativa e motora que impulsionou tanto Cartola, quanto O Homem Que Engarrafava Nuvens”, nos falou Lírio há alguns dias.

Nesse aspecto do filme, Denise Dumont destaca o trabalho de Antônio Venâncio, “O melhor e mais tenaz pesquisador de imagens do mundo! Esse anjo está no projeto desde o primeiro momento e a pesquisa que ele fez enriqueceu e contextualizou o filme de forma magnífica”.

Dumont levantou o dinheiro no Brasil (governo do Ceará entrou forte, Teixeira nasceu no Cariri) e EUA (investidores privados). É ela quem apresenta o filme na frente da câmera e é vista pontualmente costurando informações e pesquisando o seu próprio passado. Seu pai faleceu em 1979, na época Dumont fazia a novela Marrom Glacê, na Globo. Ela casou e mora nos EUA já há 22 anos. A reportagem do JC tentou comunicação com Dumont, que estava essa semana em Paris, antes de vir ao Recife, mas sem sucesso.

Num filme sobre um pai, é o depoimento da mãe que deixa algumas impressões fortes e define o tom pessoal do filme para Dumont. Com cerca de uma hora de projeção, uma entrevista tão doce quanto dura com a ex-esposa de Teixeira coloca, de forma muito pessoal, as coisas em perspectiva. Esse momento foi muito comentado quando da estréia do filme no último Festival do Rio.

Sobre essa sequência do filme, Dumont nos falou que « foi difícil em termos pessoais. Por outro lado foi um resgate/exorcismo tremendo na nossa relação. Havia muito ressentimento e culpa e foi maravilhoso termos tipo a oportunidade de examinar aquilo tudo. No final daquela entrevista, me senti livre para amar a minha mãe de novo e compreendê-la. E na verdade, ao meu pai também. Tornou ele humano pra mim. Quanto a colocar aquilo tudo no filme, foi a minha vez de ter a delicadeza de sair do caminho e deixar o diretor trabalhar em paz. Esse filme é do Lírio Ferreira ».

Com entrevistas filmadas em película por Walter Carvalho, Lirinha, Otto, Nelson Motta, Gal Costa, Chico Buarque analisam o legado de Teixeira, ou simplesmente cantam-no, caso mais claro de convenção cedida pelo filme. Ouvir versões diferentes de Asa branca nas vozes de Maria Bethânia, David Byrne e Caetano Veloso resulta em audições particulares que realmente ilustram o alcance de uma peça musical que faz parte do DNA cultural do Brasil.

Teixeira, que também foi deputado federal e autor de mais de 400 músicas, deixou marcas indeléveis na cultura brasileira através de, especialmente, a música e o baião. O filme, enquanto validação de um artista que talvez não tenha os créditos que merece, também se mostra um desejo claro. O fato de ser o compositor mais discreto e Gonzaga o astro pop de gibão e sanfona sempre exposto também explicam isso.

Com a carreira do filme em festivais internacionais (Amsterdã, Miami, Toulouse, Cartagena) perguntamos como esse personagem tão brasileiro, e sua música, tem sido percebido no exterior. “Por onde passou, o filme tem tido uma recepção muito calorosa. Pessoas que conhecem a história se emocionam e as que não conhecem ficam compenetradas com a descoberta. Não é raro ver gringo agradecendo pela sessão ou fazendo um depoimento pessoal.”

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